[artigo] Eu passeio por lugares como atravesso dobras de livros

Publicado em: Eu passeio por lugares como atravesso dobras de livrosPalíndromo, Florianópolis, v. 16, n. 38, p. 1–22, 2024.

Fabiana Pedroni

Rodrigo Hipólito

Resumo: É possível ler uma exposição de arte como uma publicação? É possível caminhar por um livro como por um espaço expositivo? Através da descrição e da narração de um passeio por uma exposição, em paralelo a apresentação da espacialidade de um livro ilustrado, investigamos a interrelação entre a publicação impressa como exposição e o espaço expositivo como publicação. Observamos, também, trabalhos de arte produzidos nas últimas décadas e o tensionamento entre o corpo do livro e o corpo de exposições físicas e, assim, apontamos para a compreensão de que uma exposição de arte pode atravessar a experiência leitora, como em uma publicação.

Palavras-chave: Expografia. Espacialidade. Livros de Artista. Livros Ilustrados

Abstract: Is it possible to read an art exhibition like a publication? Can one walk through a book as through an exhibition space? Through the description and narration of a tour of an exhibition paralleled with the presentation of the spatiality of an illustrated book, we investigate the interrelation between the printed publication as an exhibition and the exhibition space as a publication. We also observe artworks produced in recent decades and the tension between the body of the book and the physical exhibition space, thus pointing towards the understanding that an art exhibition can traverse the reading experience, much like a publication.

Keywords: Expography. Spatiality. Artist’s Books. Illustrated Books

 

Resumen: ¿Es posible leer una exposición de arte como una publicación? ¿Se puede caminar por un libro como por un espacio expositivo? A través de la descripción y la narración de un recorrido por una exposición en paralelo a la presentación de la espacialidad de un libro ilustrado, investigamos la interrelación entre la publicación impresa como exposición y el espacio expositivo como publicación. También observamos obras de arte producidas en las últimas décadas y la tensión entre el cuerpo del libro y el cuerpo de las exposiciones físicas, señalando así la comprensión de que una exposición de arte puede atravesar la experiencia de lectura, como en una publicación.

Palabras clave: Museografía. Espacialidad. Libros de Artista. Libros Ilustrados.

Páginas de exposição

Hoje, já poderíamos falar em uma tradição de publicações de artistas como espaços de exposição. Não se trata de catálogos ou publicações sobre arte, mesmo quando essas são trabalhadas para se tornarem objetos esteticamente interessantes ou mesmo quando realizam diálogos abertos com os trabalhos expostos e catalogados[1]. Tampouco se trata de publicações de textos de artista, textos de processo ou livros de artista[2]. Exposições de arte que se realizam em páginas de publicações impressas podem ser consideradas parte da “tradição da arte contemporânea”. Se remontarmos às décadas de 1960-70-80, encontraremos alguns exemplos desses casos.

Em 1973, após ter seus trabalhos censurados e retirados de uma exposição coletiva no MAM-RJ, Antonio Manuel recorre às páginas dos jornais para efetivar uma exposição subversiva.

Pegar então a exposição censurada, transformá-la em material iconográfico, juntar uns textos, criar uma estrutura de jornal, inventando assim um novo suporte para expor os trabalhos proibidos. Conseguir, por fim, que “O Jornal” publicasse o resultado num caderno de seis páginas, fazendo com que a exposição funcionasse independente de museu, ditadura, censura etc. Durando 24 horas, o tempo de duração de um jornal (Manuel apud Cadôr, 2014, p. 27).

“0 a 24 horas” teve por princípio o desgarramento dos espaços tradicionais de exibição de arte e a experimentação da publicação impressa como exposição. Algo similar ocorreu com as propostas realizadas em anúncios de jornal por Paulo Bruscky e Daniel Santiago. A Equipe Bruscky & Santiago recorreu aos classificados de jornais de grande circulação, no começo da década de 1970, para realizar suas obras em formato de pequenos anúncios, “perdidos” em meio às chamadas para compra, venda e serviços. Tais anúncios foram reunidos, em 1978, no número único da “Revista Classificada”, junto de trabalhos de outros artistas (Cadôr, 2020, p. 306).

