[artigo] Pensamento analógico medieval e desvio para o intangível no Beatus de Facundus

Artigo publicado originalmente em: PEDRONI, Fabiana. Pensamento analógico medieval e desvio para o intangível no Beatus de FacundusRevista do Colóquio[S. l.], v. 12, n. 20.2, p. 110–123, 2022.

Fabiana Pedroni[1]

Resumo: Este artigo examina o pensamento analógico medieval, explorado por Hilário Franco Júnior, e sua relação com a representação imagética no manuscrito Beatus de Facundus. Concentra-se na ideia de desvio para o intangível para compreender como as imagens medievais, especialmente no contexto do Apocalipse, operam entre o visível e o invisível. O Beatus de Facundus, um comentário ilustrado ao Apocalipse, combina textos e imagens que transcendem a noção mais restrita de ilustração, propondo uma exegese visual e textual das Escrituras. Discute-se, aqui, como a analogia, essencial ao pensamento medieval, cria vínculos entre o mundo material e o espiritual através do uso de elementos conhecidos para aludir a mistérios divinos. Conclui-se que o manuscrito medieval não apenas ilustra, mas dialoga com os textos sagrados, tornando-se uma imago que revela significados ocultos através do desvio e da analogia, reforçando a importância da relação entre o tangível e o intangível na teologia cristã medieval.

Palavras-chave: pensamento analógico medieval. Beatus de Facundus. imago.

Abstract: This article examines medieval analogical thinking, as explored by Hilário Franco Júnior, and its relationship with imagery representation in the manuscript Beatus of Facundus. It focuses on the idea of deviation towards the intangible to understand how medieval images, especially in the context of the Apocalypse, operate between the visible and the invisible. The Beatus of Facundus, an illustrated commentary on the Apocalypse, combines texts and images that transcend mere illustration, proposing a visual and textual exegesis of the Scriptures. The discussion centers on how analogy, essential to medieval thinking, creates links between the material and spiritual worlds, using known elements to allude to divine mysteries. The conclusion is that the medieval manuscript not only illustrates but also dialogues with sacred texts, becoming an imago that reveals hidden meanings through deviation and analogy, reinforcing the importance of the relationship between the tangible and the intangible in medieval Christian theology.

Keywords: medieval analogical thinking, Beatus of Facundus, imago.

 

Uma imagem vale mais do que mil palavras. Este dito popular, como outros, funciona em contextos específicos, nas vivências cotidianas, nos argumentos diários de ações. A memória afetiva da imagem da mesa posta do café da manhã, por exemplo, tem muitas camadas de sentido. E esses sentidos, em geral, exigem uma interpretação ativa que envolve o sujeito em sua complexidade. A memória de infância, o trabalho na roça, a organização da casa, a rotina familiar, a pausa do trabalho, a partilha entre colegas. Mas, seria mesmo uma imagem mais eficaz e imediata que as palavras para comunicar uma mensagem complexa? Essa pergunta perderá total sentido no decorrer deste artigo.

Não é possível dizer que uma “vale mais” ou “vale menos” que a outra, pois texto e imagem são grandezas distintas que operam dentro de seus próprios parâmetros. Embora ambas sejam formas de linguagem, elas funcionam de maneiras diferentes.

A frase “Sinto cheiro de café com barulho de chuva no quintal” evoca uma rica camada de sentidos de maneira completamente distinta de uma imagem, devido aos diferentes elementos de construção e métodos de atuação de cada uma.

Ao analisarmos o contexto dos manuscritos medievais e o pensamento simbólico que os permeia, percebemos que texto e imagem estão intrinsecamente ligados, mas operando cada um a seu modo. As imagens não podem ser plenamente compreendidas sem o texto que as acompanha, e vice-versa. A interação entre texto e imagem é essencial para a exegese das Escrituras, criando um diálogo entre linguagens distintas que complexifica o trabalho das imagens.

Para abordar essa complexidade do trabalho da imagem medieval, utilizaremos como base a relação entre texto e imagem no Beatus de Facundus atravessada pelo conceito de pensamento analógico medieval, abordado por Hilário Franco Júnior, junto da noção de desvio, enfatizada por Didi-Huberman.

