Texto de Rodrigo Hipólito
No caminho de resgatar anotações perdidas de pesquisas já concluídas, tenho encontrado páginas e mais páginas de texto que poderiam ter se tornado artigos e ensaios, mas ficará na gaveta. Partes dessas anotações encontraram seus lugares em textos já publicados, outras permaneceram perdidas entre amontoados e citações e quase-fichamentos. Esse é o caso do que eu tinha separado em fins de 2011 e começo de 2012, sobre “Aspiro ao grande labirinto”.[1]
Organizado por Luciano Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão, Aspiro ao grande labirinto reúne textos fundamentais de Hélio Oiticica (1937-1980. Publicado em 1986 pela editora Rocco, o livro compila escritos que abrangem desde reflexões teóricas até cartas e ensaios. A edição inclui uma introdução assinada por Figueiredo e por Mário Pedrosa, que contextualizam a trajetória do artista e sua ruptura com convenções estéticas, além de destacar sua transição do neoconcretismo para propostas ambientais e participativas, como os Parangolés e Penetráveis. “Aspiro ao grande labirinto” mostra um pouco do pensamento de Oiticica e revela como era particular sua conversa com filosofias que ainda desafiam a separação entre arte, política e vida cotidiana.
Ele fala sobre marginalidade, experimentalismo e a busca por uma “arte total”, que fosse capaz de transcender os limites dos museus e galerias. Oiticica criticava a fetichização da obra de arte, ligava isso a trabalhos mais tradicionais e categorizáveis, ao mesmo tempo em que criava suas próprias categorias.
A estrutura do livro reflete a fragmentação e a multiplicidade de HO. Pulamos entre datas, ensaios densos, aforismos e registros pessoais, quase sempre em um tom provocativo e hermético. Essa disposição não linear, embora desafiadora, reforça a ideia de HO de que a arte deve ser um processo em constante transformação, não um produto finalizado. Por isso, entendo quem pega esse livro e se irrita. Ele não serve como qualquer introdução ao pensamento de HO, mas vale muito pra quem já tinha se tornado um pouco íntimo de sua trajetória, preocupações, conceitos e espaços vazios. Apesar disso, a organização cronológica e temática facilita a compreensão de seu desenvolvimento intelectual, desde as influências concretistas até a defesa da Tropicália como síntese de uma estética brasileira anticolonial.
Como documento histórico, AGL é essencial para entender a arte contemporânea brasileira e suas conexões globais. Ele não apenas deixa perceber a complexidade do pensamento de HO, como exige que quem lê contextualize seus processos dentro da contracultura dos anos 1960-70. Não pretendo reler esse livro, pois é um mergulho difícil de se fazer duas vezes.
Anotações
26 de nov. de 2011
As referências ao conceitos de duração de Bergson já aparecem nos escritos de HO, de modo maduro, em Dezembro de 1959 (AGL, p. 16). HO afirma a arte de seu tempo como terminantemente encaminhada para o “metafísico”: “Nunca o silêncio, que mais representa o Metafísico na arte, se expressou, ele mesmo, de dentro para fora. Se antes se atingia a esse silêncio era sempre em mistura com o não-silêncio, o fora que subia até a duração, atingindo-a. agora, a duração, tempo interior, aparece em silêncio, de dentro para fora. Parte-se do silêncio mesmo, logo a obra é duração ela mesma, e não uma duração que surge ou que se intui dentro do mundo do não-silêncio (…) o espaço existe ele mesmo, o artista temporaliza esse espaço nele mesmo e o resultado será espácio-temporal. O problema, pois, é o tempo e não o espaço, dependendo um do outro. Se fosse o espaço, chegaríamos, novamente, ao material, racionalização. A noção de espaço é racional por excelência, provém da inteligência e não da intuição (Bergson)”.
HO afirma que chega, através da cor, a uma concepção metafísica da pintura, ao despir a cor dos sentidos anteriores e encará-la como cor-luz/cor-tempo, o que faria com que a cor fosse mostrada como ação, em sua característica propriamente temporal, logo, vista sob o prisma da “duração” (AGL, pp. 16-17): “A estrutura vem junto com a idéia da cor, é por isso se torna, ela também, temporal. Não há estrutura a priori, ela se constrói na ação mesma da cor-luz. Essa pintura é fatalmente de planos, pois são puros em essência e carregam ais essa duração.”(AGL, p. 17)
Maio de 1960: “Nada existe a priori; o tempo tudo inicia e tudo faz; até o próprio tempo se faz por si mesmo. Para o artista ‘o fazer-se’, o profundo fazer-se que ultrapassa as condições do faciendi material, é que constitui a sua principal condição criativa. A criação se faz, nunca se deixa fazer.” (AGL, p. 18)
Curiosa a contradição com o pensamento fenomenológico: “Todo o visível é antes invisível, a arte é o invisível que se torna visível, não como um passe de mágica, mas pelo próprio fazer do artista com a matéria, que se torna obra.” (AGL, p. 21) Veremos se essa posição é revertida posteriormente.
