Revista do Colóquio N. 21: A trama dos tempos

Revista do Colóquio, n. 21, A trama dos tempos. Vitória: PPGA-UFES, inverno de 2023.

Texto de Rodrigo Hipólito

Pedir pela compreensão da experiência de passagem do tempo é algo tão cruel e trapaceiro quanto encurralar uma discussão com a pergunta sobre a consciência. Não que falar sobre esses dois fenômenos engenhosos seja impossível. Pelo contrário, falamos sobre eles até que cheguem novas vozes para ocupar nossos lugares na conversação e nos deixar descansar. Falamos, pois as dúvidas sobre temporalidade e consciência giram em torno da nossa autocompreensão. Na síntese de Merleau-Ponty (Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo, 2011, p. ):

O sujeito, o qual não pode ser uma série de eventos psíquicos, não pode, no entanto, ser eterno. Resta o fato de que ele é temporal não por algum capricho da constituição humana, mas em virtude de uma necessidade interior. Nós somos convidados a constituirmos do sujeito e do tempo uma concepção de modo tal que eles comunicam do lado de dentro.

“Duas mulheres tecelãs”, artista desconhecida, Horniman Museum and Gardens.

“Duas mulheres tecelãs”, artista desconhecida, Horniman Museum and Gardens. Esta imagem está disponível para ser compartilhada e reutilizada sob os termos da licença Creative Commons Attribution-ShareAlike (CC BY-SA). Descrição: Pintura vertical dividida ao meio por uma linha preta. Na parte superior, uma mulher de pele marrom manuseia o tear de madeira. Na parte inferior, outra mulher de pele marrom manuseia uma roca.

Estar diante do movimento giratório da consciência e da experiência do tempo é confrontar a mortalidade. Mas, não se trata de um confronto em que possa existir vitória ou derrota. O enfrentamento da passagem do tempo é a aceitação do paradoxo de estar diante da vida e, em simultâneo, viver.

Em “Estação Perdido”, China Miéville (Trad. Fábio Fernandes; José Baltazar Pereira Júnior. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016) dá forma para o emaranhado de consciência e temporalidade na personagem Tecelão. Capaz de atravessar caminhos através das várias faces dos tecidos do tempo e encontrar entradas e saídas para o caos do conflito devastador entre natureza e exploração humana, Tecelão se esforça para manter a “beleza da teia da realidade”. O deus-aranha de Miéville está, certamente, próximo de Anansi, mas suas ações e seu esforço apontam mais para o trabalho de escrita da História. Conferir sentidos para o pandemônio de marcas temporais com narrativas atreladas aos compromissos de nossa própria época parece um trabalho tão árduo quanto tentar manter a teia da realidade que insiste em se romper.

Apesar de ser algo evidente, é bom dizer que a história, a crítica e a produção da arte estão repletas de propostas sobre como pensar as idas e vindas através dos tempos. Henry Focillon, Aby Warburg, Hans Belting, Georges Didi-Huberman, Germain Bazin, , Susan Sontag, Arthur C. Danto, Boris Groys, Claire Bishop, Hal Foster, Miwon Kwon, e uma miríade de outros nomes já se debruçaram sobre reflexões as mais variadas; da independência temporal da obra de arte à fragilidade dos modos de registro de propostas efêmeras, da apropriação e uso de arquivos à necessidade de antagonismo no encontro como experiência estética, do choque à harmonia, da permanência ao retorno.

Hoje, propostas de arte submersas no enfrentamento da experiência de passagem do tempo são esforços de Penélope em meio aos alarmes de urgência de um incêndio que conta os segundos por nossas expirações. Se há algo em comum entre as distintas formas de pensar nossa história e nossa crítica de arte é a confiança no documento e no arquivo como formas de conter os avanços do tempo em suas manifestações de degradação. Fora da frieza dos arquivos, renovam-se ferramentas expressivas para conhecer e sustentar os mundos.

Eu não tenho velhos livros como eles, nos quais estão desenhadas as his­tórias dos meus antepassados.8 As palavras dos xapiri estão gravadas no meu pensamento, no mais fundo de mim. São as palavras de Omama. São muito antigas, mas os xamãs as renovam o tempo todo. Desde sempre, elas vêm pro­tegendo a floresta e seus habitantes. Agora é minha vez de possuí-las. Mais tarde, elas entrarão na mente de meus filhos e genros, e depois, na dos filhos e genros deles. Então será a vez deles de fazê-las novas. Isso vai continuar pelos tempos afora, para sempre. Dessa forma, elas jamais desaparecerão. Ficarão sempre no nosso pensamento, mesmo que os brancos joguem fora as peles de papel deste livro em que elas estão agora desenhadas; mesmo que os missionários, que nós chamamos de “gente de Teosi”,9 não parem de dizer que são mentiras. Não poderão ser destruídas pela água ou pelo fogo. Não envelhecerão como as que ficam coladas em peles de imagens tiradas de árvores mortas. Muito tempo depois de eu já ter deixado de existir, elas continuarão tão novas e fortes como agora (KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 66).

Quando giramos certas chaves, abrimos as portas para a experiência temporal e histórica como sustentação do único céu sob o qual podemos viver. A separação entre presente, futuro e passado pode, então, dar lugar à rede de trocas e diálogos que nos permite enfrentar a efemeridade não apenas como sujeitos fechados em nossa individualidade, mas como um vasto e heterogêneo grupo de pessoas que caminha sobre a teia do Tecelão.

“O tempo em suspensão” foi a temática do Colóquio de Arte e Pesquisa do PPGA-UFES 2023. Em diálogo e continuidade com esse IX Colartes, a Revista do Colóquio de número 21 apresenta relatos de experiência, ensaios visuais, resenhas e traduções sob o tema “A trama dos tempos”. Com principal interesse nas pesquisas desenvolvidas no interior do campo da arte, a Revista do Colóquio expande, a cada edição, os diálogos com diversas áreas de conhecimento, nas quais se desenvolvem debates e investigações aderentes às suas temáticas. Nesse nosso 21º número, você encontra trabalhos que expõem processos, análises críticas e narrativas histórias em diversos contextos ligados à experiência da passagem do tempo, com seus mais diversos aspectos poéticos, filosóficos, antropológicos, sociopolíticos e culturais.

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