SCHWEBLIN, Samanta. Pássaros na boca e Sete casas vazias: contos reunidos. Tradução Joca Reiners Terron. 1. ed. São Paulo, SP: Fósforo, 2022.
Texto de Rodrigo Hipólito
Sonhei que minha família me impedia de sair da minha casa. Eles não moram aqui. Não moro com eles faz muitos anos. No sonho, tentava explicar para um dos meus irmãos, da maneira mais honesta possível, os motivos pelos quais não poderia conviver com ele. A conversa tensa precisava terminar, pois já estava atrasado para o trabalho. Não tem sido possível trabalhar com qualidade em casa, por conta do calor. Minha cabeça fervia, meus braços pulsavam, o suor escorria pelas pernas.
Antes que eu conseguisse sair, outro irmão me interceptou no quarto, junto com uma irmã. Estavam todos ali e isso já esgotava a pouca paciência. Mexiam em minhas coisas, abriam gavetas, revisaram caixas. Pareciam procurar por algo muito específico, mas em um procedimento quase corriqueiro. Estavam calmos como nunca os vi fora dos sonhos. Perguntavam por um vestido. Havia um vestido na minha parte do guarda-roupas. Davam referências sobre o vestido. Eu não me lembrava de quem era. Eles sabiam, mas preferiam não dizer. Queriam que eu me lembrasse.
Sem parar de insistir que precisava sair – havia alguma urgência indefinida no trabalho –, chutei que o vestido era de uma ex. A peça teria ficado ali por todos aqueles anos. Junto ao vestido, aparentemente, havia algo perigoso, que poderia me levar para a cadeia ou pior. Não fazia ideia do que seria e não me importava. Pensei em drogas. Visualizei um pacote genérico de drogas.
Tentei reunir minhas coisas e forçar a passagem, mas meus irmãos e irmãs barravam o caminho e insistiam na questão. Minha mãe estava na sala. Sentada no sofá. Observava a confusão. Senti vontade chorar pela simples ideia de ter que me justificar. O desespero acelerou meus batimentos e acordei por insistentes. Voltei a dormir e retornei ao sonho, ainda preso na sala. Precisava ir ao banheiro, pegar a bolsa, trancar a porta e correr. Estava muito atrasado. Desisti, me sentei no chão e acordei novamente.
Nas últimas semanas, as noites têm sido assim. Durmo e acordo entre pequenos pesadelos. Curtas situações extremas ou apenas estressantes, que tendem para uma resolução violenta, mas essa resolução nunca chega. Acordo antes.
Suponho que essa seja uma sensação parecida para quem lê os contos de Schweblin, reunidos em “Pássaros na boca e Sete casas vazias”. Ao falar sobre o livro, tanto Gabriel Pinheiro (Culturadoria, 2022) quando Cristhiano Aguiar (Quatro cinco um, 2022) fazem referência a pequenos pesadelos ou pesadelos despertos.

Recorte da capa de “Pássaros na boca e Sete casas vazias: contos reunidos” (Editora Fósforo). Fundo vermelho com ilustração de rosto branco, do nariz ao queixo, marcados com hachuras vermelhas, com asa de pássaro festa de linhas pretas saindo da boca fechada.
A maior parte desses contos é bem curta. A escrita de Schweblin me agrada, é crua e seca, mas sem perder o sabor ou dificultar a mastigação. A tradução de Joca Reiners Terron consegue preservar isso, ainda que haja opiniões contrárias (Alves-Bezerra, 2012). As impressões estão ali, se você tiver condições de se deixar atingir por elas. Como em um sonho, você não se lembra de todos os detalhes, apenas das sensações. É difícil lembrar de tudo o que vale a pena em um sonho. Quando você tenta descrever, faltam-lhe palavras. Organizar tudo em ordem poderia levar muito tempo e entediar sua audiência. Sem contar que não há esperanças de conseguir transmitir com riqueza o que, naquele pesadelo, fez com que você acordasse aos gritos.
