[texto de processo] Gullar, Duchamp e o significado nos objetos

Rodrigo Hipólito

Joani Caroline

Horrana de Kássia

Texto produzido para a disciplina de Tópicos Teóricos, ministrada pela professora Angela Grando (Departamento de Teoria da Arte e Música, UFES, 2011.1), a partir da leitura de “Teoria do Não-Objeto”, de Ferreira Gullar (2007), 18 abr. de 2011.

Nessa altura, a obra de arte e os objetos parecem confundir-se. Sinal desse mútuo extravasamento entre a obra de arte e o objeto é a célebre blague de Marcel Duchamp enviando para a Exposição dos Independentes, em Nova York [1917], um urinou-fonte, desses que se usam no mictório dos bares. Essa técnica de readymades foi adotada pelos surrealistas. Ela consiste em revelar o objeto deslocando-o de sua função ordinária e assim estabelecendo entre ele e os demais objetos novas relações. A limitação desse processo de transfiguração do objeto está em que ele se funda menos nas qualidades formais do objeto que na sua significação, nas suas relações de uso e hábito cotidianos. Em breve aquela obscuridade característica da coisa volta a envolver a obra, reconquistando-a para o nível comum. Nesse front, os artistas foram batidos pelo objeto. (Gullar, 2007, p. 92. Grifo do autor)

No grifo indica-se um posicionamento de Gullar com relação a estratégia adotada por Duchamp que aparentemente limita de maneira arbitrária as possibilidades presente em “A Fonte”. Esse posicionamento talvez possa ser melhor entendido quando pensamos no seu oposto: o que faz com que o ato de Duchamp não seja limitado é exatamente o fato de ele não se fundar nas qualidades formais do objeto. Mas, não é uma falha do autor, simplesmente a discussão das características formais, no modo como se inserem na teoria de Gullar, são de fundamental importância.

O não-objeto não possui essa opacidade, e daí o seu nome: o não objeto é transparente à percepção, no sentido de que se franqueia a ela. E a diferença entre os dois torna-se mais precisa: só pelas conotações que o nome e o uso estabelecem entre o objeto e o mundo do sujeito, pode o objeto ser apreendido e assimilado pelo sujeito. É, pois, o objeto, um ser híbrido, composto de nome e coisa, como duas camadas superpostas das quais uma apenas se rende ao homem – o nome. O não-objeto, pelo contrário, uno, íntegro, franco. A relação que mantém com o sujeito dispensa intermediário (na verdade isso jamais seria possível). Ele possui uma significação também , mas essa significação é imanente à sua própria forma, que é pura significação. (Gullar, 2007, p. 95. Grifo do autor)

Naquele momento da passagem modernista, quando se tentava estabelecer novos paradigmas que justificassem e dessem permanência para uma época, no início do século XX, podemos separar dois caminhos relacionados com o presente apontamento: um vinculado a materialidade da obra, um estudo que culminará na aceitação da fenomenologia da percepção como solo para o cultivo da experiência em arte; outro comprometido com o estudo dos significados, que está ligado a filosofia analítica e, em um segundo momento, ao estruturalismo.

Duchamp lida com o significado, com o uso da linguagem em suas diretrizes comunicacionais, e, nesse sentido, atinge sempre a instituição. Já Gullar leva toda a discussão para a relação fenomenológica com a materialidade geradora de significado. Essa distinção é fundamental para compreendermos as escolhas feitas por Gullar, quando constrói a base histórica de onde retira entendimento das necessidades de experiências que apenas um não-objeto propiciaria.

Lygia Clark. Caminhando. 1963.

Lygia Clark, “Caminhando”, 1963. Fotografia em preto e branco de mulher de vestido sentada em um banquinho, vista de cima, cortando uma fita de papel branco com uma tesoura. As pontas da fita de papel foram unidas de modo a formar uma fita de moebius.

Para que pudesse desenvolver plenamente uma teoria que coloca a fenomenologia da percepção, praticamente, como um método de construção da experiência em arte, o autor não possui alternativa além de negar o caminho indicado por Duchamp, que é o da construção crítica de uma experiência em arte através de um jogo de significados, ou, da definição conceitualista. No entanto, talvez, esses não sejam caminhos diametralmente opostos. Até por possuírem uma intenção que, generalizada, é a mesma, “trazer para” e tornar propícia a experiência.

Afirmar que, no campo aberto por Duchamp, “os artistas foram batidos pelo objeto” funciona como afirmação apenas quando se concebe as intenções gerais do sistema de arte direcionadas para a experiência fenomenológica como geradora de significados absolutamente novos. Ou seja, a limitação da estratégia dos ready-mades pode sim ser afirmada por Gullar, mas apenas dentro dos objetivos de justificação e edificação dos ideais neoconcretos. Nesse sentido, a crítica do autor ao caminho da conceituação é bastante funcional.