O termo Beatus define uma série de manuscritos datados entre o século IX e XVI, que reproduzem o Comentário ao Apocalipse (In Apocalypsin B. Joannis Apostoli Comentaria), compilado no final do século VIII, pelo monge que recebeu a alcunha de Beato de Liébana. Até o momento, temos um total de 35 cópias conhecidas, mas o protótipo encontra-se perdido.[2]

Sendo um Comentário ao Apocalipse, os Beati possuem essencialmente o livro do Apocalipse, entremeado de comentários de Santos Padres para a interpretação da Sagrada Escritura. Na compilação, Beato de Liébana faz citações da exegese bíblica de autores como Santo Isidoro de Sevilha, São Jerônimo, Ambrósio, Santo Agostinho, Gregório de Elvira e Gregório Magno, bem como utiliza outros Comentários ao Apocalipse, principalmente os de Ticônio, Apríngio e Victorino. Apenas algumas palavras são de Beato de Liébana, o restante consiste em justaposição de textos bíblicos e de autores que emprega como fonte. Seu trabalho consiste, sobretudo, em criar relações entre as passagens e entre os comentários, intercalar textos e variar cláusulas. Portanto, mais que um autor de um Comentário ao Apocalipse, Beato de Liébana é um compilador, que coleta e une passagens de outras obras e autores no sentido de compor uma summa exegética do livro do Apocalipse.[3]

O texto do Comentário ao Apocalipse, estritamente, é dividido em doze livros, que se estruturam basicamente por uma sequência de fragmentos do Livro do Apocalipse, chamados de storiae, seguidos, a cada fragmento, por duas explanações: uma imagética e outra textual. Nas explanações textuais, chamadas de explanatio (“explicação do texto anterior”), Beato de Liébana repete cada uma das frases do texto anterior e explica o significado pela intercalação de comentários de vários pensadores de diferentes épocas, os quais reconheciam no texto do Apocalipse um material importante a ser estudado. Às vezes, esse significado pode se multiplicar em outros sentidos, a depender da extensão do grau de digressão e das analogias criadas.3

As recapitulações utilizadas por Beato de Liébana não se limitam ao texto. O texto é retomado em imagem, ou seja, as imagens não se reduzem a uma representação das passagens bíblicas, não são ilustrações do texto, no sentido mais estrito e literal. Sua localização entre a storia (passagem do Apocalipse) e a explicação (os comentários, explanatio) frisa o papel interpretativo da imagem, aquele que não se subordina as indicações textuais, mas faz uso delas para gerar outras reflexões.

Não apenas o texto do Apocalipse (storia) é acompanhado de imagens, mas também alguns fragmentos da explanatio (comentários ao Apocalipse) são recapitulados em imagem, como a imagem da Arca de Noé (Figura 01), que ocupa praticamente uma página inteira do manuscrito, divide espaço com apenas seis linhas de texto. Ela aparece no final do Livro II do Comentário ao Apocalipse, depois da explicação da entrega da carta por João à igreja de Laodicéia (Ap. 3, 14-22). Trata-se de um texto de Gregório de Elvira, bispo hispânico do século IV, tomado por Beato de Liébana para falar da identificação da Arca com a Igreja. A imagem aparece em um corte abrupto no texto de Gregório de Elvira, não adota a mesma organização que o restante do Comentário ao Apocalipse (storia-imagem-explanatio), visto que não há uma storia, mas um texto uno. Não se trata de uma imagem da explanatio, propriamente dita, mas de uma interpretação somada ao final do Livro II. No texto, aparecem trechos do Livro de Gênesis, sobre a Arca de Noé, a partir dos quais se criam relações com outros trechos bíblicos e uma interpretação deles, muito próximas ao que se desenvolve na explanatio dos trechos do Apocalipse. Por isso, alguns autores, como Yarza Luaces (2006, p. 152), afirmam ser uma imagem do comentário de Beato de Liébana, mas é preciso fazer a separação, já que a imagem não ocupa o mesmo lugar que nos comentários.

