[artigo] Materialidade e espaço do filme na arte

Texto de Alana de Oliveira Ferreira[1]

Originalmente publicado em: FERREIRA, Alana de Oliveira. Materialidade e espaço do filme na arteRevista do Colóquio[S. l.], v. 14, n. 24, p. 62–76, 2024. DOI: 10.47456/col.v14i24.47240.

Resumo: Para tratar da materialidade e espaço do filme no campo das artes plásticas, é importante a aproximação e análise de algumas obras que experimentaram os limites do meio e extrapolaram a forma-cinema tradicional. Nesse sentido, os trabalhos “Cosmococa: Programa in progress” (1973), de Hélio Oiticica e Neville D’Almeida, “Chelsea Girls” (1966), de Andy Warhol, “9 Scripts from a Nation at War”, de Andrea Geyer, Sharon Hayes, Ashley Hunt, Katya Sander, e David Thorne, e “Vacuum Room”, de Aernout Mik, são aqui abordados para falarmos sobre as condições de presença e participação do público diante das telas em espaços de arte, assim como o uso dos aspectos sensórios das telas e demais elementos que compõem essas propostas.

Palavras-chave: videoarte. instalação. cinema. audiovisual. materialidade.

Materiality and space of film in art

Abstract: In order to address the materiality and space of film in the field of visual arts, it is important to approach and analyze some works that experimented with the limits of the medium and went beyond the traditional cinematic form. In this sense, the works “Cosmococa: Programa in progress” (1973), by Hélio Oiticica and Neville D’Almeida, “Chelsea Girls” (1966), by Andy Warhol, “9 Scripts from a Nation at War”, by Andrea Geyer, Sharon Hayes, Ashley Hunt, Katya Sander, and David Thorne, and “Vacuum Room”, by Aernout Mik, are addressed here to discuss the conditions of presence and participation of the public in front of the screens in art spaces, as well as the use of the sensory aspects of the screens and other elements that make up these proposals.

Keywords: videoarte. instalação. cinema. audiovisual. materialidade.

Introdução

O uso do audiovisual no campo das artes plásticas tem se mostrado uma ferramenta expressiva para explorar as relações entre materialidade e espaço, especialmente em práticas que tensionam os limites entre cinema e arte contemporânea. Obras como “Cosmococa: Programa in progress” (1973), de Hélio Oiticica e Neville D’Almeida, “Chelsea Girls” (1966), de Andy Warhol, “9 Scripts from a Nation at War”, de Andrea Geyer, Sharon Hayes, Ashley Hunt, Katya Sander e David Thorne, e “Vacuum Room”, de Aernout Mik, exemplificam a capacidade do audiovisual de desafiar a passividade do espectador, promovendo interações que transformam o espaço expositivo em um ambiente de experimentação sensorial e reflexiva. Esse fenômeno, que abarca desde o cinema expandido até as videoinstalações, revela um movimento artístico em que o dispositivo audiovisual é ressignificado, distanciando-se de uma lógica estritamente industrial para se tornar parte de uma narrativa crítica e experimental.

Nesse contexto, o presente trabalho analisa como essas obras questionam o papel do espectador e a própria dinâmica do espaço artístico. Abordam-se os dispositivos audiovisuais como estruturas complexas que produzem subjetividades e transformam as relações entre obra, público e espaço. Assim, busca-se compreender como os artistas utilizam o cinema e o vídeo não apenas como uma nova linguagem, mas como um campo de problematização política e social que reconfigura a experiência estética na arte contemporânea.

“Cosmococa: programa in progress (1973), de Hélio Oiticica e Neville D’Almeida

“Cosmococa: programa in progress” é um projeto de Hélio Oiticica em parceria com o cineasta Neville D’Almeida, desenvolvido em Nova Iorque, a partir de 1973.

Denominado de “quase-cinema”, COSMOCOCA – programa in progress é uma série de filmes compostos por trilha sonora e projeção de sequências de slides, em um ambiente especialmente construído. A imprevisibilidade gerada pela participação do público e pelo desdobramento do programa em diversos “bloco-experiências”, CC1, CC2, CC3…, impede a constituição de uma obra estanque, com procedimentos fechados. Um dos objetivos de Cosmococa é criticar a “unilateralidade do cinema-espetáculo” e se opor a passividade do espectador (Alves, 2009, p. 1).