Schweblin parece ter essa compreensão da impossibilidade de apresentar tudo. Ela nos deixa com a falta de detalhes, pois eles nos atrasariam, seriam um peso, uma segurança. E essas histórias não deixam margem para segurança. Você não tem o controle ou a compreensão. Ou melhor, não lhe é permitida a ilusão de compreender e controlar, que costumamos ter na realidade concreta.
O volume publicado pela Fósforo reúne dois conjuntos de contos. “Pássaros na boca” apresenta 18 história publicadas, originalmente, em 2009. “Sete casas vazias” é de 2015. Nessa segunda parte, há uma história mais longa, talvez uma noveleta. “A respiração cavernosa” deve ter sido a narrativa que mais me marcou nesse livro. É triste, desagradável, um horror sem saída, a fadiga da constatação do fim que se arrasta fora do nosso domínio. A narrativa nos é passada sob o ponto de vista de uma senhora que acredita que está para morrer. Ela reclama do marido, encaixota seus pertences, organiza as caixas com etiquetas, não sai de casa, irrita-se com os novos vizinhos, com a criança que parece ter feito amizade com seu marido. Ela entra em paranoia, rememora o constrangimento de quando passou mal no supermercado e se perde na dependência de uma realidade diferente daquela que consegue manter em sua cabeça. Esse é um pesadelo tão fatídico e corriqueiro, que deixa um medo amargo no fundo da garganta.
Tendo a concordar com Cristhiano Aguiar (Quatro cinco um, 2022) com relação à consistência das duas partes do livro. A primeira parte, “Pássaros na boca”, é bem variada e possui seus altos e baixos. Algumas histórias não me marcaram, enquanto outras são memoráveis. Certamente, o conto que está no título do livro se destaca. Uma mulher não sabe o que fazer com a filha que come pássaros. Ela a alimenta com as aves que consegue capturar em armadilhas feitas com caixas de sapato. A jovem não se alimenta de nada mais, permanece ociosa em casa e pouco se comunica. Não se queixa e quase não reage. Sem saber mais como lidar com a situação, a mãe chama o ex-marido e o obriga a levar a filha. Toda a narrativa é feita sob o ponto de vista do pai. Isso explicita seu desconforto diante da situação inexplicável e nos dá pistas para acompanharmos essa estranheza. O pai-narrador rememora e relaciona a condição da filha com a de uma mulher do circo que viu em sua infância. Ela se alimentava de ratos. Ele passa não apenas a encarar a situação como uma doença, mas a tratar a filha como um animal enjaulado. Deseja libertá-la, mas sua condição parece ser cada vez mais semi-humana. Ela não chora de fome, mas questiona se o pai a ama, o que evidencia a ligação entre amor familiar e sustento físico. O pai-narrador pensa em enlatados e alimentos para animais, vai até uma loja com essas ideias, mas compra um pássaro. Seu desespero aumenta quando a ex-mulher para de trazer as caixas com aves capturadas e não responde mais às suas mensagens. Antes de sumir, ela avisa que tinha contraído uma gripe. O elemento do contágio se torna nítido, embora jamais explicado. A mãe deixa de se comunicar e o pai aceita a animalidade da filha, sente-se mal com isso, ao mesmo tempo em que se dispõe a estudar a criação em cativeiro (Ceron, 2018, pp. 46-55).

Fotografia de Samanta Schweblin. Fonte: página da Editora Fósforo. Imagem em preto e branco de mulher branca e magra de cabelos lisos escuros presos em coque, com fios soltos sobre os ombros, olhando para a câmera com expressão séria.
Schweblin passeia por cenários urbanos, pampas e locais abandonados pelo tempo. Em todos eles, percebe-se uma distância, uma película de alucinação que nos permite não apenas abordar, mas aceitar o estranho. A abertura é com a violência contida de “Irman”, seguido pela desolação e os rituais de vidas devoradas ao peso da ausência, em “Mulheres desesperadas” e “Na estepe”. A insatisfação, a inadequação e a impossibilidade de tomar decisões razoáveis retornam em “O cavador”, “Matar um cão”, “Conservas” ou “Papai Noel dorme em casa”. Todos esses me irritaram ao ponto de serem lembrados.