Mais importante que a descrição puramente espacial dos pisos da arca e dos animais que carrega, o texto privilegia as analogias com Cristo e a Igreja, bem como com o texto que antecede essa interpretação:

Farás uma arca de trezentos côvados de longitude, de cin­quenta côvados de largura e trinta côvados de altura. Fa­rás na arca uma cobertura e a um côvado a arrematará por cima. Ponha a porta da arca em seu lado e faça um primeiro piso, um segundo piso e um terceiro, etc. A pro­dução da arca indicará claramente a figura de nossa Igreja. Não há dúvida alguma de que Noé representou a figura de Cristo. […] Pois esta arca, que foi construída com madeiras incorruptíveis, indicava, como disse, a fabricação da ver­dadeira Igreja, que vai permanecer sempre com Cristo. As sete almas que se concedem ao santo e justo Noé, é reco­nhecido que representam a figura das sete Igrejas, que por Cristo serão livradas da catástrofe do fogo do juízo, e vão reinar com Cristo na nova terra. (Campo Hernández 2004, p. 264-265. Grifo do autor).

Sobre as divisões da arca, o texto explica cada um dos três pisos, ao traçar comparações com outros textos bíblicos, os quais remetem à ideia de morada, de casa e, simbolicamente, de mansões celestiais. O espaço físico da arca (e sua figuração na página) é um meio para as digressões espirituais. A escolha plástica em mostrar o interior da arca pode relacionar-se à dedicação do texto na divisão dos pisos, mas não tenta criar uma representação “fiel” do que é dito simbolicamente.

Aqui lidamos com uma imagem que traça diálogos extensos entre o que é do mundo sensível na cultura cristã medieval, dos animais, da arca, da família de Noé, com aquilo que é intangível, em sua aproximação com Cristo e a Igreja. O pensamento analógico medieval busca um vínculo entre algo aparente, sensível, do mundo terreno, e algo oculto, intangível. Para Hilário Franco Júnior (2008, p. 04), “Alcançar o intangível pelo sensível torna-se possível pela observação de um tecido de reflexos, de comparações, de gradações, de metáforas, de símbolos. Em suma, de analogias”. Esse recurso não é exclusivo da teologia cristã, mas existe, em diferentes graus, como
modos de criar relações no discurso. Raciocinar por analogias, frisar relações, não nega o pensamento lógico, aquele que se estrutura de modo linear e encadeado, pelo contrário, muitas vezes o alimenta. O pensamento analógico, seja ele explorado de modo verbal, pela escrita, ou de modo visual, pela imagem e pelos esquemas, contribui com a construção histórica das funcionalidades da imagem, pois prontifica-se a colocar o objeto de estudo em seu lugar, ou seja, de não lhe negar seu tempo e seu corpo. O manuscrito, assim como os elementos que o constituem (texto e imagem, de modo mais estrito) são também objetos dessa relação.

Figura 1. Beatus de Facundus, 1047, f. 109. Arca de Noé. Iluminura com estilo de linhas fortes e cures opacas em púrpura, vermelho, amarelo e azul. Interior da arca de Noé como em um corte lateral que deixa ver os vários pisos, nos quais encontram-se os animais e, no último, acima, Noé ao centro, soltando a pomba, com seus familiares em seus lados.

Ao tomarmos a imagem em questão, da Arca de Noé, observamos que não há um indício visual direto que reforce a identificação feita pelo texto da família de Noé, que ocupa o primeiro piso, filhos de um lado, a mulher de Noé e as mulheres de seus filhos de outro, com as Sete Igrejas, aquelas para as quais João levou as cartas no texto anterior a esse.[4] Em outras imagens, vemos esses indícios em elementos arquitetônicos, pela construção geometrizada da igreja (como nos ff. 78, 82v, 87v, 92, 100v, 106v) ou pela identificação através de arcos e colunas (como nos ff. 46 e 262). Esse indício não está ao lado do tronco de cada personagem, mas sua ausência nos leva a pensar a arquitetura da própria arca, que é casa, que é morada celeste e que tem um corpo similar à representação do livro sagrado em outras imagens do Beatus de Facundus. Há um jogo de designações visuais pela forma pentagonal. Na imagem da primeira igreja, Éfeso (f.78), João porta um livro retangular, ornado em ouro. Na imagem seguinte (f. 82v), João porta um livro pentagonal, e na seguinte (f. 87v), retangular, e assim segue a alternância, até o f. 106v, com um livro retangular. A próxima imagem é da Arca de Noé na forma de um grande pentágono com uma abertura superior, aquela indicada pelo texto do Gênesis. Na imagem seguinte, f. 112v, Cristo aparece em seu trono com o livro em forma de pentágono. A figuração do espaço da arca não guarda uma proximidade com um objeto que poderia sustentar-se sobre a água, mas toma o sentido simbólico como mais significativo. Como afirma Franjo Jr. (2008, p. 04), a linguagem do pensamento analógico é a simbólica, que reaproxima algo conhecido (o símbolo) de algo misterioso (o significado). Também as bandas de fundo, usadas na arca, são de cores já utilizadas nas imagens anteriores das sete igrejas, bem como a ornamentação da borda é muito próxima à da primeira igreja e da imagem posterior, do f. 112v.[5] Dito de outro modo, quanto ao livro que João porta, observamos que há três diferentes formas de apresentação, as quais seguem a seguinte ordem cromática:

Quadro 1. Varietas. Livro. Fonte: Elaborado pela autora. Quatro branco em linhas pretas que mostra acima três formas geométricas: A, um retângulo horizontal, A’, um retângulo horizontal com dois retângulos verticais dentro, B, uma forma similar a uma casa com telhado pontiagudo, com um triângulo e um retângulo horizontal dentro. Na parte de baixo, cinco colunas que organizam as informações de: Fólio, Cor externa do livro, Cor interna do livro, Formato do livro, Presença de outro elemento. E sete linhas com dados diversos para cada coluna.

Na sequência destas imagens, observamos que a próxima imagem, do f. 109, que é a Arca de Noé, assume o formato do livro B, por analogia a Igreja e a Cristo como morada. Trata-se de jogos que criam diálogos entre as imagens do manuscrito, as quais não podem ser pensadas nem de modo casual, nem mesmo como uma incapacidade para a representação de uma arca flutuante. A arca não sobrevive ao dilúvio por sua força material, cada elemento diz mais de uma morada e proteção celeste que de um objeto que flutua na água.

Insistimos nessas diferenciações para mostrar como a apreciação formal da superfície de figuração se dá de modo complexo, na relação com as indicações e analogias do texto, no diálogo com as outras imagens e com o texto que elas figuram. Como pesquisadores, temos sempre de estar atentos ao senso comum do “isso parece com…”, “isso se deve a…”, fórmulas que enrijecem os diálogos entre os planos da imagem. O que poderia ser erroneamente conjecturado sobre a presença de quatro seres fantásticos na Arca de Noé se não se atentasse para a importância do imaginário dentro do conceito de imago (Cf. Yarza Luaces, 1987, pp. 156-181).

Figura 2. Beatus de Facundus, 1047, f. 78 e f. 82v (detalhe). Esta e as duas próximas imagens mostram João ao lado de um anjo, com um templo ao lado direito da imagem. Em cada iluminura, João porta um livro diverso, com formato variado, como já explicado no texto.

Figura 3. Beatus de Facundus, 1047, f. 87v e f. 92 (detalhe)

Figura 4. Beatus de Facundus, 1047, f. 96 e f. 100v (detalhe)

Figura 5. Beatus de Facundus, 1047, f. 106v (detalhe). João segurando um livro retangular, ao lado de um anjo, com templo à direita.

Figura 6. Beatus de Facundus, 1047, f. 112v. Cristo entronizado ao centro, dentro de um óculo, com faixas ao fundo desse óculo. Nas faixas superior e inferior, pessoas sentadas em cadeiras. Na parte baixa do fólio, pessoa deitada como morta.

A analogia se apoia na semelhança, estabelece vínculos e aponta para a necessidade de se pensar as imagens como uma figura, no sentido mais amplo de figurabilidade. As imagens cristãs, pela Encarnação, pertencem ao domínio do que Didi-Huberman chama de figurabilidade ou, simplesmente, figura. A noção de figura guarda um sentido latente de mistério teológico, constitui para os cristãos um “[…] recurso para aceder a um conhecimento que lhes continuava vedado [na intangibilidade de Deus e dos seres divinos]” (Didi-Huberman, 1994, p. 167).