Nesses dois exemplos, encontramos artistas que foram pressionados pelo ambiente autoritário e levados a conceber o jornal como espaço de exposição. Feito esse movimento, a publicação como exposição continua a ser explorada. Esse foi o caso da revista “Poesia em greve”, editada por Julio Plaza e Régis Bonvicino, a qual se transformou na publicação experimental “Corpo Estranho”. Em uma edição de 1982, Mary Dristchell publica-expõe “Duas folhas – quatro lados”, um trabalho que consistia em uma sequência de quatro fotografias de identificação, nas quais a artista aparece de frente, dos lados e de costas (Cadôr, 2014, p. 40-44).

Tais exemplos estão contidos no catálogo da exposição “Livro como performance”, com curadoria de Amir Cadôr. Nem todos os trabalhos elencados por Cadôr possuem as caraterísticas dos exemplos acima citados. Para indicar algumas variedades possíveis das relações entre livros e performance, o curador separa oito grupos: Documentos, Performance para a Câmera, Performance para a Página, Instruções/Partituras, Leitura como Performance, Ações, Traços e Performativo. Em cada um desses grupos seria possível encontrar trabalhos que façam uso da publicação impressa como espaço de exposição.

Quando as publicações impressas e as galerias físicas passam a ser considerados como espaços para realização e exibição dos trabalhos de arte, torna-se necessário pensar mudanças nas próprias concepções de público e de exposição. A década de 1990 apresentou significativas transformações com relação aos meios e sentidos de exibição de arte. Naquela década, já havíamos passado por vários exemplos de propostas artísticas concretizadas em publicações impressas ou fora dos museus e galerias. Arte pública e intervenção urbana, obviamente, ainda são tópicos frequentes de discussão. No entanto, esses casos são mais aprofundados do que a simples consideração da validade ou invalidade de propostas que extrapolam as paredes de museus e galerias[3].

As possibilidades de exibição expandem-se com as mídias digitais. Nesse sentido, todo o cenário das artes foi obrigado a considerar novos tipos de acesso e novos tipos de imagem no cotidiano do público. A disseminação do acesso à internet e o imediato interesse de artistas no desenvolvimento de trabalhos pensados exclusivamente para esse meio é uma marca da década de 1990, da qual ainda pouco compreendemos a extensão.

Da net.art da primeira metade dos anos 1990 às redes sociais dos anos 2010, os modos de se exibir e discutir arte com o público se transformou de maneira evidente e acelerada. Não se trata apenas de apontar os exemplos de museus virtuais, mas de considerar que as relações entre trabalhos de arte, artistas e público sofreram (e sofrem) outra escala de mudanças. Isso significa, também, o surgimento de novos tipos de relações e papéis entre esses atores.

Trabalhos feitos “para” a internet são expostos “na” internet. Nesses casos, a mediação tradicional de museus e galerias é trocada pelos aparelhos[4]. A relação entre público e esse tipo de proposta de arte se dá mais pela capacidade de deliberação desse público e pela familiaridade com tais aparelhos do que por qualquer possibilidade contemplativa. O público, em propostas de net.art e pós-internet, precisa ser, inevitavelmente, ativo[5]. Sem a deliberação do público e a sua mínima familiaridade com os aparelhos através dos quais essas propostas existem, trabalhos como “Mouchette.org[6] (1995- ), de Martine Neddam, ou “My boyfriend come back from the war[7] (1996- ), de Olia Lialina, seriam apenas páginas estáticas.

Não é possível separar tais trabalhos de sua forma de exposição. Deve-se considerar, também, que a existência desses trabalhos depende da atualização de possibilidades. Ou seja, sua efetivação ocorre não apenas quando eles são tornados públicos (publicados, expostos), mas quando o público atua. É necessário que o público aceite o convite e se relacione com as “páginas” (imagens, vídeos, texto, links, etc.). Talvez, isso seja válido ao pensarmos em outros elementos próprios da publicação/exposição: capa, folhas, salas, bancos, textos de parede, iluminação, espaço físico, corredores, janelas, etc.