Exatamente por ser essa crítica bastante funcional é que devemos nos atentar para as possibilidades do “outro caminho”. A chamada blague da Fonte não poderia ser descrita apenas por consistir “em revelar o objeto deslocando-o de sua função ordinária e assim estabelecendo entre ele e os demais objetos novas relações”. Não precisamos nos aprofundar nos méritos dessa estratégia, até para não fugirmos completamente às questões do não-objeto, mas, é interessante ter em mente que: (i) a partir das atitudes referentes à ação de Duchamp foi possível surgir, no sistema de arte, uma problematização abrangente e ao mesmo tempo mais densa das propriedades inerentes à arte e ao fazer artístico, resumida na pergunta inocente, mas ainda vigente de “o que seria arte?”; (ii) ao procurar ter uma experiência direta com um significado já existente, em vez produzir novos itens estéticos, por mais propícios que fossem para a geração participativa com o espectador, a estratégia Duchamp não ignora o “obscurecimento do mundo” e a “despotenciação do espírito” (Cf. Pessoa, 2008; Fogel, 2004; Heidegger, 1987)[1] causados pelo distanciamento da verdade contida em cada coisa, como uma característica dos extremos atingidos pela sociedade tecnicista de consumo massificado; e (iii) essa estratégia permitiu, também, que houvesse um  posicionamento crítico, analítico e interno com relação ao esvaziamento das imagens como ícones que representam a si mesmos – esforço empreendido já no anos de 1960.

Se retomamos a teoria do não-objeto, é possível enxergar, em alguns ápices do movimento Neoconcreto, modos de se efetivar essa teoria sem negar o deslocamento como maneira de propiciar uma relação direta com significados. A obra de Ligia Clark, “Caminhando” (1963), é um exemplo de deslocamento geneticamente ligado com as atitudes dadaístas. Pois, apesar de não se tratar do deslocamento de um utensílio, aponta para o deslocamento de uma ação. O “ato de agir” é também detentor de significado. Nesse caso, salientamos que a era tecnicista deixa de dispor o ser humano como um “ser ativo” para dispô-lo como um ser “produtivo” (Cf. Jardim, 2011). Isso se dá por tomarmos, erroneamente, o ato de agir como se possuísse a finalidade de efetivar um trabalho, uma projeção. Transfigurado em fazer, o ato de agir não inicia mais processos, apenas da conta das necessidades de maneira automatizada. Nesse sentido, o ato de agir é posto no mesmo lado da moeda onde se encontra o utensílio. O deslocamento do ato de agir de sua posição deturpada para sua posição íntegra ilumina o significado e, assim, dá acesso à verdade do ser. Da mesma maneira: demonstrar o originário da coisa encoberta por sua posição de utensílio, através do deslocamento dessa coisa, faz com que possamos ter uma experiência direta com a essência da coisa, ou seja, faz com que um objeto seja transfigurado em algo dotado de praticamente todas as propriedades do não-objeto, com a exceção da propriedade geradora de significados absolutamente novos já na experiência direta. Assim como Gullar aponta uma limitação onde reside a força da estratégia de Duchamp e, com isso, consegue minar as possibilidades de avanço do deslocamento no interior de sua teoria, também poderíamos apontar que a força geradora de significados através da relação com os não-objetos leva a um obscurecimento ainda maior, pois acumularia significados novos sem que possamos nos relacionar com aqueles encobertos pela utilidade. Esse apontamento, assim como o posicionamento de Gullar com relação à atitude de Duchamp, não se sustentaria, por conta da possibilidade de convergência demonstrada em “Caminhando”, de Lygia Clark (1963).

Referências

GULLAR, Ferreira. Teoria do Não-Objeto, 1959. In: Experiência neoconcreta: momento limite da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

JARDIM, Eduardo. “Homo Faber: o animal que tem mãos”, na visão de Hannan Arendt. In: PESSOA, Fernando; BARBOSA, Ronaldo. Mão de Obra: Homo Faber: o animal que tem mãos. Seminários Internacionais Museu Vale. Vila Velha, ES: Museu Vale, Fundação Vale, 2011, pp. 102-120.

PESSOA, Fernando. Indigência e Arte. In: LOPES, Almerinda;  PESSOA, Fernando. Arte em Tempo Indigente: “… E para que poetas em tempo indigente”. Seminários Internacionais Museu Vale. Vila Velha, ES: Museu Vale, Fundação Vale, 2008, pp. 22-42.

FOGEL, Gilvan. A respeito da “despotenciação do espírito”. Sofia, Revista do Departamento de Filosofia da UFES, v. 9, 2004, pp. 75-96.

HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Apresentação e tradução de Emmanuel Carneiro Leão. 4a. edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987.

[1] Certamente a ação de Duchamp é anterior a teorização de Heidegger, o que não se constitui, aqui, um anacronismo, mas uma maior valorização do significado do trabalho duchampiano, pois a conjuntura descrita por Heidegger não era uma novidade.

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