[crítica] As marés e os ciclos nas produções de Monica Nitz

Texto de Rodrigo Hipólito

Originalmente publicado em: Jornal ES Hoje. Cultura, p. 9, 31 jan. 2025.

Monica Nitz, Da ilha, 2021. Fotografia de Ricardo Sá. Cortesia da artista. Descrição: Mulher branca de costas, com uma camiseta preta e braço tatuado, segurando uma pintura abstrata de aguadas avermelhadas e olhando para a câmera sobre o ombro esquerdo.

Ao esboçarmos a paisagem da arte produzida no Espírito Santo nos últimos 25 anos, o nome de Monica Nitz é indispensável. Como produtora e agitadora cultural, ela esteve por trás de um sem-número de festivais, oficinais, cursos, filmes e mostras. Como artista, perdemos as contas das exposições, performances e intervenções. O fluxo de seu ateliê não estanca. A intensidade, a constância e a personalidade de sua produção estipulam uma presença marcante em um panorama extenso e plural.

Formada em Comunicação Social pela FAESA (1999) e em Artes Plásticas pela UFES (2007), Monica é uma artista multilinguagem. Isso significa que sua produção faz uso de diversos meios, como pintura, desenho, vídeo, música, fotografia, texto, objetos, documentos, o próprio corpo e a paisagem, natural ou urbana. Nessa variedade, pintura e vídeo funcionam como aglutinadores de suas propostas.

Desde suas primeiras mostras individuais, ela tem escolhido a valorização do processo. Suas ações resultam em imagens e objetos. Mas, o caminho para o resultado é ressaltado pelo modo de fazer. Suas pinturas são ação, e observar seu surgimento é tão impactante quanto a obra pronta. Os vídeos narram memórias de família, o dinamismo do seu estilo, ou as mudanças de ritmo de uma vida inseparável da paisagem de Vitória.

Monica Nitz, Lunação, plano do filme, 2024. Imagem de Francisco Xavier. Cortesia da artista. Descrição: imagem espelhada e com sobreposições da artista de olhos fechados e queixo erguido. o Espelhamento forma uma composição caleidoscópica.

Depois de realizar experiências com performance e pintura na Itália, na Áustria e na França, em 2014, com o projeto Memória da Cor, Monica mergulha nos sentidos de habitar e contemplar a organicidade da natureza. É como se estabelecesse um ateliê onde lhe for permitido viver. Nessas moradas, dedica-se com afinco ao afloramento das relações entre documentos, pintura de ação, a veia videográfica e a percepção particular sobre o mundo em permanente metamorfose.

Monica Nitz, Da ilha, 2021. Fotografia de Ricardo Sá. Cortesia da artista. Descrição: detalhe da mão da artista usando pincel de ponta fina sobre a aguada avermelhada.

Seu lado documentarista está evidente no curta Minha avó é uma fotografia (2019), um filme-ensaio a partir das cartas trocadas pelos avós. Mas, sua capacidade de comunicar vivências a partir do factual e corriqueiro surge forte em Construindo Cosmos (2021) e Lunação (2024). “No Lunação, você vê esse estado de contemplação, que carrego comigo, na hora de processar memórias fotográficas, das nuvens da minha janela, dos fragmentos do meu cotidiano, assim como foi com o Memória da Cor. Está tudo em uma teia.” Ali, nós encontramos a relação concreta e simbólica com os ciclos: lua, marés, corpo. Monica estipula um calendário que não está submetido aos números, mas às ondas e fluxos que a atravessam.

Monica Nitz, Lunação, plano do filme, 2024. Imagem de Francisco Xavier. Cortesia da artista. Descrição. Plano aberto com mar ao fundo, prédios e montanha ainda mais longe. Em primeiro plano, a silhueta de uma barreira de pedras sobre as quais a artista, à direita da imagem, estica o corpo, estufa o peito e estende os braços sobre a cabeça, de lado para a câmera, em silhueta que deixa perceber a cor do vestido vermelho.