No entanto, assim como ocorre com os trabalhos digitais, nos quais a existência das propostas não está unicamente nos aparelhos e na internet, a distinção entre publicar e expor não pode estar apenas nos suportes e espaços. Ocorre que a existência desses trabalhos, e de quaisquer outros, depende das relações travadas entre o público e as possiblidades mediadoras. Para expor/publicar, é necessário que haja corpo, mas não apenas isso: é necessário que esse corpo possa ser aberto para conter outras formas de existir.

Espaços de exposição podem perder o corpo e, nesse caso, os trabalhos expostos passariam a vagar na metempsicose da virtualidade[8]. Num sentido oposto, as publicações podem ganhar corpos e proporcionarem experiências espaciais de leitura capazes de abraçar o público. Será que, algumas vezes, quando você visitou uma exposição de arte, você não se sentiu como se entrasse em um livro?

Como livros bem abertos

A partir desse rápido encadeamento de modos de publicação que se tornam modos de exposição, de catálogos impressos a obras baseadas na internet, poderíamos inverter os elementos da consideração que iniciou este texto e, com essa inversão, formular as seguintes perguntas: uma exposição de arte pode ser uma publicação? Como pensar uma expografia “diagramada” para valorizar as relações entre texto e imagem, com ligações virtuais e acessos para o público que não sejam apenas os espaciais?

Tais perguntas nos atiram de volta ao espaço. Como funcionariam livros expandidos e reformulados para existirem como ambientes? Como pensar livros que se estendem pelo espaço de exposição, como conjuntos de esculturas, instalações ou composições que exigem não apenas nossos olhos e ouvidos, mas todo o nosso corpo? Perguntas como essas tornam quase inevitável que pensemos nas realizações e aberturas deixadas pelos movimentos neoconcreto e tropicalista. Os livros espaciais (ou livros-objeto) de Lygia Pape, os bólides e ambientações de Oiticica e a poesia neoconcreta, em parte, já começavam a responder à tais questões.

A participação e o corpo, nos livros-objeto por ela produzidos no contexto neoconcreto, são comandados por uma relação eminentemente simbólica em que a palavra aparece como imagem e como espaço por ser multívoca. Do mesmo modo, nos poemas espaciais para folhear de Gullar, a dimensão simbólica envolve a participação e em Lembra e Poema Enterrado a espacialização é também arquitetônica. Em todos eles, a palavra envolve uma “simbólica geral do corpo”. (Gerheim, 2020, p. 110-112)

O “Poema enterrado” (1959), de Ferreira Gullar, em especial, foi uma proposta que diretamente pensava a espacialização da experiência de leitura. Naquele caso, o público/leitor era convidado a descer um lance de escadas que dava para uma pequena sala, dentro da qual havia, ao centro, um suporte de madeira com um cubo. Ao erguer o cubo, o público/leitor encontrava a palavra “Rejuvenescença”.

O leitor-visitante deveria, além disso, recolocar os cubos em seus lugares e permanecer por certo tempo dentro do poema. O objetivo era ativar o tempo como duração, enfrentando a recordação daquela palavra que agora vibrava debaixo dos cubos. Acontece que, em fins de 1959, quando publiquei o projeto do meu Poema enterrado no Jornal do Brasil, o pai de Hélio Oiticica estava construindo uma casa, aqui do lado, perto do Jardim Botânico. Quando Oiticica viu o projeto, imediatamente me telefonou e disse que ia falar com o pai dele para que fizesse esse poema enterrado na casa que estava construindo. Respondi que não seria possível, que o pai dele jamais aceitaria fazê-lo, mas Hélio insistiu. Por fim, Hélio falou com o pai, que aceitou e acabou construindo o Poema enterrado no local onde havia planejado construir uma caixa-d’água. Então, um dia, com o poema já construído, na mesma casa que viria depois a pegar fogo, fui inaugurá-lo junto com importantes artistas neoconcretos. Nesse dia, por lamentável coincidência, choveu horas seguidas e quando chegamos ao local nos deparamos com o poema completamente inundado, os cubos flutuando na água, e aí acabou o ato que havíamos planejado, inclusive a obra. (Gullar apud Jinénez, 2013, p. 150)

