[artigo] Like a Rolling Stone e a “privatização maquínica”

Originalmente publicado em: HIPÓLITO, Rodrigo; GRANDO, Angela. Like a Rolling Stone e a “privatização maquínica”. Anais do XIII Congresso Internacional do Programa de Pós-graduação Interunidade em Estética e História da Arte. São Paulo: USP/Galoá, 2024.

Texto de Rodrigo Hipólito[1] e Angela Grando[2]

Resumo: No último século, observa-se o aumento e a complexificação dos aparelhos mediadores da comunicação. Tais mudanças na relação informacional entre o público e o privado serão abordadas sob os enfoques de Flusser, Santaella, Frederik Jensen, Manovich e André Paz e Kátia Augusta Maciel. Por fim, através da análise do vídeo interativo “Like a Rolling Stone” (2013), aponta-se para os limites e dúvidas dos modos de interação com as interfaces digitais, sintetizados na expressão “privatização maquínica”.

Ppalavras-chave: interatividade; novas mídias; público-privado.

Mas, certamente, para nossa época, que prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a fantasia à realidade, a aparência à essência, é essa transformação, exatamente por ser uma desilusão, uma destruição absoluta ou uma pérfida profanação, porque sagrada é somente a ilusão, mas profana é a verdade. Sim, esta sacralidade aumenta na mesma proporção em que a verdade diminui e cresce a ilusão, de forma que o mais alto grau de ilusão é também o mais alto grau de sacralidade. (Feuerbach, 2007, p. 25, citado parcialmente como epígrafe por Debord, 1997)

How does it feel

How does it feel

To be on your own

With no direction home?

Like a complete unknown

Like a rolling stone?

(Dylan, 1965, ‘0:58 – ‘1:20min)

Renata Lima Aspis, quando traz a fala de Agamben (Aspis, 2010, p. 69), tenta nos comunicar a estranheza da politização da vida privada. Tal politização, no entanto, talvez não seja, primordialmente, encontrada na publicização do “eu”. Os vídeos em primeira pessoa, produções que pululam em plataformas de compartilhamento, servem como indicativo de um caminho cada vez mais evidente no contato com as novas mídias: a “privatização maquínica”. Nessa expressão, encontram-se dois eixos de pensamento distintos e complementares, os quais desencadeiam o raciocínio presente neste artigo. De um lado, temos a visão flusseriana sobre a recepção de informações por parte de um espectador (ativo ou não) que torna conteúdos públicos em experiências privadas (Flusser, 2008). Por outro lado, encontramos o entendimento de Santaella (2010) sobre a complementaridade do humano e da máquina.

As transformações acarretadas pela mediação do humano com o mundo através da técnica permitiriam a extensão das funções corpóreas, incluindo os mais recentes complementos às atividades cerebrais. Simultaneamente, esse “processo de reprodução maquínica do corpo” levaria o humano a comportar-se “como máquinas”, o que, finalmente, aproxima as ordens da lógica e da forma, do objetivo e do subjetivo (Santaella, 2010, p. 62-65). Não seria necessário embarcar em aventuras ficcionais para compreender o modo como os recentes avanços das tecnologias de comunicação afetam nossas capacidades de decisão, interação e expressão. Centrados na personalização do contato com as imagens eletrônicas, percorreremos uma trajetória que nos levará ao acesso a informação por meio de perfis pessoais. Em seguida pensaremos os limites críticos desse acesso em interfaces programadas para serem “interativas”, ressaltando o exemplo do vídeo “Like a Rolling Stone” (Direção: Vania Heymann, 2013).

Nas décadas de 1940-50, a popularização dos aparelhos de TV tornou os lares americanos tão diferentes, tão atraentes, ao ponto de ser uma espécie de representação do estilo de vida da nação norte continental. Através da TV, chegavam ao espaço semi-íntimo da sala de estar os acontecimentos mais públicos de todo globo, como os programas de auditório, os filmes de faroeste, as declarações presidenciais e os telejornais.