Em “Cosmococa”, Oiticica e D’Almeida convocam o corpo do espectador, se opondo a passividade gerada pela lógica do espetáculo no cinema convencional. Nele, o espectador pode lixar as unhas, ou dançar, ou se jogar numa piscina, enquanto ouve Jimi Hendrix (Alves, 2009, p. 2). Esse caráter experimentalista possui uma proximidade com o cinema marginal, que ocorreu no Brasil nas décadas de 1960 e 1970.

Seguindo a lógica de Oiticica, a participação seria o oposto da contemplação. Porém em “Helio Oiticica: Cinema e filosofia”, Cauê Alves faz uma crítica em relação ao trabalho de Oiticica. Segundo Alves, essa participação do espectador, em “Cosmococa”, é algo já planejado; o que faz com que o espectador fique preso à vontade do artista. Diferente de outro trabalho de Oiticica, os “Parangolés”, em que o corpo do espectador (nesse caso, participador), ficaria livre para experimentar o trabalho, distanciando-se da ideia inicial de percepção corporal, de acordo com as ideias de Merleau-Ponty, que existia em seus trabalhos.

Embora a noção de participador, nas Cosmococas de Oiticica e D’Almeida, seja um pouco questionável, essa é, sem dúvida, uma proposta de grande importância, devido ao modo como os artistas usam o espaço da galeria para instalar o seus “quase-cinemas”.

Figura 1. Hélio Oiticica e Neville D’Almeida, “Cosmococa 5 Hendrix War”, 1973. Projetores, slides, redes, trilha sonora (Jimi Hendrix) e equipamento de áudio, dimensões variáveis. Ao fundo, sobre as paredes e teto, projeções do rosto de Jimi Hendrix com desenhos em linhas brancas feitas com cocaína. Em primeiro plano, quase como silhuetas, há várias redes coloridas penduradas com suas linhas esticadas entre as paredes, algumas mais próximas, outras mais distantes.

Distante da forma-cinema tradicional (Parente, 2009, pp. 21-45), que se firma na estrutura arquitetônica, na disposição das cadeiras diante da tela, na passividade do público, no acompanhamento de uma narrativa voltada para a compreensão das relações de causa e consequência entre planos e sequências, os “quase-cinema” distanciam-se do que o público esperaria dessas telas e projeções. Nas Cosmococas, a percepção do espaço e dos materiais ganha peso, sem desvincular-se dos elementos projetados. Ao vivenciar uma dessas instalações, não basta confiar no olhar e os ouvidos, é necessário ativar os demais sentidos. Mais do que isso, a presença e a localização corporal no espaço, são inevitáveis. Essa não é mais uma tela apenas disponível para o olhar, pois pede o toque, o olfato, a sensação dos pés no chão, a respiração e presença de outras pessoas.

Chelsea Girls, 1966, de Andy Warhol

Como afirma Roy Grundmann, o que há de comum entre muitos filmes de Warhol é a vontade de provocar, o “concept of the teaser” que tornou os filmes de Warhol palatáveis a um público cada vez maior (Grundmann, 2003, p. 9). Com essa provocação, o espectador não tem muito que perceber em termos de materialidade sensível, mas muito a problematizar em função da materialidade institucional do cinema: Qual o papel do observador de um filme? Qual duração pode manter disciplinada a atenção do espectador? O que considerar como simples registro factual ou como ação ficcional? Ao mesmo tempo em que esses filmes parecem potencializar a liberdade de imaginação do espectador, também logra frustrá-lo em sua vontade de alcançar valores verdadeiros sólidos. (Costa, 2013. p. 31)

Andy Warhol teria sido o primeiro artista plástico nos Estados Unidos a se declarar como film maker, segundo Canongia (1981, p. 12). Seus filmes retratavam cenas do cotidiano, e assim como já podíamos perceber em suas serigrafias, havia um fascínio pela repetição.