Já “A mala de Benevides” e “Cabeças contra o asfalto” recortaram-se da coleção e ocuparam outra caixa na memória. No primeiro, um homem assassina a própria esposa, dobra seu corpo, o aperta em uma mala e a leva para a casa de seu psiquiatra. Quando descobre o conteúdo da mala, o doutor, já caracterizado como excêntrico, reage de modo inesperado para o protagonista. Em vez de repreender o homem e denunciar o crime, o psiquiatra contacta um famoso curador e organiza a abertura de uma exposição em sua garagem. A mulher morta na mala é a grande obra e Benevides é recebido como um gênio. Arrependido, desconcertado e dopado de remédios, ele não para de repetir “Eu a matei”. O público se assusta, mas não com a revelação de Benevides e sim com sua reação violenta ao repetir a frase, pois não seria adequada para o artista (Atik, 2015, p. 107).
“Cabeças contra o asfalto” poderia se passar no mesmo universo de “A mala de Benevides”. Nesse caso, acompanhamos um sujeito que se tornou artista como mecanismo para conter sua raiva e a violência que explode quando está diante de situações que considera injustas. Suas retratos de cabeças esmagadas lhe dão fama e dinheiro. De início, ele não parece conferir nenhuma valor especial a suas obras e demonstra certo desdém pelas pessoas que pagam caro para se verem em tais imagens. Mas, ao acreditar que conquistou a amizade sincera de seu dentista, sua percepção muda. Ele aceita a encomenda de uma imagem para o consultório e, diante da negativa e do horror do dentista quando vê o rosto ensanguentado e desfigurado na tela, o protagonista não sabe como lidar com a frustração da negativa. O artista persegue o homem, que decidiu chamar de amigo, e sucumbe à violência.
De “Pássaros na boca”, um último conto que não posso deixar de destacar é “Rumo à alegre civilização”. Um sujeito fica preso em uma estação de trem, pois não possui dinheiro trocado para a passagem, e o cobrador rejeita qualquer negociação. Com raiva e receio, o homem aceita o convite para comer na casa do cobrador, que todos os dias vai até a estação e faz sinal para que o trem não pare. Não há cidade por perto, mas há outras pessoas na mesma condição do protagonista. Todas ficaram presas, gostariam de voltar à civilização, mas se veem cada vez mais dependentes do cobrador e de sua maternal esposa. Os prisioneiros da estação trabalham na pequena propriedade, comem juntos e fingem que são uma família, até decidirem seguir com um plano que faça o trem parar. Quando o trem para, uma enxurrada de passageiros desce e exclama o alívio de conseguirem sair da máquina em eterna circulação. Todo o texto é suficientemente enervante para dispensar interpretações.
Já a segunda parte do livro, “Sete casas vazias”, é impecável em sua composição. Em “Nada disso tudo”, mãe e filha passeiam de carro por um bairro de casas chiques. Depois de atolarem o veículo em um gramado, a situação logo sai do controle. A mãe invade a casa e se recusa a sair. Ela avalia e critica objetos e decorações, sobe para os quartos e se tranca no banheiro. A filha consegue retirá-la da casa e vão embora. A filha nunca conseguiu compreender a mania da mãe de vistoriar e mexer nos jardins das casas alheias. Mas, essa compreensão parece surgir quando a dona da casa invadida vai até elas a procura do açucareiro roubado, que a mãe está para enterrar no quintal.