A figura encontra na presença a ausência. Ela não representa o ausente de modo direto e fiel como cópia, mas presentifica o ausente através do desvio, ou como nos atenta Franco Júnior, pela analogia. Essas noções são fundamentais para se compreender a presença da imago na Idade Média, em seus três domínios, ou seja, o das imagens materiais (imagines), do imaginário, aquele das imagens mentais, oníricas e poéticas (imaginatio), e diz respeito ainda à antropologia e teologia cristãs como um todo. O texto bíblico, ele também, é uma imago, ou um conjunto de imagens que opera(m) pelo desvio. São Paulo, em sua primeira epístola a Coríntios, fala desse desvio como recurso temporário, que deixará de existir quando o terreno e o divino se encontrarem no mesmo plano, no dia do Juízo Final: “Hoje vemos como por um espelho, em enigmas, mas então será face a face” (1 Coríntios 13, 12). A teologia Cristã fala por imagens em sentido amplo de imago através do desvio. A sombra de uma árvore não é uma árvore como tal, mas guarda semelhança com o modelo. Um homem justo não é uma árvore, mas é “[…] como árvore plantada às margens de um curso d’água, dá frutos na época certa e sua folhagem nunca seca” (Salmo 1, 3).

Na teologia cristã o desvio, ou a figura, e a analogia, tornam a imago uma linguagem adequada à linguagem do Verbo. Aquela que caminha entre o divino e o terreno, que possui poderes ritualísticos e simbólicos para alcançar os homens na terra sem perder sua referência com o modelo intangível. Essa lógica não se reduz às imagens de Deus, mesmo quando encarnado em Cristo, mas é extensiva a toda a divindade, a todo o fruto que dela provém.

Pela analogia buscam-se similitudes entre aquilo que é conectado “[…] em uma totalidade que os ultrapassa e é comum a cada elemento”, como nos diz Hilário Franco Júnior (2008, p. 03). Ao considerarmos a imagem da Arca de Noé como um elemento orgânico de um conjunto maior, percebemos que as analogias propostas pelo texto são exploradas nas tensões criadas entre as imagens. A arca só se torna a morada de Cristo quando é por ele analogicamente carregada na imagem posterior, bem como seu conteúdo remete à Sete Igrejas apenas quando tomamos em comparação as imagens antecedentes, em que a forma da arca já se fazia presente nas mãos dos anjos.

Como seria possível estudarmos uma imagem sem considerar que cada traço é analogicamente divino e funcional para o discurso sagrado? Para o estudo de uma imagem em um manuscrito, não nos basta olhar por uma vista rígida de representação destituída de sua apresentação, de sua figurabilidade e poder analógico, olhamos o corpo do manuscrito, seu corpo material, como conjunto, e corpo social. As imagens do Beatus de Facundus dialogam entre si dentro do corpo do livro, sem ignorar que cada construção dentro de uma única imagem é uma aproximação a todas as outras imagens, seja do próprio manuscrito, dos outros Beati, ou mesmo da imago como conceito mais abrangente. Este diálogo que em muito ultrapassa a noção de composição formal, opera por vias do pensamento analógico, a presentificar um mundo intangível, misterioso, através daquilo que lhe é conhecido, do símbolo.

Referências

CAMPO HERNÁNDEZ, Alberto del; FREEMAN, Leslie G.; GONZÁLEZ ECHEGARAY, Joaquín (ed.). Beato de Liébana. Obras completas y complementarias. Edição bilíngue do latim ao castelhano. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2004, v. 1.

DIDI DIDI-HUBERMAN, Georges. Poderes da figura: exegese e visualidade na Arte Cristã. Revista Comunicação e Linguagens, n. 20. Tradução de Virgínia Andrade e Leonor Caroça. Lisboa, p. 159-173, 1994.

FRANCO JR., Hilário. Modelo e imagem: o pensamento analógico medieval. Bucema, Bulletin du centre d’études médiévales d’Auxerre. Hors-série n° 2, 2008, p. 4. Disponível em: https://journals.openedition.org/cem/9152. Acesso em: 06 jan. 2021

ROMERO POSE, Eugenio. Ticonio y su comentario al Apocalipsis. Salmanticensis, vol 32, fasc.1, pp.35-48, 1985. Disponível em: https://summa.upsa.es/pdf.vm?id=7252&lang=es. Acesso em: 22 out 2021.