4 de Set. de 1960: a respeito da passagem da obra para o espaço com a quebra da “estrutura quadro”; “a obra passa a se fazer no espaço (…) o espaço já existe latente e a obra nasce temporalmente. “ E já se percebem os indicativos da consciência das propriedades da obra diretamente vinculadas ao espectador: “(…) não é só dimensão física, mas uma dimensão que é completada na relação da obra com o espectador”. (AGL, p. 21)
4 de Nov. de 1960: sobre a abertura para a estrutura da obra: “Os núcleos, equali, para mim, são essencialmente musicais na sua relação de parte com parte, que longe da seriação de elementos, compõem um todo fenômeno lógico”. (AGL, p. 23).
28 de nov. de 2011
16 de Fev. de 1961: “Para mim a pintura de Pollock já se realiza virtualmente no espaço. É preciso, pois, a conscientização do problema e o lançamento concreto e firme das bases desse desenvolvimento da pintura, ainda que não refeita da destruição da figura. Na verdade a desintegração do quadro ainda é a continuação da desintegração da figura, à procura de uma arte não-naturalista, não-objetiva” (AGL, p. 27).
22 de Fev. de 1961: “Assim, para mim, quando realizo maquetas ou projetos de maquetas, labirintos por excelência, quero que a estrutura arquitetônica recrie e incorpore o espaço real num espaço virtual, estético, e num tempo que é também estético. seria a tentativa de dar ao espaço real um tempo, uma vivência estética, aproximando-se assim do mágico, tal o seu caráter vital. (…) A maqueta é mais virtual, não tanto labirinto, porém movimento e tensão, tomando assim uma dimensão que tende a ser limitada. O espaço e o tempo se casam em definitivo.” (AGL, p. 29)
06 de dez. de 2011
Ressalta-se, aqui, o indicativo da ligação entre a posição virtual da cor e o desenvolvimento da estrutura sob o aporte do conceito de duração, que é mesmo colocado em itálico.
17 de Março de 1962: “O desenvolvimento nuclear que procuro não é a tentativa de amenizar os contrastes, se bem que o fala em certo sentido, mas de movimentar virtualmente a cor, em sua estrutura mesma, já que para mim a dinamização da cor pelos contrastes se acha esgotada no momento, como a justaposição dissonante e a justaposição de complementares. O desenvolvimento nuclear antes de ser dinamização da cor é a sua duração no espaço e no tempo. É a volta ao núcleo da cor que começa na procura da sua luminosidade intrínseca, virtual, interior, até o seu movimento do mais estático para a duração.” (AGL, p. 40) Na continuidade do texto, explicita-se esse “desenvolvimento do cor” e estipula-se outra ligação, talvez inevitável, ao tomar-se o conceito de duração: “Quero, pois, por esse sentido da cor exprimir uma vivência, digamos assim, que não me é possível de outra maneira. Dir-se-ia estética?, existencial criativa?, sei lá! Como se queira” (p. 41).
Cor, tempo e estrutura
Ao destituir a pintura do sentido de representação, abre-se a série de mudanças que leva a própria estrutura da obra para o espaço. A cor e o plano passam a habitar o espaço e isso as dispõe para a dimensão temporal. O “tempo” torna-se, assim, o principal elemento dessa passagem. “Nasce então o conceito de não-objeto (…) já que a estrutura não era mais unilateral como o quadro, mas pluridimensional. O tempo, porém, toma na obra de arte um sentido especial, diferente dos sentidos que possui em outros campos do conhecimento; está mais próximo da filosofia e das leis da percepção, mas o seu sentido simbólico, da relação interior do homem com o mundo, relação existencial, é que caracteriza o tempo na obra de arte.” (p. 47)
Ao final do texto, surgem referências ao conceito de intuição (não sei se de Bergson, acredito que se fosse ele haveria de ter citado) e a fenomenologia de MP: “A gênese da obra de arte é de tal modo ligada e participada pelo artista , que já não se pode separar matéria de espírito, pois, como frisa Merleau-Ponty, matéria e espírito são dialéticas de um só fenômeno. O elemento condutor e criador do artista é a intuição, e, como disse certa vez Klee, “em última análise a obra de arte é intuição, e a intuição não poderá ser superada”. (p. 49)
Nov. 1964
Bases Fundamentais para uma definição do “Parangolé”
Após conceber a “passagem da obra para o espaço” e sua estruturação temporal no sentido de duração surge, quase que por inevitabilidade, a construção da pintura no espaço. A partir do Parangolé, passa-se a falar de “participação” e de geração de significado a posteriori, i.e, a coisa surge como coisa inacabada. “A descoberta do que chamo Parangolé marca o ponto crucial e define uma posição específica no desenvolvimento teórico de toda minha experiência da estrutura-cor no espaço, principalmente no que se refere a uma nova definição do que seja, nessa mesma experiência, o ‘objeto plástico’, ou seja, a obra” (p. 65). “Há como uma hierarquia de ordens na plasmação experimental de Núcleos, Penetráveis e Bólides, todas elas, porém, dirigidas para essa criação de um mundo ambiental onde essa estrutura da obra de desenvolva e teça a sua trama original. A participação do espectador é também aqui característica em relação ao que hoje exista na arte em geral: é uma ‘participação ambiental’ por excelência.” (p. 67).