Chelsea Girls” é um filme experimental de 1966, e seu primeiro grande sucesso comercial. O filme foi gravado no Hotel Chelsea, e em outros locais famosos de Nova Iorque. O filme, apresentando sua tela dividida ao meio, nos mostrando duas cenas simultâneas, possui 3 horas e 14 minutos de duração. Warhol confunde o real e o irreal, e mais uma vez desconstrói a usual forma de “fazer cinema”.

A materialidade de “Chelsea Girls” é evidenciada pelo formato de projeção em tela dupla, com duas bobinas de filme sendo exibidas simultaneamente, o que cria um efeito visual fragmentado e sobrecarregado. Esse recurso, junto com as diferenças de iluminação, o uso do preto e branco alternado com cores, e o som que prioriza uma das telas, reflete a experimentação material e subverte a linearidade narrativa tradicional. A textura do filme e o ruído sonoro reforçam o caráter bruto e artesanal, destacando a fisicalidade do meio cinematográfico e a estética do acaso. O espaço do Chelsea Hotel funciona como um microcosmo da boêmia nova-iorquina e se torna um personagem em si. As filmagens em quartos pequenos e apertados intensificam a intimidade e a crueza das interações humanas retratadas. Warhol desconstrói a noção de espaço cinematográfico, ao expandir a ação para além da tela, com a sobreposição de cenas que fragmentam a percepção espacial do espectador. A espacialidade é ampliada pela própria disposição das telas duplas, criando um ambiente imersivo e desconcertante.

A experiência do espectador, em “Chelsea Girls” é deliberadamente desafiadora. A simultaneidade de imagens e sons exige uma atenção dividida e dificulta a assimilação completa das narrativas. Essa estratégia quebra a passividade do público e o coloca em uma posição ativa de escolha e interpretação. A desconexão entre o som e as imagens reforça uma experiência sensorial caótica e disruptiva, que reflete as influências do cinema de vanguarda e do ethos da Factory de Warhol.

Figura 2. Andy Warhol, “Chelsea Girls”, 1966, frame retirado do filme. Imagem horizontalizada, dividida ao meio. À esquerda, rosto de mulher em tons de vermelho e laranja, com círculos em que sua pele aparece branca. À direita, fundo preto com imagem de homem branco sorrindo de três-quartos.

9 Scripts from nation at war” (2007), de Andrea Geyer, Sharon Hayes, Ashley Hunt, Katya Sander, e David Thorne

9 Scripts from Nation at War” é uma videoinstalação de 2007, feita em conjunto pelas artistas Andrea Geyer, Sharon Hayes, Ashley Hunt, Katya Sander e David Thorne, para a Documenta 12, uma das maiores exposições de arte contemporânea mundiais, que ocorre a cada 5 anos, em Kassel, na Alemanha. Trata-se de uma videoinstalação que lida com questões relacionadas aos conflitos militares no Iraque e no Afeganistão. O grupo de artistas investiga a forma como a guerra determina certos “papéis” na sociedade, como o do “cidadão”, do “veterano”, do “detento”, do “entrevistador” e do “advogado”; e como cada um se posiciona diante de uma situação de conflito. Cada papel possui um vídeo, com um tempo de duração que varia de 10 minutos a 1 hora. Os vídeos são encenados por atores e não-atores, e buscam investigar a diferença entre linguagens desses grupos distintos.[2]

Os vídeos são colocados em dispositivos diferentes, ora com som aberto, ora utilizando fones de ouvido, promovendo uma experiência individual, em que cada espectador determina a ordem em que irá assisti-los, e por quanto tempo.  Para cada exposição, os artistas desenvolveram diferentes formas de apresentação, mesclando exibições de vídeos (com móveis criados pelas próprias artistas), com performances (ver nas fotos abaixo). Dessa forma, o grupo de artistas proporciona um ambiente mais favorável ao questionamento crítico por parte do espectador.

Figura 3. Andrea Geyer, Sharon Hayes, Ashley Hunt, Katya Sander e David Thorne, “9 Scripts from a Nation at War”, 2007. Videoinstalação. Documenta12, Kassel, Alemanha. Espaço de galeria com piso coberto por carpete roxo. Ao fundo, pessoas caminham e seguranças conversam. Ao centro, em primeiro plano, há pessoas com fones de ouvido, sentadas diante de telas montadas em uma estrutura que se assemelha a mesas de estudo de bibliotecas antigas, mas com design de linhas retas.