ROMERO POSE, Eugenio. Ticonio en la historia y literatura cristiana en el Norte de África. In: Marin, M.; Moreschini, C. (ed.), Africa cristiana. Storia, riligione, letteratura. Brescia: Morcelliana, 2002

YARZA LUACES, Joaquín. Los seres fantásticos en la miniatura castellano-leonesa de los siglos XI y XX. In: ___. Formas artísticas de lo imaginario. Barcelona: Anthropos editorial del hombre, 1987, p.156-181.

YARZA LUACES, Joaquín. Las miniaturas. In: WILLIAMS, John et al. Beato de Fernando I y Sancha. Barcelona: M. Moleiro, 2006,

[1] Doutoranda em Artes pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-UNESP), mestra em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Lattes: http://lattes.cnpq.br/4608508847849874. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2272-431X.

[2] A compilação do protótipo, hoje perdido, é atribuída a um monge asturiano anônimo, conhecido pela alcunha de Beato de Liébana, que dá origem à denominação dos manuscritos. A atribuição tornou-se uma convenção entre os historiadores e historiadores da arte, visto que em nenhuma das cópias aparece o nome de Beato de Liébana ou de qualquer outra autoria para a compilação. E somente em alguns poucos aparece o nome dos copistas, iluminadores e/ou comitentes.

[3] Em seu Comentário ao Apocalipse, Beato reúne em uma só obra um compêndio com passagens significativas de outros autores sobre o livro. O compêndio é de grande valor para se ter acesso a textos perdidos de outros exegetas cristãos anteriores. O Beatus é uma importante fonte de reconstrução do texto de Ticônio, pois Beato não fez uso apenas do conteúdo exegético, mas também, provavelmente, da própria estrutura do Comentário de Ticônio, também dividido em 12 livros. “Na realidade, todos os comentaristas do Apocalipse dependerão, em maior ou menor grau, do comentário africano. Daí que grande parte dos estudiosos de Ticônio se esforçou por recuperar o então perdido Comentário ao Apocalipse”. (Romero Pose, 2002, p. 159, tradução nossa). Sobre o empreendimento de “reconstrução” do texto de Ticônio, a partir de Beato, ver, sobretudo, o trabalho de Traugott Hahn, “Tyconius Studien”, comentado por Romero-Pose em Romero Pose, 1985, pp. 35-48.

[4] Beato de Liébana aborda, pelo texto, uma noção de espírito septenário, em que a família de Noé remete aos sete membros de um corpo, que também são os sete olhos do Senhor, as sete estrelas na mão direita do Senhor, as sete trombetas e as sete igrejas. (Campo Hernández, p. 266-267).

[5] 5Assim como a Arca de Noé relaciona-se pelo espírito septenário com as imagens anteriores, das sete igrejas, Beato de Liébana traça relações da Arca com a imagem apocalíptica seguinte. Por não ser a Arca de Noé uma imagem apocalíptica, mas de importante compreensão da Igreja como barca de salvação, não nos é estranho que Beato a queira integrar no conjunto das imagens apocalípticas, seja de modo pictural ou pelo texto. A relação da Arca com esta imagem, da visão de Deus entronizado e dos anciãos (Ap. 4, 1-6), pode ser pensada, sobretudo, pela explicação dada por Beato de Liébana. Na passagem, Deus aparece no céu, sentado em um trono, que, segundo a explanatio, é a Igreja. Deus tem aspecto semelhante a uma pedra de jaspe e cornalina. O jaspe. que é a cor da água e a cornalida, do fogo, são dois juízos estabelecidos para a consumação do mundo no tribunal de Deus: “[…] um já foi consumado no dilúvio por meio da água, o outro se consumará por meio do fogo. Estas comparações estão relacionadas com a Igreja, a que revestiu o Senhor. O íris rodeava o trono. O íris que rodeava o trono tem as mesmas cores. O íris é chamado também de arco; dele falou o Senhor a Noé e aos seus filhos, para que eles não tivessem na prole medo de Deus: ponho, disse, meu arco nas nuvens (Gen. 9, 13), para que já não temais a água, e sim ao fogo. Pois no arco aparece ao mesmo tempo a cor da água e do fogo; porque em parte é negro e em parte vermelho, para ser testemunho em ambos os juízos, quer dizer: um que vai se realizar pelo fogo, e outro que já foi realizado pela água”. (Campo Hernández, 2004, p. 278-279).

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