Desse longo trecho, que nos narra o fim de uma proposta que não chegou a se realizar, é interessante ressaltar a expressão “dentro do poema”, usada por Gullar. Talvez, para pensarmos a experiência de leitura de espaços expositivos, devamos fugir da teoria e a dureza da escrita acadêmica, pelo espaço de algumas páginas, e aceitarmos um convite para entrar.

Nesse ponto, ressalta-se uma escolha: fazer uma aproximação entre os modos de se pensar uma exposição física (entre as paredes, chão, teto, portas e janelas de galerias e museus) e o livro físico (com capa e quarta-capa, páginas, costuras e dobras) através do corpo. Como o livro possui um corpo, podemos passear por ele.

Como uma exposição, na atualidade, é pensada através do design expográfico, passear pelo corpo da mostra nos permite ler sua organização. Poderíamos embarcar em questionamentos sobre os limites do conceito de leitura para lidar com imagens e com palavras. Mas, partimos da ideia de leitura de imagens, já consagrada dentro da Arte Educação não apenas em seus aspectos pedagógicos, mas como parte dos estudos de culturas visuais (cf. Dondis, 1991; Kellner, 1995; Manguel, 2001; Mirzoeff, 2003; Barbosa, 2005). Aqui, aceitamos que ler é uma experiência que se faz com todos os sentidos e em diversas mídias. Caminhar por uma exposição com uma expografia desenhada para aqueles trabalhos em específico é uma experiência de leitura.

Caminhar através da dobra

O cartaz foi o primeiro que encontrei e o primeiro que deixei. Às pressas, com o canto do olho, pude ler apenas “A obra que habito”, enquanto meus passos, aflitos, agilizavam a fuga. O calor escaldante de janeiro expulsava os passantes para dentro da galeria. Muitos se amontoavam na entrada dessa ilha recém-formada para um breve respiro, antes de seguirem seus caminhos. Abriam a porta, davam uma espiada e logo saíam.

Desses bisbilhoteiros, alguns não conseguiam sair tão depressa quanto planejavam. A curiosidade os fazia caminhar para outra sala e outra sala, até se atrasarem para seus compromissos. Esses curiosos eram como aquelas pessoas que são atraídas pela capa de um livro, o abrem para folheá-lo e afirmam que será apenas isso. Mas, poucos minutos depois, acabam por comprá-lo para ler mais tarde. Assim, os folhetos da mostra sumiram rapidamente. Passei alguns minutos presa na observação da ilha, e ainda não sabia quem era o artista que expunha. O último folheto já tinha sido entregue.

Com a intenção de ali permanecer por um bom tempo, até que o sol se deitasse, dirigi-me para a sala mais vazia. Ali, encontrei o restante da frase do cartaz “A obra que habito: da arquitetura para o corpo”. Imagine que, naquele momento, uma brisa gelada saía da arquitetura do prédio, batia em meu rosto, percorria a espinha até meus pés suados, presos dentro de velhos calçados. Criado o primeiro significado afetivo com a exibição, já podia me sentir mais à vontade para descobrir o que ali encontraria, na ausência dos dados do texto de apresentação. Esse, obviamente não lido, pois a urgência de adentrar o interior da mostra era maior.

Eu estava na segunda sala. A primeira eu apenas espiei. Não sabia bem do seu conteúdo artístico, apesar de ver, de longe, o texto preso à parede, e algumas pessoas sentadas em bancos. Um espaço cuidadosamente pensado para aqueles que precisavam descansar do mundo, antes de pensar sobre ele. A posição dos bancos era estratégica, sei disso pois, quando passei por eles, duas pessoas se levantaram e me seguiram para a próxima sala.

