[texto de processo] Remontagem da memória corrompida

Texto de Rodrigo Hipólito

Texto produzido para a disciplina de Seminários avançados em arte e cultura (PPGA-UFES, 2024.1) a partir da aula inaugural do Prof. Dr. Afonso Medeiros (UFPA), “A (des)figuração de indígenas e negros na arte: nota sobre (de)colonialidade da imagem” (UFES, 20 jun. 2024).

Logo de início, Afonso Medeiros explicita que colonização, modernização e globalização são processos de um mesmo conjunto, ou seja, intrínsecos. Nesse sentido, não é possível falar de superação do período colonial com a chegada da modernidade ou da intensificação da globalização, no final do século XX. Embora a colonização não se dê do mesmo modo como foi praticada séculos atrás, é mais razoável observá-la em fases. Assim, podemos perceber que os estados europeus colonizaram, primeiramente, as nações das Américas e, a partir do século XIX, empreendem maior força em uma segunda fase, voltada para os continentes africano e asiático. Cabe dizer que a colonialidade foi uma invenção europeia, posta em prática a partir do século XIV, com a invasão das Américas, com a estruturação de um “mundo colonial”, dentro do qual foi plausível a exploração dos povos originários e escravizados em diversos níveis, de modo pragmático e econômico (Dussel, 2000, pp. 51-88).

As grandes guerras da primeira metade do século XX e as revoltas que resultaram nas declarações de independência dos estados dessa segunda fase colonizatória não significaram o encerramento das relações de dominação. Além da dependência econômica (que leva, por exemplo, países africanos a não possuírem banco central, pois sua economia é determinada pelas reservas do banco central francês), a segunda metade do século XX evidencia as dinâmicas imperialistas em outras áreas, como a colonização cultural.

É nesse cenário de dependência e exploração sublinhadas, que florescem as vertentes mais fortes dos pensamentos decoloniais. Embora Medeiros prefira seguir o caminho de comparar as visões da escola francesa sobre a colonização e a globalização, com o comparativo acertado entre a visão de Aimé Césaire, na década de 1950, e Jacques Le Goff, já nos anos 2000, é justo ressaltar que havia pensadores anticolonialistas nas Américas antes da metade do século XX. Ainda que não tenham permanecido muitos de seus escritos, Simón Rodrigues, por exemplo, na primeira metade do século XIX, já falava abertamente contra o colonialismo, pela educação como forma de libertação, pelo subsídio das famílias pobres para manutenção das crianças na escola e ideias que apenas ganhariam público, com a máxima “Si no inventamos, fracassamos”, no anos 1990 (Camnitzer, 2008, p. 59).

Mas, certamente, quando falamos da estruturação de um pensamento decolonial, devemos nos voltar para o “Discurso sobre o Colonialismo” (Césaire, 1978 [1950]) e no “Retrato do Colonizado precedido de retrato do colonizador”, de Albert Memmi (2007 [1957]). Dito isto, na procura por dialogar com essas preocupações de pensadores ligados ao sul global, as escolas europeias continuam autocentradas, o que demonstra a incapacidade do debate que não se dê nos eixos culturais subalternizados, como ressalta o próprio Alfonso Medeiros.

Culturalmente, o regime feudal foi exportado durante o processo de colonização, e isso fica explícito na colonização estético-artística sobre as produções locais. As produções locais foram pilhadas, catalogadas e higienizadas de sua visão de mundo e de seu regime estético, enquanto outra iconografia era imposta e inventada sobre esses povos. Esses processos podem ser observados com nitidez nas gravuras de Théodore De Bry, feitas e disseminadas na Europa do século XVI, como contribuição para a construção de um imaginário fantástico e monstruoso sobre os povos ameríndios. Com maior requinte, o exotismo e a catalogação sistemática dos povos não-europeus continuaram explícitos nas imagens de Albert Eckhout e de Frans Post, já no século XVII.

Como tais imagens geraram outras imagens, ao ponto de sua produção ter saído do controle e de seu conteúdo ter perdido a frágil linha factual que as prendiam aos primeiros invasores, compreende-se que Medeiros afirme que os europeus plagiam e copiam a si mesmos e artistas viajantes, o que redobra essa imaginária em construção.

