[texto de processo] Sobre os mundos da arte

Texto de Rodrigo Hipólito

Recentemente, em uma disciplinas do doutorado (PPGA-UFES), discutimos o clássico texto de Howard Becker, “Mundos artísticos e tipos sociais” (1977). Ele pensa o mundo e, logo, as realizações culturais, por uma ótica materialista construtivista. A partir dessa visão, Becker afirma que: (i) obras de arte podem ser entendidas pela cadeia coordenada de pessoas e ações necessárias para sua produção; (ii) essa coordenação pode se dar por convenções; (iii) haveria tantos mundos da arte quanto cadeias de produção; e (iv) o valor da obra dependeria dos atores e instituições que a legitimam.

Hoje, poderíamos nos perguntar se essas constatações se mantém válidas em cadeias de produção globalizadas, nas quais os atores desconhecem o destino e a origem do que produzem. Mas, é justo dizer que Becker revisou muitos dos pontos indicados naquele texto de 1977 alguns anos depois, em 1982, com “Mundos da arte” (2010), que levou a diversos questionamentos sobre o papel dessas cadeias de produção para processos criativos e valoração de trabalhos.

Sem nos debruçarmos sobre a extensão de “Mundos da arte”, o primeiro ensaio estipula o pano de fundo das cadeias de produção coordenadas e, sobre ele, define tipos de artista que trabalham dentro ou fora desse sistema: (i) profissionais integrados ao sistema de convenções (cânone); (ii) inconformistas, que propõem novas convenções para, assim, poderem ser assimilados em um novo cânone; (iii) ingênuos, que produzem sem serem integrados por princípio; e (iv) populares, que estão integrados às comunidades onde suas práticas têm valor cultural alheio ao sentido de arte.

Toda essa sistematização, para além dos possíveis questionamentos e atualizações pelas quais possa passar, faz com que seja inevitável, por honestidade, indicar que o esforço de Becker, naquele momento, ocorria no centro de uma discussão que começara na década anterior e estendeu-se até os anos 1990.

Arthur C. Danto introduziu sua teoria do “mundo da arte” em 1964. A ideia central dessa discussão veio da dúvida sobre quais seriam as diferenças entre obras de arte e outras coisas fabricadas por seres humanos. Esse problema se tornou particularmente relevante com o advento de obras que não se diferenciavam fisicamente de objetos ordinários, como a “Brillo Box” de Andy Warhol, que seguiram como um dos exemplos prediletos do autor por décadas. Essas obras desafiavam, e ainda desafiam, a capacidade dos observadores de identificar propriedades intrínsecas que definiriam um objeto como arte.

Se as diferenças entre objetos comuns e obras de arte não estaria em qualquer aspecto formal, Danto argumentou deveria estar em algo “que o olho não pode perceber”. Não se trataria de qualquer iluminação religiosa, mas de costumes, conhecimentos e discursos, ou seja, de uma “atmosfera de teoria artística” e “um conhecimento da história da arte”, seja formal ou não. Em outras palavras, para reconhecer algo como arte, é necessário ter contato ou uma percepção organizada sobre o contexto teórico e histórico em que o objeto é inserido. Esse contexto é o que Danto chamou de “mundo da arte”.

Esse tipo de teorização responde a dúvidas de décadas anteriores e continua reflexões como as de Ludwig Wittgenstein, que explorou conceitos abertos e contextuais, já em uma defesa de que o conceito de arte é indefinível de maneira fixa e essencial. Já um pouco distante da determinação da condição artística pelos mesmos moldes de qualquer enunciado, ou como um problema da linguagem, Danto defendeu que é o “mundo da arte” que constrói e sustenta a possibilidade de existência desses objetos e ações artísticos.

De saída, é possível identificar claramente na construção argu­mentativa de Danto, em 1964, a adoção de modelos teóricos que se de­senvolviam no campo da filosofia da ciência, sobretudo a noção de “des­coberta carregada de teoria” (theory-laden discovery) apresentada por seu colega N. R. Hanson em 1958, segundo a qual a própria observação científica não pode ser neutra, i.e., a evidência observacional é essen­cialmente carregada de teoria, e a noção de “mudanças de paradigma” (paradigm shifts) introduzida por Thomas S. Kuhn em 1962. A obra de Kuhn causou controvérsia por afirmar que a ciência descreve o mundo através de conceitos que são históricos e passíveis de mudança. Em lu­gar de uma sequência de desenvolvimentos cumulativos, guiados por um método único e uniforme, a história da ciência, de acordo com Kuhn, é marcada por conjuntos incomensuráveis de problemas científicos e so­luções aceitáveis: “quando mudam os paradigmas, muda com eles o pró­prio mundo”. E, ainda: “os paradigmas provêm não apenas um mapa, mas algumas das direções essenciais para a produção de mapas”. (Silveira, 2014. p. 57)[1]

Andy Warhol. Brillo boxes, 1964.

Andy Warhol. Brillo boxes, 1964. Serigrafia sobre acrílico. National Gallery of Canada, Ottawa. Dezenas de caixas estampadas com logo da marca de sabão Brillo em tons de vermelho e azul sobre fundo branco, empilhadas no canto de uma sala branca.