Ao invés de estarem voltados para a rua, ou para o texto explicativo, estavam “entre”. Dispersos entre a informação da parede e o buraco do portal, que levava para a segunda sala. Como não ficar curioso com esse final de capítulo entreaberto?

Poucos dos que se sentavam para descansar voltavam para a rua. Sentados, tinham o tempo necessário para decidir se levantariam para ler o texto mais de perto ou se iriam direto para onde estavam as obras. Não preciso dizer que o texto também os levaria, muito provavelmente, para a próxima sala.

A segunda, novamente, apenas espiei. Vi, de relance, molduras em madeira de pinho cru e vários esboços, alguns envelhecidos. Os espaços vazios me permitiram circular até a sala seguinte.

Pouco a pouco, na terceira sala, os personagens foram apresentados. Sem um prefácio nem o nome do autor, eu desconhecia seus antecedentes. Uma sala quadrada, rodeada por molduras semelhantes às da sala anterior. No centro, havia um desenho flutuando em uma tina de água. A madeira da tina era de tom terroso, um pouco mais escuro e avermelhado que as molduras. Só quando vi a água, foi que me atentei para uma goteira insistente. Eu estava em uma instalação e não tinha percebido. A integração do espaço expositivo e o reconhecimento de elementos estruturais me davam novas ferramentas para estar na obra.

Estar na obra, habitar uma exposição, exige muito mais que termos técnicos. As imagens que me foram dadas me faziam recorrer às memórias de infância, da casa de chão vermelho e janelas de madeira. A goteira que caia no canto da sala, onde o som era mais alto, não soava como o toque em piso frio de galeria. Era um som mais aconchegante, de chuva no mato. Ali, naquele canto estranhamente rodeado de desenhos de pradarias, havia uma micro-chuva no mato.

Aqueles que eram de mato, ali, poderiam se reconhecer e se sentar no banquinho baixo, feito de tora, que, gentilmente, o designer de exibição tinha colocado. Compreender o espaço expositivo é compreender as relações que se pode estabelecer com ele e a partir dele. Até me sentar, não percebi que estava em penumbra, enquanto o foco maior de luz incidia sobre a tina, ao centro. Cativada por uma personagem secundária, que me atiçou empatia, me tornei, então, ciente de que precisava retornar na narrativa e ler o capítulo anterior para, então, prosseguir[9].

Durante o retorno, com os pés já descansados e o corpo refrescado, lembrei-me do meu encontro com “Onda”, de Suzy Lee. Esse livro, possivelmente, foi um marco para muitos pesquisadores sobre livros ilustrados. Em “Onda”, fui surpreendida pela dobra do livro que se torna personagem e interage com a menina, protagonista, e com o leitor. Talvez, o leitor, até esse encontro, ignorasse que o livro possui um corpo. Foi necessária uma trilogia para me dizer que livros possuem corpo e que cada cantinho desse objeto faz parte da narrativa[10].

A partir do momento em que a dobra do livro se tornou evidente, passei a observar o toque na página, as escolhas de materiais, o lugar onde se lê, como se lê, com quem se lê, todo o entorno material e social que habita a leitura. Os livros da estante não foram mais os mesmos. O papel poroso passou a ter textura para os dedos, ou a paginação que começava em número negativo, eram gatilho de riso. Cada elemento da capa era observado com atenção. Cada detalhe da capa é, também, narrativa.

Pensar sobre isso me fez sair da galeria e encarar o sol. O título “A obra que habito: da arquitetura para o corpo” era rodeado de desenhos abstratos em tons de verde e uma gota lavava o canto do cartaz, azulando-o. Como na capa e contracapa de “Onda”, encontrei o prenúncio da narrativa. Suzy Lee já mostrara, na capa, uma menina que encara o mar, com o vacilo movimentado do corpo. Mar azul, em contraste com a menina desenhada em carvão (Fig.1). Na contracapa, o carvão do vestido é inundado de azul e a menina sorri, exibindo seus achados marítimos. A gaivota, que antes voava, agora pode parar sobre a cabeça da menina, com a satisfação de ter acompanhado a narrativa até o final. O encontro da menina com a onda do mar aconteceu, mediado pela dobra do livro, pelo corpo do livro (Fig.2). A água azul atravessou a dobra e inundou as páginas (Fig.3).