Quando a grande massa populacional se aproximou da TV, o consumo de informação passou a ser entendido como o consumo de imagem. A linha entre a geração de uma informação e suas consequências reais tornou-se constrangedoramente aparente. Em uma sala qualquer, um indivíduo acionava um botão e publicava imagens (tornava informação pública). Em diversas salas quaisquer, indivíduos acionavam botões e privatizavam imagens (tornavam informações privadas) (Flusser, 2008, p. 36). O processo de publicação por poucos e privatização por muitos tornou-se largamente conhecido como sociedade de mídia de massa e caracterizada como “de espetáculo”. O espetáculo, nesse caso, não se refere à extensão de um conjunto de imagens dominantes no imaginário da sociedade sentada frente ao ecrã, mas ao fato das relações sociais se tornarem cada vez mais mediadas por “coisas” (Debord, 1997, § 4).[3]

Quanto mais íntima a localização do ecrã no espaço familiar, mais específica tornava-se a privatização de conteúdos. Uma TV na sala de estar recebia a mesma informação de todas as TVs pelo país e, sem demora, pelo mundo. Uma pequena variação de canais permitia aos privatizadores de imagens uma curiosa espécie de escolha: a qual gênero de informações cada família se vincula? Seja qual fosse a informação, com a TV na sala de estar, sua influência se dava sobre um grupo espacialmente socializado.

Opinar sobre as notícias, os seriados, os comerciais e os apresentadores era um modo de publicação (tornar público para as pessoas presentes na sala de estar) informações que dialogavam com a publicação de imagens e sons para a massa nacional. Mas, quando a TV conquista as muralhas do quarto de dormir, já em meados da década de 1980, o processo de privatização de informações configura um paradoxo provavelmente ainda vigente em nossa época: o individualismo de massa. Das contradições presentes na possibilidade de realização imediata dos desejos do Eu, na personalização consumista e na atração midiática, surgiria uma espécie de individualismo baseado no consumo generalizado, uma espécie de hedonismo de massa (Lipovetsky, 2005, p. 81).

Sozinho, diante da tela, o espectador pode sentir-se dono da informação com a qual escolhe dividir a cama. A programação das redes de TV, no entanto, torna-se bem mais dominadora. Para cada horário do dia, um espetáculo mais apropriado. À noite, os filmes caem bem. No escuro mais familiar, um cinema sentimentalizado apresenta imagens supostamente íntimas na tela e, certamente, íntimas para quem vê.

Mas, para além desse fluxo em direção ao particular, o próprio entendimento de “espaço íntimo” tende a se transformar na medida em que as diferenças entre o ato de ir até a informação e o ato de esperar por ela tornam-se difusas. A linearidade entre aquele que publica e aquele que privatiza têm suas bases abaladas com o computador pessoal e o fácil acesso à Internet.

No início da década de 1990, esse abalo talvez fosse apenas de mudança de meios. Os segredos para publicação de informações através de aparelhos complexos não estavam disponíveis para grande parte do público e acessar conteúdos dependia da indicação direta de endereços. O browser surgia como uma virtualização da TV. A tela do computador, através dos programas de navegação, apresentaria conteúdos publicados por poucos, para muitos, após a inserção de endereços, isto é, da localização de dado conjunto de arquivos.

A grande transformação na experiência telemática ocorre com o aparecimento do hiperlink. A possibilidade de vincular a um documento não apenas outros documentos, mas também o caminho para os acessar, sem que o usuário tome conhecimento dos protocolos necessários para requisitar tal informação, transfigura a Internet em um verdadeiro mar. “Navegar pela web” aparece como a expressão reinante e, nesse mar de informações, haveria poucas razões para o direcionamento específico de conteúdos, posto que o pedido para o navegante era o de “perder-se”. Esse período, localizado na primeira metade da década de 1990, pode ser observado ainda hoje na leitura de trabalhos descritivos sobre a vivência nas primeiras comunidades virtuais da internet, como é o caso de “Surfando na Internet: uma aventura on-line” (Herz, 1996), ou mesmo do contato com trabalhos de net.art “sobreviventes”, como “Mouchette.org” (1994).