Por fim, no século XIX e durante os modernismos, até a metade do século XX, a cena brasileira e americana mantiveram a diferenciação entre artista, de fundo europeu, e artífices, de fundo nativo e popular. Essa diferenciação outorgou aos artistas de formação europeia, ainda que brasileiros, a prerrogativa de pensar a brasilidade e repensar os sentidos dos nativos e negros escravizados, em suas representações mais ligadas às vanguardas estrangeiras do que aos desenvolvimentos locais. Somente nos anos 1970-80 é que os artefatos ameríndios e africanos são institucionalizados como arte. Sobre esse ponto, ainda poderíamos nos perguntar “isso lá é bom?”. O certo é que estamos no processo de remontagem da história e de resgate da memória, ou ao menos do pouco que for possível se resgatar de algumas delas.

As dúvidas sobre como nos posicionarmos frente ao estrangeiro não desaparecem com a simples tomada de consciência do giro decolonial. Nota-se o caso das primeiras décadas da arte contemporânea na Argentina. No final da década de 1950, a chamada internacionalização da arte significava romper com um suposto isolamento do cenário argentino e promover a integração do que havia de mais recente no local aos caminhos do global; em 1960, falava-se de internacionalizar com o sentido de tornar os artistas locais competitivos; poucos anos depois, internacionalização passa a ser importação, depois, exportação da arte contemporânea, e ainda exibição do crescimento do público local; ao fim daquela década, internacionalizar tornou-se sinônimo de submissão ao imperialismo (Giunta, 2001, p. 30). Nas décadas seguintes, o pêndulo entre dependência e integração continuou a se movimentar. Marta Minujín foi considerada desgarrada do cenário local por muitos anos. Em 26 de setembro de 1969, uma nota na revista Señoras e Señores nos leva a pensar em como a artista, tão bem quista por Romero Brest, se integrava ou não ao cenário local:

Buenos Aires la abruma: “Esto está terrible, cada vez peor y peor. Me asusta tanto. Y no hay sitios en los que estar tranquilo, la gente mira. Me molestan los testigos, los jueces. Y todos los muchachos y chicas lindas se han ido. A Río, a New York, a Europa. Ya no hay nadie”. Es inútil hablarle de otros, decirle que es ella la que viene de afuera, la que está desconectada. (Minujín, 2015, p. 108)

Os artistas que produziam no Centro de Artes y Comunicación, durante o anos 1970-80, sob a batuta de J. Glusberg, tentam integrar-se aos debates internacionais sobre arte e tecnologia, depois passam às parcerias sul-sul e, por fim, representam a América Latina no palco estrangeiro das bienais. Nos anos 1990, o adjetivo “light” foi usado por detratores que apontavam artistas ligados ao Centro Cultural Ricardo Rojas como alienados do debate político local e vendidos às propostas neoliberais, em dissonância com as preocupações micropolíticas de suas propostas (Lemus, 2024).

Em cada cenário, os atravessamentos culturais, frutos dos processos de colonização, modernização e globalização, mostram as marcas com as quais devemos aprender a conviver. Tal convívio, no entanto, não deve ser desprovido de antagonismo e não deve ignorar os atritos. Nossas heranças e a imagem que fazemos de nossa cultura são mestiças, mas não homogêneas, logo, não há por que esperar que nossa arte seja desprovida de contradições.

Referências

CAMNITZER, Luis. Didáctica de la Liberación: arte conceptualista latinoamericano. Murcia, ES: CENDEC, 2008.

CÉSAIRE, A.. Discurso sobre o colonialismo. Trad. Noêmia de Sousa. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.

DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000.

GIUNTA, Andrea. Vanguardia internacionalismo y política en los años sesenta. Buenos Aires: Paidós, 2001.

LEMUS, Francisco. Arte e vida: os anos 1990 em Buenos Aires. Trad. Rodrigo Hipólito. Revista do Colóquio, v. 14, n. 23, jun. 2024.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

MINUJÍN, Marta. Marta Minujín: happenings y performances. – 1a ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ministerio de Cultura del Gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, 2015.

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