"Onda", Suzy Lee. Capa e contracapa.

Figura 1. Livro “Onda” de Suzy Lee (2008), aberto de modo a mostrar a capa e a contracapa. À esquerda, contracapa com ilustração de menina sorridente com gaivota na cabeça, cercada por pontos de tinta azul, da mesma cor de seu vestido. Abaixo da ilustração, trecho do livro. À direita, capa com ilustração que mostra uma menina de vestido, desenhada em traços pretos simples, diante de ondas do mar, com pássaros voando baixo e o título do livro em cursiva azul logo acima, ladeado por gaivotas.

"Onda", de Suzy Lee. Ilustração interna.

Fig 2. Ilustração de “Onda”, de Suzy Lee (2008). O livro está aberto em página dupla. Na página à esquerda, em preto e branco com traços simples, menina estende a mão para a dobra no meio das páginas. Sobre ela, há gaivotas voando próximas. Ao longe, um horizonte com morros. Na página da direita, a praia com o mar azul em aquarela.

"Onda", de Suzy Lee. Duas páginas duplas.

Fig. 3 “Onda”, Suzy Lee (2008). Duas páginas duplas. Acima, grande onda feita de esguichos de tinta azul para vários lados em fundo branco. Abaixo, criança de vestido azul brincando na areia da praia com amplo horizonte ao fundo, céu azul da mesma cor do vestido, na página da direita dessa cena, o mar azul está sem ondas.

Observar esse livro, da artista sul coreana Suzy Lee, leva a pensar mais sobre as salas da exposição. Na primeira sala, após a ilha de entrada, o texto de abertura trazia uma síntese interessante sobre a importância do lugar para a memória e para a afetividade. Na segunda sala, pela qual passei com rapidez, os desenhos traçavam não só a história da artista (em desenhos e fotografias antigas), mas a história da exposição (em esboços e anotações). Com essa leitura, encontrei outras narrativas. A não-linearidade, na qual vivemos, cria possibilidades em cada modo de habitar o espaço, isto é, torná-lo lugar.

O geógrafo chinês Yi-Fu Tuan (1983) propõe uma interessante diferenciação entre espaço e lugar. Ele afirma que o espaço compreende aquilo que é físico, como uma sala de jantar que possui uma mesa, seis cadeiras, pratos, talheres etc. Já o lugar é “quando” esse espaço físico é habitado. O lugar diz respeito ao sentido que o espaço faz na vida da pessoa que o habita. A sala de jantar se torna o lugar do encontro, da conversa, do uso dos elementos físicos que adquirem significados na experiência. A ocupação dos espaços acontece quando eles ganham valores, como a luz que ilumina um ponto específico ou o vidro que protege uma prateleira de livros. As escolhas e ações humanas marcam os lugares.

Michel de Certeau (1998), a partir da tradição fenomenológica, sobretudo de Merleau-Ponty, também aponta para semelhante distinção, entre o espaço geométrico e o espaço antropológico, aquele da experiência, de uma relação singular com o mundo.

[…] o espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanista é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos – um escrito (Certeau, 1998, p. 202).

Apesar da inversão de nomes, o que nos importa, aqui, é pensar o lugar da leitura, isso é, das relações entre o que é lido e quem lê. Já ouvimos as expressões “ver com os olhos”, “ler com a boca”, mas, nós lemos com todo o corpo.

Ler é uma experiência que se faz com todos os sentidos e em diversas mídias. Caminhar por uma exposição com uma expografia pensada é uma experiência de leitura. E isso só é possível a partir do momento em que corpos são delineados e embrincados.

Quando Suzy Lee evidencia a dobra do livro, ela cria, ali, não uma espacialidade específica, não uma página entre outras duas, mas um entre-páginas. A dobra é um indício do imponderável. A dobra é um sinal da existência do próprio corpo do livro, um livro narrado em seu lugar específico.