Esta teoria inicial tinha um caráter aparentemente relativista, uma vez que a existência de arte estava vinculada a condições contextuais variáveis, determinadas pelas teorias dominantes em um dado momento histórico. No entanto, em “The Art World Revisited: Comedies of Similarity” (1992), Danto reorganiza sua teoria para se distanciar de uma interpretação institucional rígida. Ele reconhece que a primeira ideia de “mundo da arte” poderia ser lida como uma versão incipiente da Teoria Institucional da Arte, desenvolvida por George Dickie (1969), que propunha que a arte é definida socialmente pelos membros de uma instituição chamada “mundo da arte”. Danto procura se afastar dessa interpretação e enfatiza o caráter cognitivo de sua teoria.

Nesse sentido, para que chamemos algo de arte, deveria existir um “discurso de razões” que justificasse compreender essa coisa dentro do cânone artístico. Ele argumenta que o reconhecimento de algo como arte não depende apenas de um decreto institucional (como na teoria de Dickie), mas de um conjunto de razões historicamente fundamentadas que permitem ver uma obra como parte integrante do “mundo da arte”. Essas razões devem ser objetivas e inferíveis, o que introduz um aspecto normativo em sua teoria e a afasta da determinação institucional.

A principal diferença entre a teoria de Danto e a Teoria Institucional de Arte de George Dickie reside na natureza e na função do “mundo da arte”. Para Dickie, o “mundo da arte” é constituído por uma comunidade de especialistas e instituições (como museus, galerias e críticos) que conferem a determinados objetos o status de “candidatos à apreciação”. Dickie define a arte em termos de uma atribuição social. Nessa lógica, um objeto se torna arte porque foi aceito como tal por aqueles que detêm autoridade dentro dessa instituição.

Danto, por outro lado, argumenta que a atribuição de status artístico a um objeto deve ser fundamentada em razões objetivas que transcendem o mero consenso ou decreto de uma elite institucional. A partir tanto do ensaio de 1992 quanto do trabalho mais extenso, desenvolvido em “A transfiguração do lugar comum” (1981), o “mundo da arte” passa a ser uma estrutura histórica e teórica, um campo no qual as obras de arte existem em relação a outras obras de arte e teorias que as sustentam. Essa estrutura não apenas legitima o que é ou não arte, mas também é responsável pela própria existência da arte como fenômeno cultural.

Enquanto a teoria de Dickie pode ser criticada por implicar um caráter circular ou arbitrário, para o qual o status de arte é conferido apenas pela designação das autoridades e instituições da área, Danto defende que o “mundo da arte” deve ser compreendido como um sistema de significação e interpretação. Nesse sentido, obras de arte, como a “Brillo Box” de Warhol, só podem ser compreendidas como arte dentro de um contexto que envolve o diálogo com outras obras, imagens e aspectos culturais de sua época, além de interpretações que refletem seu lugar na história da arte.

Além disso. Danto enfatiza que o “mundo da arte” é, em última análise, um “discurso de razões institucionalizado”. Isso significa que, ao contrário da visão de Dickie, na qual o reconhecimento da arte se baseia na deliberação de especialistas e instituições, para Danto, ser membro do “mundo da arte” envolve a capacidade de participar de um discurso crítico e fundamentado, em vez de simplesmente exercer autoridade.

As revisões e mudanças na teoria de Danto, especialmente quando confrontadas com a Teoria Institucional de Dickie, evidenciam um esforço para esclarecer a natureza da arte e o papel do “mundo da arte” na sua definição. Danto procura demonstrar que a arte não é definida apenas pela autoridade institucional, mas por um processo cognitivo de interpretação e justificação historicamente informada. Ao diferenciar sua posição da de Dickie, Danto estabelece uma teoria que busca reconciliar o papel das instituições com a necessidade de um fundamento racional e objetivo para a existência da arte.

Essa distinção entre as duas abordagens reflete diferentes entendimentos sobre a relação entre arte e sociedade. Para Danto, a arte é um fenômeno que depende de um contexto teórico e histórico robusto, enquanto para Dickie, a arte é definida por uma comunidade institucional que a valida. Para ambos, assim como para boa parte da comunidade interessada em pensar arte, qualquer tentativa essencialista de determinação de obras de arte seria, na melhor das hipóteses, didatismo, e na pior, preconceito e elitismo.

Referências

BECKER, Howard S.. Mundos artísticos e tipos sociais. In: VELHO, Gilberto. Arte e Sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977, p. 9-26.

BECKER, Howard S. Mundos da arte. Trad. Luís San Payo. Lisboa: Livros Horizonte, 2010.

DANTO, Arthur C.. The artworld. The journal of philosophy, vol. 61, n. 19, 15 out. 1964, p. 571-584.

DANTO, Arthur C.. The transfiguration of the commonplace: a philosophy of art. Cambridge: Harvard University Press, 1981.

DICKIE, George. Defining art. In: American philosophical quarterly, vol. 6, n. 3, jul. 1969, p. 253-256.

KUHN, Thomas S.. The structure of scientific revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1970.

SILVEIRA, C.. O mundo e os mundos da arte de Arthur C. Danto: uma teoria filosófica em dois tempos. ARS (São Paulo), v. 12, n. 23, p. 52–79, jan. 2014.

[1] Os parágrafos seguintes são uma síntese com breves comentários do que Cristiane Silveira desenvolve no artigo referenciado.

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