Figura 4. Andrea Geyer, Sharon Hayes, Ashley Hunt, Katya Sander e David Thorne, “9 Scripts from a Nation at War”, 2008. Performance. Tate Modern, Londres. Espaço de galeria com chão coberto por carpete cinza. Ao centro, uma tela suspensa mostra o rosto de uma mulher branca de cabelos longos e ruivos, em primeiro plano, há dois bancos de madeira para três pessoas. Sobre os bancos, há fones de ouvido grandes e pretos, ligados à cabos que descem para o chão. Ao fundo da galeria, há mais bancos como esses.

Figura 5. Andrea Geyer, Sharon Hayes, Ashley Hunt, Katya Sander e David Thorne, “9 Scripts from a Nation at War”, 2008. Videoinstalação. Tate Modern, Londres. Ambiente com paredes e chão vermelhos, com várias mesas e cadeiras brancas. Pessoas de roupas sociais e formais sentam-se diante dessas mesas, nas quais há microfone e uma garrafa d’água. A maior parte da cena e escura e as pessoas estão em posições que não nos permitem identificar seus rostos.

A materialidade da obra está ancorada no uso de múltiplas mídias, como vídeo, texto e performance, que são apresentadas em telas separadas e interconectadas. Cada “script” apresenta uma voz distinta, criando uma polifonia que enfatiza a complexidade das narrativas em tempos de guerra. A qualidade visual dos vídeos e a textualidade dos roteiros reforçam a materialidade discursiva, convidando o espectador a se engajar com os fragmentos da obra como documentos de um momento histórico, mas, também, como construções performativas que questionam a objetividade da linguagem.

Já a espacialidade de “9 Scripts” é cuidadosamente projetada para engajar o espectador em uma experiência descentralizada. Os vídeos são dispostos de maneira que o público precise navegar fisicamente pelo espaço expositivo para acessar diferentes perspectivas. Essa fragmentação espacial reflete a fragmentação das experiências da guerra e coloca o espectador em uma posição ativa, movendo-se entre as telas para conectar os discursos. O arranjo espacial amplia a ideia de multiplicidade e descentralização, enfatizando a desconexão e o isolamento presentes nos contextos de guerra.

A experiência do espectador é deliberadamente mediada pela sobreposição de vozes e pela fragmentação narrativa. Não há uma única linha condutora ou hierarquia entre as telas, o que força o público a lidar com a simultaneidade das narrativas e com a carga emocional que cada discurso carrega. Essa estrutura exige do público uma postura crítica e reflexiva, o que cria uma interação que vai além da mera observação. O público é chamado a questionar sua posição em relação às narrativas apresentadas e a refletir sobre as dinâmicas de poder que as sustentam.

 

Vacuum room” (2005), de Aernout Mik

Aernout Mik é um artista holandês. Seus vídeos e instalações investigam a relação do indivíduo com o espaço físico e social, buscando questionar a dinâmica social e o comportamento padronizado. “Vacuum Room, de 2005, é uma sala composta por 6 projeções. Nela, são apresentadas ao espectador imagens de um julgamento. No entanto, Mik brinca com o aspecto documental e traz imagens de um comportamento teatral, absurdo, como de homens dando socos na mesa. O flerte com o documentário é uma característica de seus trabalhos, que muitas vezes apresentam imagens de documentários reais, e outras vezes misturadas com encenações, estabelecendo assim um jogo com o real e a ficção.

Figura 6: Aernout Mik, Vista da instalação no MoMA. “Vacuum Room”, 2005, Instalação de vídeo de seis canais (cor, sem som), cíclico. Seis telas de projeção traseiras embutidas na arquitetura temporária. Espaço de galeria com piso em lâminas de madeira, e teto com rebaixamento de gesso. O espaço está recortado por paredes móveis em ângulos variados, que fecham um cercado no centro da sala. Sobre as paredes, projetam-se cenas. Há pessoas no meio dessas prejeções.