Em “Cybercultura” (2011), originalmente publicado em 1997, Pierre Lévy separa dois modos distintos de “navegar”: a “caçada” e a “pilhagem” (Lévy, 2011, p. 87). A primeira pressupõe a busca por uma informação específica, a segunda é exemplificada pelas passagens de site em site, a partir de uma lista já assinada. Se o que, antes, o usuário dos browsers encontrava eram barreiras de senhas e protocolos misteriosos que o levavam a “perder-se”, com o advento do hiperlink proliferam-se as informações empresariais, o contato por e-mail, as propagandas e as páginas de pessoas físicas.

O aparecimento dos sites pessoais põe fim a um constrangedor paralelo: as diferenças reais entre a rede de correspondência em papel e a telemática estariam na mediação do hardware e na imediatez (não-mediação) do tempo. Ao fim de muita observação, a sociedade de informação baseada no processo de “publicação-privatização” parecia caminhar para uma comunicação indivíduo-indivíduo. No entanto, não seria possível conjecturar sobre tal caminho, pois, ao se pensar na comunicação indivíduo-indivíduo, uma pergunta surge sublinhada: como propiciar o acesso entre páginas personais?

A resposta empresarial já havia sido dada com os mecanismos de pesquisa, dentre os quais o Google ainda desponta como o mais proeminente. Tais mecanismos não passariam de novos sites, porém, sua função não seria a de apresentar seus próprios conteúdos, mas sim de indexar endereços e disponibilizar hiperlinks. Essa configuração constitui, sumariamente, a resposta dada para a pergunta a respeito do modo como conectar páginas personais, e pode ser compreendida no termo plataforma.

As plataformas substituem a experiência de navegação e guiam a circulação de dados através da indexação de endereços e disponibilização, por interface própria, de hiperlinks. A hegemonia das plataformas torna obrigatório para o usuário dos browsers o preenchimento de perfis mais detalhados. Aquilo que, antes da disseminação das plataformas de compartilhamento (fotologs, blogs, Orkut, Facebook, Tweeter), poderia ser resumido no código de identificação do computador pessoal (ID), estende-se para caracterizações personais e oficiais (aparência, gostos, números de telefone). Tais exigências, atualmente, significam que o simples ato de acionar o browser já é a abertura de uma “conta”. A cada site acessado, essa conta, ou perfil, é enriquecida com características pessoais do usuário.

A partir desse ponto, não haveria mais “navegação”. A evaporação do mar de conteúdos em rede forma a chamada nuvem de dados, dentro da qual o usuário somente pode se localizar através das plataformas de pesquisa. Não seria possível guardar todos os endereços em uma caderneta e não haveria mesmo por que fazê-lo, quando seu perfil é composto por toda a sorte e aparências e desejos, imagens, sons e valores sem qualquer parede que os contenha. As plataformas não requisitam ao usuário que siga até os endereços, tampouco que procure por hiperlinks através dos quais navegar, pelo contrário, entende o usuário como uma força motriz para manter as ondas de dados em movimento. A informação segue até o usuário, atraída pelas características agregadas ao seu perfil. Estranhamente, não é pedido a esse “sujeito indexado” que consuma a informação, mas apenas que a redirecione para novos perfis, que a compartilhe. A acolhedora palavra compartilhar assume ares de frieza e afasia.

O corpo que espelha conteúdos nas plataformas é o mesmo corpo que explora o “mapa” de canais e programas da TV a cabo. No caso da TV a cabo, é evidente a manutenção da linearidade “publicação-privatização”. No caso das plataformas em rede, essa relação não é nítida, pois todos os indivíduos compartilham, todos os indivíduos “publicam-se”, mas poucos privatizam. Quem privatiza as informações publicadas na web? Que espécie de interação existe entre os perfis componentes de tais plataformas e as informações que circulam?