Esse cruzamento vincula-se à sua relação afetiva com Vitória. Em Das Marés, Dos Trópicos, Da Ilha (2021), encontramos três séries de pinturas abstratas inspiradas nas belezas de Vitória. Foi um projeto multimidia, em que a artista realizou lives de seus processos, as próprias pinturas, livros, exposições e curadorias. “Eu costumava dizer que era um recorte de tempo. Por 40 minutos, as pessoas veriam meu ateliê, não uma obra feita do início ao fim. A intenção era receber bem, conversar, trocar impressões. Era um espírito de expansão, de abertura. Sozinha no ateliê, a gente vai pra águas profundas.”

Monica Nitz, Da ilha, 2021. Fotografia de Ligia Sancio. Cortesia da artista. Descrição: pintura abstrata com grandes aguadas avermelhadas, em manchas mais transparentes nas extremidades e uma grande área mais escura ao centro. Sobre esse vermelho, uma linha verde escura grosa parte da área mais à direita da imagem, sobe e dividisse em duas para abraçar a mancha mais escura. Do lado direito superior desse abraço, saem mais linhas verdes escuras, em uma divisão em duas linhas que se separam em um ângulo fechado e são unidas por várias outras linhas mais finas. A composição faz lembrar uma imagem aérea de uma bacia hidrográfica.

Quando contemplamos a trajetória de Monica Nitz, é notável essa rede de elementos que permanecem ou retornam ao seu processo: as marés, a memória, a infância, o desenvolvimento de um jeito próprio de viver a cidade, o narrar histórias. “Fui alimentada pelas moquecas de domingo, ouvindo meu pai me contar sobre o Miramar, o bar do meu avô, na Beira Mar. De lá, eu ouvia histórias e criava esse encantamento pela ilha de Vitória, pelas praias, pelas pedras, pelo calor, por esse eterno verão.”

Monica Nitz, Das marés, 2021. Fotografia de Ricardo Sá. Cortesia da artista. Descrição: vista se cima, a artista pisa uma pintura abstrata em verde sobre fundo azul. Ela estende os braços na direção do canto direito inferior da imagem e agacha-se, como se surfasse uma extensão de cor verde.

É difícil separar seus trabalhos de sua forma de habitar o mundo. Suas pinturas são resultado da presença total do corpo. Monica não pinta apenas com o controle dos pincéis e do olhar. Ela se desloca em torno dos tecidos deitados sobre o chão, ajoelha-se, curva-se e deita-se com eles. Ergue a imagem nascente, que reage. A tinta foge pelas inclinações e relevos inesperados e momentâneos, mas retorna com um novo movimento, em uma dança conduzida pelas mãos e braços da artista. De volta ao chão, em repouso, a tinta recebe o sopro, o ar abandona os pulmões de Monica e cria mais cinesia. Seus lábios quase tocam a superfície molhada, viva e ativa da tela. Uma pintura acontecimento.

Monica Nitz, Dos trópicos, 2021. Fotografia de Ligia Sancio. Cortesia da artista. Descrição: Vindo da direita da imagem, o braço da artista estende-se até uma tela. Sua mão segura um pincel brosso e marca linhas vermelhas sobre a superfície em que há outros pontos de vermelho, alguns com linhas controladas, outros que esticam-se como se fosse fruto de o impacto da tinta sobre o papel.

Sempre disposta a receber pessoas, Monica deixa os pincéis de molho e espera pelas cores misturadas que a surpreenderão, faz seu próprio pão, observa a fermentação, acompanha a cíclica pulsação da lua, pisa as areias renovadas do litoral que a germinou. Isso não é apenas paisagem e pura contemplação. Sua cidade também é íntima, entre a arrebentação e a tela, recolhe conchas e sementes para manter vivas as lembranças de gerações. “Aquele ateliê, um apartamento que era da minha avó, eu frequentei a infância inteira. Foi o banheiro daquela casa meu primeiro ateliê, onde tinha paz e tranquilidade. Ali, vi os primeiros traços de água escorrendo e pensei em olhar pra tinta fluida da mesma forma.” Ainda que sejam íntimos, os processos de criação de Monica nunca soam solitários.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

Deixe um comentário