 

Vacuum Room” aborda dinâmicas de poder, autoridade e controle em espaços institucionalizados, evocando uma atmosfera de tensão e ambiguidade. A obra, ao simular uma cena política de debate ou audiência legislativa, utiliza materialidade, espacialidade e a experiência do espectador para explorar a fragilidade das estruturas de autoridade e a performatividade do comportamento humano em ambientes institucionalizados. A materialidade de “Vacuum Room” está centrada em seu formato de vídeo multissensorial, apresentado em várias telas que fragmentam a narrativa. A estética visual é marcada por uma precisão quase documental, mas a ausência de diálogo explícito e de informações contextuais específicas cria um vazio interpretativo. Essa materialidade ambígua reflete o título da obra, sugerindo um “vácuo” de significado ou consenso. A qualidade técnica do vídeo, com enquadramentos próximos e movimentos sutis de câmera, amplifica a fisicalidade e a inquietação das ações, destacando a corporalidade e os gestos performativos dos atores.

A espacialidade de “Vacuum Room” é construída pela disposição das telas no espaço expositivo, o que cria uma relação imersiva e não linear com o público. O espectador precisa navegar fisicamente entre os vídeos, o que fragmenta a percepção da cena e reforça a sensação de desorientação. O ambiente fictício retratado no vídeo — que remete a um espaço legislativo ou de debate político — evoca a teatralidade dos espaços de poder e a arquitetura simbólica que sustenta as relações hierárquicas. A justaposição entre o espaço representado e o espaço de exibição cria uma tensão reflexiva.

A ausência de uma narrativa clara e de diálogos inteligíveis impede uma interpretação linear, o que leva o público a focar nos gestos, expressões e dinâmicas coletivas dos personagens. Essa abordagem engaja o espectador de maneira sensorial e intelectual, provocando uma reflexão sobre a performatividade da política e o papel da observação em ambientes controlados. O espectador torna-se parte de um jogo de poder, no qual a compreensão é limitada e mediada pelo vazio de sentido.

Vacuum Room” destaca-se como uma investigação estética e crítica sobre as dinâmicas de poder e a teatralidade das estruturas políticas. Por meio da materialidade ambígua do vídeo, da espacialidade fragmentada e da experiência imersiva do espectador, Aernout Mik questiona a estabilidade e a transparência das instituições, expondo a performatividade inerente aos comportamentos humanos em contextos de autoridade e controle.

O dispositivo audiovisual

Todos esses trabalhos citados abordam criticamente o dispositivo audiovisual, e, cada um a sua maneira, buscam mudar a relação do público com a imagem projetada. A inserção do audiovisual nas práticas artísticas é recorrente nos debates de arte contemporânea das últimas décadas. Muitos teóricos e artistas de diferentes linhas se propuseram a discutir essa questão, com foco nas funções do dispositivo audiovisual.

O início da discussão através da conceituação de dispositivo foi fundamental para esta pesquisa (Ferreira, 2022), pois somente após entender a lógica do dispositivo fomos capazes de discutir o dispositivo audiovisual e, assim, partir para reflexão sobre como ocorre o movimento de apropriação desse dispositivo pela arte. O dispositivo audiovisual, como definimos, seria composto, portanto, da sala de projeção, do aparelho, da montagem, ou seja, de tudo aquilo que integra a sala de exibição do audiovisual, além de seus efeitos fora desta sala, e que vão estabelecer o modo como o espectador irá se relacionar com a imagem (Parente, 2009, p. 24).

Nesse sentido, não devemos nos esquecer de que um dispositivo não é apenas uma ferramenta, mas um aparelho complexo, composto por mecanismos institucionais, físicos e burocráticos.

Há dispositivo desde que a relação entre elementos heterogêneos (enunciativos, arquitetônicos, tecnológicos, institucionais etc.) concorra para produzir certo efeito de subjetivação no corpo social, seja ele de normalidade ou de desvio (Foucault), de territorialização e desterritorialização (Deleuze), ou ainda de apaziguamento ou intensidade (Lyotard). (Parente, 2009, p. 23)

As práticas artísticas do final dos anos 1960 e início dos 1970 buscavam explorar o material cinematográfico tencionando-o com os limites dos espaços da arte, ainda que com o “cubo branco” da galeria. Nos anos 2000, o audiovisual passou a ser lugar de profundo questionamento social e político. A forma audiovisual não foi incorporada pela arte apenas como uma nova linguagem, em um movimento de “aderir à novidade”, mas como uma forma de questionamento sobre as questões sociais e políticas contemporâneas.