Os modos de interação abrigam sempre os limites dos meios de comunicação. No caso das mídias baseadas em sistemas computadorizados, falar em interatividade é uma tautologia (Manovich, 2001, p. 71), pois é necessária a interação com a aparelhagem e com os códigos de acesso à informação para que a comunicação se realize. Teríamos, após a interação com o hardware, toda a série de possibilidades-limite de interação das interfaces virtuais.[4] Enxergar as plataformas como meio no qual habitam perfis é um equívoco nada saudável. Ao gerenciar as conexões entre dados provenientes de computadores pessoais, as plataformas de compartilhamento transformam os perfis em canais que se retroalimentam. O cenário poderia ser descrito: todos movimentam dados já publicados enquanto privatizam a interface da plataforma, ou seja, um conteúdo autorreferencial.

No interior de tal cenário, multiplicam-se alternativas comportamentais nas atividades de mixagem, colagem, sampling e mashup.[5] Apesar de não serem práticas surgidas com a internet, a mixagem, a colagem e o sampling adquirem novo corpo ao serem adotadas pelas mídias digitais. “Editar” um conteúdo antes de compartilhá-lo é uma ação que confere ao usuário um nível de atividade publicadora aparentemente alto. No entanto, tal processo é logo assimilado através de ferramentas de ação sobre os conteúdos divulgados. Tais ferramentas podem apresentar-se como novas plataformas direcionadas para mídias móveis (Instagram, Foursquare), permissão para micro edições da plataforma (“marcadores”, páginas de eventos, páginas profissionais, promoção de “pins”), ou padronizações expressivas (bancos de GIF, random sentence generators).

Em qualquer desses casos, consolida-se a sensação de interação e de personalização dos conteúdos. A chamada “estética do mashup” (Souza, 2009, p. 13) consiste na aparência e na experiência acarretadas pela remixagem de dados provenientes de fontes diversas através de aplicativos que integram funções de outros programas e plataformas. Desse modo, apropriar e remixar surgem como palavras-chave para a compreensão do universo expressivo da web 3.0, ou “web semântica”.[6] Quando a indexação de conteúdos em um “objeto visual” (como uma JPG, GIF animado ou toda a interface de um aplicativo) traz a sensação de possibilidades ad infinitum, o gerenciamento das escolhas que propiciam a atividade de pós-produção não se dá pela decisão humana, mas sim pela programação cada vez mais ilusionista das ferramentas.

Jens F. Jensen define interatividade como uma característica midiática que permite ao usuário influenciar forma e/ou conteúdo em um processo de comunicação mediada (Jensen, 1998, p. 201). O pesquisador dinamarquês tipifica a interatividade em quatro categorias: de transmissão, de consulta, de registro e de conversação. Do primeiro ao último dos quatro tipos, observa-se um crescimento da influência do usuário sobre o mecanismo que lhe permite a interação com o sistema comunicacional. Mesmo ao revisar sua categorização frente ao aparecimento da TV digital e da manutenção de conteúdos por compartilhamento, Jensen ainda considera (Diniz, 2012, p. 13) que a gama mais vasta de modos de interação em comunicação mediada permanece como “de transmissão” e “de consulta”.

No primeiro tipo, o que resta ao público é a recepção do conteúdo distribuído em transmissões unidirecionais. No segundo, a recepção se dá pela escolha dentre opções disponibilizadas pelo centro produtor de informação. Como um adendo à interatividade de consulta, aparecem os processos de remixagem por aplicativos englobados nas plataformas. Em suma, extravasar a aparência e os significados previstos nas ferramentas das plataformas é uma tarefa hercúlea. Considerem-se as informações presentes nos perfis detalhados dos usuários que permanecem logados e os processos de pós-produção na web estariam mais próximos da ação de trocar de canal na programação da TV a cabo do que de qualquer espécie de edição.