Em “Meus pais e meus filhos”, um homem leva os pais idosos e dementes para visitar os filhos, a ex-esposa e seu novo namorado. Excitados pela agitação e o novo ambiente, os pais idosos estão alegres e brincam com a mangueira, no quintal, nus. A mulher quer resolver a situação antes que as crianças cheguem em casa e vejam os avós pelados. Não apenas as crianças chegam, como desaparecem com os avós. Começam as buscas e as brigas, chamam a polícia, que apenas consegue entender “Está dizendo que tem criança e adulto pelados e juntos?”. Enquanto entram na viatura para procurar próximo da rodovia, o homem olha para trás e vê seus pais e seus filhos pelados, rindo e esfregando a bunda no vidro da sala.
Em “Acontece sempre nesta casa”, uma mulher e seu filho lidam com o luto do vizinho e de sua esposa, que insistem em atirar as roupas do filho morto para o jardim ao lado. “Quarenta centímetros quadrados” traz o desassossego de uma mulher que tenta reconstruir sua vida, precisa morar na casa da sogra, escuta suas histórias e descobre a mesma necessidade triste de apenas não voltar. Algo similar acontece com “Sair”, que encerra o livro. A mulher de roupão desce o elevador, encontra um estranho, com quem pega carona, param em uma loja, até o encanto se quebrar e a realidade se impor. Já “Um homem de sorte” nos desconcerta com uma tensão constante. Talvez seja o único conto em que a ação é desenvolvida com tal frenesi que engolimos as palavras na expectativa de que o pior não aconteça. Desesperados para vencer o transito da capital e levar ao hospital a filha mais nova, intoxicada com água sanitária, os pais apelam para o absurdo: pedem que a filha mais velha tire a calcinha branca da escola e balançam do lado de fora do carro para chamar a atenção de demais motoristas, o que funciona. Enquanto espera a resolução do desastre, sentada em um banco da sala de espera e lamentando ser seu aniversário, a filha mais velha conhece um homem que a leva ao shopping para comprar uma calcinha nova.
Por último, embora não seja a história que encerra o volume, temos “A respiração cavernosa”. Esse foi o conto que me derrubou e me fez escrever esta resenha. Porém, agora, nesse parágrafo final, me pergunto se quero ou se tenho muito a dizer sobre ele. Quando encerrei a leitura, a primeira coisa em que pensei foi em pessoas que não deveriam ler essa história sem um aviso e muita preparação, pois seriam destruídas. Isso não aconteceria com tanta gente e me arrisco a dizer que a maioria talvez passe por “A respiração cavernosa” sem se afetar. O que destrói é a experiência do tempo, não o medo pessoal da velhice. O que arrasta o estômago até a sola dos pés é a realidade repetida, é a consciência do presente, é a preocupação com quem ainda está aqui. O modo como Schweblin manipula nossa percepção sobre a protagonista, joga com nossas emoções, nos faz apontar o dedo, julgar, irritar-se até perder a firmeza é magistral. São tantas coisas vivas guardadas em caixas organizadas, etiquetadas e esquecidas.
Referências
AGUIAR, Cristhiano. A um passo do horror. Quatro cinco um. 28 de jul. 2022.
ALVES-BEZERRA, Wilson. Na Tradição dos Grandes Mestres. Estadão. Arte & Lazer, 30 mar. 2012. Acesso em: 24 mai. 2024.
ATIK, M. L. G. O insólito na narrativa de Samanta Schweblin. Todas as Letras – Revista de Língua e Literatura, [S. l.], v. 17, n. 2, 2015. Acesso em: 24 mai. 2024.
CERON, Lia Cristina. Um mundo perturbador e violento: uma leitura dos contos de Samanta Schweblin. 2018. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Acesso em: 24 mai. 2024.
PINHEIRO, Gabriel. Pássaros na boca: O terror cotidiano de Samanta Schweblin em dose dupla. Culturadoria. 06 de set. 2022. Acesso em: 24 mai. 2024.
SCHWEBLIN, Samanta. Pássaros na boca e Sete casas vazias: contos reunidos. Tradução Joca Reiners Terron. 1. ed. São Paulo, SP: Fósforo, 2022.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.