O trabalho do designer de exibição (Schwartz, 2017) me fez perceber esse lugar específico em que acontece a minha interação com a mostra. A potencialidade de integração fala da experiência com o mundo, do lugar habitado. Ler sobre o bolo de fubá da avó da artista, no texto de apresentação da mostra, me fez compreender melhor a goteira sobre pradaria — o estalo da lenha queimando no fogão e o estalo do trovão.

Esse mundo feito de experiências prepara o espaço expositivo. Com todos os personagens bem delineados e a compreensão de que tipo de sujeito leitor eu havia me tornado na mostra, pude seguir para o final: uma estreita sala comprida, escura, com uma porta. Era o indício do fim, a última página. Aberta a porta, encontrei-me com um longo degrau. Era uma extensa soleira que dava para uma parede de vidro, com vista pra a rua. Isolados e em conexão com o mundo do qual fugimos, sentei-me para observar a minha fuga e todo meu trajeto até aquele momento. Não preciso dizer que a goteira se tornou chuva, que caia no vidro e que, no fim, a mostra azulou-se.

Considerações finais

É certo que, se decidíssemos pensar separadamente o desenvolvimento histórico de catálogos de arte, livros de artista, livros ilustrados e design de exposição, suas linhas teriam extensões distintas e algumas seriam mais longevas do que poderíamos sugerir neste texto. A decisão de entrelaçar essas linhas e nos restringirmos às fronteiras dessa trama perfez o recorte desta pesquisa.

Nesse sentido, apontamos para experiências de publicações de livros e catálogos que se misturavam com as propostas de exposições físicas, nos princípios da arte contemporânea, e para publicações impressas defendidas como espaços expositivos, como são os casos apresentados por Amir Cadôr, na mostra “Livro como performance”. Quando se misturam os entendimentos de espaços expositivos de museus e galerias com o suporte impresso de livros e revistas, percebemos que a compreensão de qual espaço poderia ser um lugar de exposição pode expandir-se ainda mais. Isso ocorre com o surgimento de trabalhos de arte desenvolvidos para a internet, já na década de 1990. Com a net.art, as propostas têm a imaterialidade do código das imagens digitais e a materialidade das telas dos computadores como suporte, matéria-prima, sistema de acesso e lugar de exposição.

Se, por um lado, as possibilidades expositivas atingem as telas e a virtualidade, por outro, o livro espacializa-se. Livros de artista extrapolam o entendimento do livro tanto como espaço expositivo possível quanto como suporte em formato de códex. Ainda que grande parte dos exemplos de livros de artista escolham o códex como forma para ressaltar sua condição entre livro e objeto de arte, outras propostas apresentam-se como ambientações e instalações. Ou seja, se uma exposição pode estar no formato tradicional de um livro, nada impede que um livro esteja disperso pelo espaço e exceda os modos de leitura disponíveis pelo objeto manuseável.

Ao passearmos por uma mostra e experimentarmos a leitura do design de exposição, compreendemos que o corpo do livro pode mostrar-se tanto nas dobras da encadernação de um códex quanto no atravessamento das portas entre as salas de uma galeria. Para isso, além do texto narrativo e descritivo, relacionamos o passeio pelo corpo da mostra e o design de exposição ali encontrado com o uso da capa e quarta-capa, páginas e dobras do códex em “Onda”, de Suzy Lee. Em ambos os casos, compreendemos que as possibilidades de leitura são ampliadas e enriquecidas quando páginas, imagens, paredes, chão e ambientes são experienciados não apenas como suportes, mas como corpo da obra, no qual podemos mergulhar, passear e atravessar, para transformarmos o espaço em lugar de leitura.

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TONINI, J. C.. Publicações artísticas: uma reflexão sobre publicações como arte pública em Vitória. Orientação: Gisele Barbosa Ribeiro. . Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Artes, 2016. Disponível em: http://repositorio.ufes.br/handle/10/2134. Acesso em: 19 out. 2023.

TUAN, Y.. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel, 1983.