A simulação talvez seja uma palavra que nos aproxime das realizações possíveis na “estética do mashup”. Em “Like a Rolling Stone” (2013), vídeo interativo lançado pela Sony Music, em parceria com a empresa Interlude, encontramos a simulação de uma TV a cabo com 16 canais.[7] O vídeo, dirigido pelo israelense Vania Heymann, é o primeiro clipe oficial da canção composta e gravada por Bob Dylan (1965), a exceção de versões gravadas por outros músicos e conjuntos musicais. Ao abrir o player, o usuário é apresentado a uma interface na qual pode interferir no volume e no canal exibido. Quando a música se inicia, nota-se que os apresentadores e atores parecem assumir o papel de intérpretes-dubladores da canção. Ao acionar os botões para troca de canais, o usuário pode observar Like a Rolling Stone dublada em diversos programas de TV a cabo.

Ao todo, são disponibilizados 75 minutos de gravação. Os apresentadores e atores dublaram a canção do início ao fim, de modo que a permanência em um canal não impede o usuário de acompanhar a música completa. Essa simulação aproxima-se de um tipo de produção amadora, voltada para a construção de vídeos mashup. No entanto, o poder empresarial que alicerça a produção, junto à apresentação em uma interface própria para permitir tal nível de interação, transforma o vídeo em material promocional do lançamento de “The Complete Album Collection Volume 1”. Outra diferença básica está nos métodos de coleta dos dados mesclados. A existência ou não existência de autorização para a veiculação de dados em um vídeo-colagem, interativo ou não, define boa parte do sentido de seu consumo.

Certo é que a canção passa por alguma ressignificação ao ser vinculada à imagem dos atores e às atividades referentes a cada programa de TV presente nos 75 minutos de vídeo. É também curiosa a retomada de uma canção para um vídeo promocional, 45 anos após seu lançamento oficial. O que essa experiência pop nos mostra, em última análise, é que todos os itens possíveis de serem memorizados na rede tornaram-se material para o trabalho de pós-produção, e que tal trabalho obedece a limites de disponibilidade. A interatividade promovida pelas ferramentas das plataformas nos dá sempre uma série de “canais” como escolhas possíveis. Cabe perguntar quais as reais diferenças entre a escolha em um grupo de 16 canais e a escolha em um grupo aparentemente infinito de canais, quando somente podemos acessar uma gama de canais “separados” de acordo com nosso perfil. Para tratar essa pergunta, precisamos recorrer ao sentido de narrativa para as mídias digitais.

André Paz e Kátia Maciel (Paz; Jucá, 2019, p. 9) fazem referência a produções para a web que podem ser compreendidas dentro do campo do audiovisual. Essas são produções que usam as interfaces interativas e a internet como veículos. Embora compreendidas como documentários, suas tipificações são variadas. Falamos em narrativa digital interativa como um “um sistema no qual várias mídias (textos, vídeos, animações, gráficos, dentre outros) são disponibilizados pela interface.”; documentários interativos ou I-docs como peças que “trabalham com o tratamento criativo da realidade, enquanto incorporam a interatividade à narrativa.”; e documentário transmídia, como propostas que pressupõem “um conjunto de conteúdos que atravessa múltiplas plataformas com conexões narrativas e estéticas, oferecendo experiências complementares dentro de um mesmo universo narrativo.” (Paz; Maciel, 2019, p. 47-49). Cada uma dessas tipificações assenta-se em variados tipos de interação.

Em “The Living Documentary” (2013), Sandra Gaudenzi, apresenta quatro modos de  interatividade: hipertextual, conversacional, participativo e experiencial. O modo hipertextual baseia-se na visão de que a máquina estaria disponível para organizar um infinito número de respostas para as requisições humanas, feitas a partir da escolha de caminhos e saltos entre hiperlinks. O conversacional pressupõem uma resposta da máquina que simularia a experiência de paridade humano-máquina. No participativo, a interface é projetada para estabelecer a base para construção do conteúdo, como as fundações de um prédio, sobre as quais o interator pode adicionar elementos, contanto que obedeçam aos limites propostos pelo design inicial. Já no experiencial, o interator não é requisitado a inserir conteúdo ou estabelecer conversa, mas a encarar como resultado de sua interação uma experiência não apenas de consumo de informações, mas de vivência corporal. (Gaudenzi, 2013, pp. 39-68).