O movimento de questionamento do cinema ocorreu de diversas formas, vindo de diferentes lugares, percebemos isso através, também, das diferentes nomenclaturas que foram dadas a esse movimento: cinema experimental, cinema de exposição, cinema expandido, cinema de artista, videoarte, videoinstalação. Todas essas expressões são formas de repensar o audiovisual, problematizá-lo através do campo da arte ou até mesmo dentro do próprio campo do cinema. Foram motivos de questionamento as normas de apresentação, de produção e o papel do espectador. Diversos artistas e cineastas vindos de diferentes lugares e movimentos, incorporaram essas questões às suas práticas.

A importância da espacialização do audiovisual na arte contemporânea é um reflexo da politização dos espaços da arte e seu entendimento como espaço político e social. A problematização da participação do espectador, tão recorrente na contemporaneidade, faz parte deste debate sobre o audiovisual, e o modo como o audiovisual é inserido nos espaços expositivos é fundamental para que se lancem questionamentos ao espectador no que diz respeito ao seu papel diante da obra. Pois, seguindo a lógica da “obra aberta”, uma obra só se completa com a presença do espectador.

Considerações finais

As discussões sobre o audiovisual na arte contemporânea revelam um movimento constante de questionamento e ressignificação. Obras como “Cosmococa: Programa in progress” e “Chelsea Girls” não apenas ampliaram os limites do cinema enquanto linguagem, mas também desafiaram a materialidade e a espacialidade tradicionais da arte. Por meio da inserção de elementos performativos, interativos e políticos, essas práticas artísticas criaram condições para que o público se tornasse parte ativa da obra, ainda que dentro de um enquadramento planejado pelos artistas. Este paradoxo – entre liberdade e direcionamento – aponta para a complexidade das relações estabelecidas no campo da arte contemporânea.

Por fim, a incorporação do audiovisual às práticas artísticas transcende uma simples adesão tecnológica ou formal. Trata-se de uma reconfiguração da experiência estética que problematiza os dispositivos institucionais e sociais associados ao cinema e à imagem projetada. Ao questionarem normas de apresentação, produção e recepção, essas obras contribuem para politizar os espaços artísticos, promovendo debates cruciais sobre os papéis do espectador, da obra e do espaço expositivo. Assim, o audiovisual emerge como um meio poderoso de produção de sentido e subjetividade na arte contemporânea, reforçando sua relevância como um campo de investigação artística e teórica.

Referências

ALVES, Cauê. Hélio Oiticica: cinema e filosofia. Revista Facom, n. 21, 1º semestre de 2009.

CANONGIA, Ligia. Quase Cinema: Cinema de artista no Brasil, 1970/80. Arte Brasileira Contemporânea, Caderno de textos 2. Rio de Janeiro: Edição Funarte, 1981.

COSTA, Luiz Cláudio da. O cinema expandido de Andy Warhol: repetição e circulação. Revista Poiésis, n. 12, nov. de 2008. Disponível em: https://periodicos.uff.br/poiesis/article/view/26942. Acesso: 20 mai. 2024.

FERREIRA, Alana de Oliveira. Sobre o dispositivo e o dispositivo fílmico. Revista do Colóquio, [S. l.], v. 12, n. 20.2, p. 9–28, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/colartes/article/view/46532. Acesso em: 2 dez. 2024.

PARENTE, André. A forma cinema: variações e rupturas. In: MACIEL, Kátia (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, pp. 21-45, 2009.

[1] Possui bacharelado em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (2014), mestrado em Artes pela mesma instituição (2018) e licenciatura em Artes Visuais pela Claretiano (2020). Professora pela Secretaria de Estado de Educação do Espírito Santo (SEDU-ES). Lattes: http://lattes.cnpq.br/4419231431237587. ID ORCID: https://orcid.org/0009-0004-1694-4150.

[2]9 Scripts from a Nation at War”. Museu de Arte Moderna, Nova Iorque. Disponível em: http://www.moma.org/visit/calendar/exhibitions/1215. Acesso em: 30 nov. 2022.

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