.[1] Podemos pensar nos conhecidos exemplos dos catálogos de “January 5-31” e “March 1-31”, ambos organizados por Seth Siegelaub, em 1969. No caso da primeira publicação, realizada em um escritório-galeria, Siegelaub organizou o espaço de modo que o público tivesse acesso antes ao catálogo, com fotografias e cartas de intenção dos artistas, e depois à exposição. No caso da segunda, 31 artistas foram convidados para ocupar o espaço do catálogo da mostra, o qual permanecia, num formato de calendário, disponível na galeria. Embora o catálogo de “March 1-31” funcione como uma espécie de “exposição na publicação”, esta permanece submetida ao espaço da galeria. Além disso, algumas das propostas de arte integrantes da mostra necessitavam do espaço físico externo à publicado para se realizarem (cf. Oliveira, 2012; Tonini, 2016).

[2] Textos de artista, em diversos formatos e relações com os processos de criação, atravessam a história da arte. No caso do cenário brasileiro, esse tema se tornou frequente e mais bem compreendido a partir da publicação de “Escritos de artista” (Ferreira; Cotrin, 2007). Cabe ressaltar que tanto para o entendimento do peso que os escritos de artistas tiveram a partir dos anos 1950 quanto para a valorização das publicações de arte e publicações como exposição de arte, os conceitualismos e experimentalismos dos anos 1960-70 possuem grande relevância. Nesse sentido, é sempre bom ressaltar nomes como Helio Oiticica, Ferreira Gullar, Lygia Clark, George Maciunas, Henry Flynt, Art&Language, Sol LeWitt, Noigrandes, Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Oscar Masotta, Felipe Ehrenberg e tantos outros. Em continuidade, “livros de artista” também se tornam uma expressão corriqueira, embora mereça o devido espaço de discussão e contextualização (cf. Silveira, 2008, pp. 25-71).

[3] Partes dos pensamentos desenvolvidos nas próximas páginas poderiam e, no espaço apropriado, deveriam considerar propostas de arte urbana, land art e arte pública. Este é um caminho que pode ser desenvolvido em conjunto com as ideias aqui apresentadas.

[4] O conceito de aparelho, desenvolvido por Vilém Flusser, apesar de conhecido, muitas vezes permanece restrito a compreensão do surgimento e da disseminação da fotografia analógica. No entanto, o sentido de “aparelho”, para Flusser, ultrapassa esse entendimento e nos fala sobre quaisquer estruturas capazes de produzir conteúdo através de sua programação. “Por ‘aparelho’, não devemos compreender diretamente a máquina, mas todo e qualquer mecanismo produtor de artificialidade, através do qual a máquina atua. Mais do que um mediador entre natureza e cultura, os complexos mecanismos produtores de artificialidade, os ‘aparelhos’, constroem realidade, produzem um mundo de natureza distinta. A fotografia é eleita por Flusser como um produto de ‘aparelhos’ com o qual estabelecemos relações que podem se confundir com as imagens de outra natureza, ditas tradicionais.” (Hipólito; Pedroni, 2020, p. 66)

[5] A respeito do histórico e caracterização da net.art e da capacidade de deliberação como fundamental para as relações do público com trabalhos pensados para internet cf. Hipólito, 2015.

[6] Trabalho disponível em: <http://mouchette.org/&gt;

[7] Trabalho disponível em: <http://www.teleportacia.org/war/&gt;

[8] Sobre o sentido de virtualidade voltado para a participação e para a colaboração do público em proposta de arte cf. Pedroni; Hipólito; Marques, 2012.

[9] É justo informar que a exibição que essa narrativa sobre a visita a um espaço expositivo é ficcional. Ainda que ficcional, esses parágrafos realizam uma costura de várias experiências em espaços expositivos e de leitura de livros ilustrados. Costurados, alinhados uns entre os outros, essas experiências formam uma narrativa que, esperamos, auxilie você a habitar este artigo também como um espaço de experiência leitora.

[10] “Onda” faz parte de uma trilogia da mesma autora, com “Espelho”, de 2009, e “Sombra”, de 2010.

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