Quaisquer desses modos somente funciona a partir de uma interface que dá acesso a um banco de dados. Um banco de dados não possuiria forma narrativa incutida. É possível pensar parte da história da comunicação a partir das disputas entre bancos de dados e narrativas (Manovich, 2015, p. 19). Nessa separação, devemos compreender que narrativa: organiza os dados de acordo com uma sequência determinada para dar sentido ao conjunto; enquanto o banco de dados: organiza os dados de modo a permitir a busca e o acesso de informações especificas, estejam elas relacionadas por hierarquia, distribuídas em rede ou por complementariedade.

A partir do ponto em que a quantidade de dados excede no capacidade de digestão humana, haveria duas formas de organizá-los para que possuam sentido: interface e algoritmo. Nessa lógica, Manovich compara a experiência com as interfaces interativas com a dos jogos e nos pergunta se seria o algoritmo seria a narratividade do banco de dados (Manovich, 2015, p. 11)

Nos modos de interação em que a interface deve dar acesso a um conjunto vasto de dados e o algoritmo organizá-los de modo que se apresentam ao interator como provido de sentido, a experiência torna-se mais direcionada. A ilusão da quantidade de escolhas (ou canais) encobre a limitação desse direcionamento. Nessa lógica, o que podemos fazer em plataformas está menos no âmbito do consumo de informações e mais no de aprender as regras do algoritmo e reproduzi-las para que o jogo continue.

Conclusão

Destacamos a transição do consumo de informações de um contexto familiar e social, exemplificado pela passagem da popularização da TV para uma experiência cada vez mais individualizada e controlada pelas plataformas digitais. O conceito de privatização maquínica é desenvolvido no cruzamento de ideias de Flusser e Santaella, e refere-se ao processo pelo qual as experiências públicas de recepção de informação são assimiladas no âmbito privado e mediadas por tecnologias que operam autonomamente. Quando falamos em mediação, consideramos tanto as opções interativas das plataformas (opções de controle, customização e interferência em conteúdos digitais) quanto a dinâmica efetivada por algoritmos em redes sociais.

Perguntamos a respeito de como o usuário da “web semântica” utiliza os aparelhos (ferramentas, plataformas, canais) para receber as informações que lhe são disponibilizadas. Diante dos caminhos descritos nos parágrafos acima, podemos concluir que os processos de pós-produção na web obedecem, em sua maioria, a tipos de interatividade de transmissão e de consulta. Posto isto, aproxima-se da privatização de conteúdos, isto é, da recepção de informações, de respostas automáticas presentes nas possibilidades dadas pelas plataformas de acordo com os perfis preenchidos. Em tal processo de deliberação programada pelas interfaces exploradas pelos usuários da web consistiria a “privatização maquínica”, possível de ser observada no exemplo do vídeo interativo “Like a Rolling Stone”. Quais seriam, então, os limites entre mediação dos aparelhos e nosso “inconsciente tecnológico”? [8]

Mesmo sem atingir uma resposta satisfatória para tal pergunta, é possível refletir uma questão gêmea: como o privatizador de conteúdos delibera dados com os quais pode reprogramar e veicular informação?

Concluímos que as interações nas plataformas digitais proporcionam um tipo limitado de interatividade e debate, além de simularem essas experiências, o que leva a uma espécie de autorreferencialidade e uma privatização da interface que limita a capacidade do usuário de influenciar as dinâmicas e o formato do conteúdo. O termo privatização surge, aqui, no sentido de trazer para o ambiente privado e individual, na expressão de Flusser. A esse entendimento, agregamos a compreensão das mudanças acarretas pela assimilação do maquínico ao humano. A privatização maquínica emergente sugere que, embora as plataformas ofereçam a ilusão de escolha e personalização, elas moldam as interações de maneiras que servem aos interesses das próprias plataformas, o que permite questionar a natureza da interatividade nas novas mídias.

 

 

Referências

ASPIS, Renata Lima. Documentar a Si Mesmo: resistência nas sociedades de controle. Informática na Educação: teoria & prática, Porto Alegre, v. 13, n. 1, p. 67-74, jan./jun. 2010.

BASTOS, Marcus. ex-Crever? Literatura, Linguagem e Tecnologia. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Orientadora: Dr.ª Lúcia Santaella). São Paulo: PUC, 2005.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DYLAM, Bob. Like a Rolling Stone. In: Highway 61 Revisited. New York: Columbia Records, 1965, ‘51:26 min, faixa 1, ‘6:09 min.

DINIZ, Talita Rampazzo. A interatividade no telejornalismo: lacunas e possibilidades para pensar a temática no Brasil. Animus Revista Interamericana de Comunicação Midiática, v. 11, n. 21, Jan-Jun, pp. 3-18, 2012.

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FLUSSER, Vilém. O Universo das Imagens Técnicas: Elogio da Superficialidade. São Paulo: Anablume, 2008.

FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Trad. José da Silva Brandão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

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[1] Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGA-UFES), bolsista FAPES.

[2] Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGA-UFES).

[3] Frederico (2010) nos alerta sobre as deturpações do pensamento de Debord a respeito do “espetáculo” e nos lembra das bases de tal teoria. Com uma atualização da busca de Feuerbach pela re-ligação do homem com seus atributos alienados na esfera do transcendente e a retomada da cisão marxista entre aparência e vida social, Debord entende o espetáculo como uma forma laicizada de religião (Frederico, 2010, p. 184).

[4] Lev Manovich evita, em “Language of New Media” (2001), usar puramente o sentido de interatividade. Dentre os conceitos alternativos apresentados, o próprio autor salienta: interatividade baseada em menus, salability, simulação, imageinterface e imagem-instrumento. De modo geral, as mídias e interfaces podem apresentar códigos abertos e fechados. Toda a espécie de interação mais profunda com os códigos, no entanto, é dependente das capacidades do interator.

[5] Marcus Bastos (2005) compara o processo iniciado pela cultura digital com o disparado pela invenção da imprensa mecânica. Para o autor, a maleabilidade dos fluxos de linguagem pode ser tratada através do conceito de “escrita digital”, no qual se insere a chamada “cultura da reciclagem: “As mídias digitais acentuam o jogo de reciclagens, presentes de maneiras distintas na colagem, na apropriação e no remix.” (Bastos, 2005, p. 17)

[6] A web semântica é criação de Sir Timothy John Berners-Lee (mesmo criador da World Wide Web e da HTTP) e consiste na adição de parâmetros de interpretação contextuais nos protocolos de pesquisa para Internet. Para tanto, foi necessária a implementação de tecnologias que realizam as chamadas “ontologias” dos dados presentes na web. O termo não é usado como na Filosofia, mas sim como indicativo do estabelecimento de contextos que permitam a interpretação por parte dos próprios aparelhos que realizam as pesquisas (Pickler, 2007, p. 66).

[7]  Disponível em: https://video.bobdylan.com/

[8] Olliver Dyes utiliza a expressão “inconsciente tecnológico” para se referir ao modo de vida que se solidifica com o avanço tecnológico da segunda metade do século XX. O autor observa que todas as necessidades primárias dos seres humanos tendem a ser supridas pelo aparato tecnológico, o que leva ao desaparecimento dos medos primitivos, como fome e insegurança. Tal conforto, no entanto, carreia um mais profundo desconhecimento dos modos de construção e atuação da própria tecnologia (Dye, 2003, p. 268-269).

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