Anotações sobre o Parangolé
O caminho parece direcionar-se cada vez mais para a satisfação ou completude da obra no ato, ou na decisão do espectador em participar. “A ação é a pura manifestação expressiva da obra”. Talvez sirva dizer que a obra de HO preze, sem excluir os demais pontos, por uma manutenção da expressividade.
Chega-se a falar de “vivência mágica” e, após a indicação de procura do “mito” com relação ao parangolé, pode-se realizar ligação entre o tempo da vivência da obra e o “tempo mítico” apontado por MP em O Visível e o Invisível.
Durante o período de desenvolvimento da idéia de Parangolé é quando, aparentemente, solidifica-se a consciência da participação do espectador. “O Parangolé revela então o seu caráter fundamental de ‘estrutura ambiental’, possuindo um núcleo principal: o participador-obra, que se desmembra em ‘participador’ quando assiste e ‘obra’ quando assistida de fora nesse espaço-tempo ambiental. Esses núcleos participador-obra, ao se relacionarem num ambiente determinado (numa exposição, p.ex.), criam um ‘sistema ambiental’ Parangolé, que por sua vez poderia ser ‘assistido’ por outros participadores de fora.” (p. 72).
A virada para a ação como modo de fazer surgir a obra traz também outras concepções e conceitos, como é o caso da imanência da obra (idéia que devemos desenvolver com maior acuidade): “(…) em verdade a dança, o ritmo, são o próprio ato plástico na sua crudeza essencial – está aí apontada a direção da descoberta da imanência”. (p. 73)
12 de Novembro de 1965
A dança na minha experiência
Outra relação a se fazer é entre a dicotomia dionisíaco/apolíneo de Nietzsche e a posição de abertura do poder criativo a partir do descondicionamento. Essa seria uma discussão mais adiantada. Mesmo assim, é curioso observar já o uso dessas referências em meados da década de 1960: “A dança também não propõe uma ‘fuga’ desse mundo imanente, mas o revela em toda a sua plenitude – o que seria para Nietzsche a ‘embriaguez dionisíaca’ é na verdade uma ‘lucidez expressiva da imanência do ato’, ato esse que não se caracteriza por parcialidade alguma e sim por sua totalidade como tal – uma expressão total do eu”. (p. 74).
10 de Abril de 1966: Oiticica já fala da liberação do poder criativo do participador; certamente nesse primeiro momento a carga social enviada é muito maior, mas aponta para o mesmo desenvolvimento conceitual que a obra tomará: “Não posso considerar hoje o Parangolé como uma estrutura transformável-cinética pelo espectador, mas também o seu oposto, ou seja, as coisas, ou melhor, os objetos que estão fundem uma relação diferente no espaço objetivo, ou seja, ‘deslocam’ o espaço ambiental das relações obvias já conhecidas. Está aí a chave do que será o que chamo de ‘arte ambiental’: o eternamente móvel, transformável, que se estrutura pelo ato do espectador e o estático, que é também transformável a seu modo, dependendo do ambiente em que esteja participando como estrutura; será necessária a criação de ‘ambientes’ para essas obras – o próprio conceito de ‘exposição’ no seu sentido tradicional já muda, pois de nada significa ‘expor’ tais peças (seria aí um interesse parcial menor), mas sim a criação de espaços estruturados, livres ao mesmo tempo à participação e invenção criativa do espectador.” (p. 76).
Julho de 1966: Todas essas definições aparecem exacerbadas nessa posição de “programa ambiental” que HO dá para o conceito de Parangolé, sendo este já então um conceito mais amplo, parelho a antiarte: “Antiarte – compreensão e razão de ser o artista não mais como um criador para a contemplação mas como um motivados para a criação (…) A antiarte seria uma completação da necessidade coletiva de uma atividade criadora latente (…)” (p. 77). Oiticica reconhece sua produção dentro de um programa que verte para a experiência ambiental (temporal, vivencial) e dessa para a liberação do poder criativo, não como uma simples experiência, mas como modo de exceder a condição atual do individuo. Atende também ao conceito de apropriação, chegando ao ponto de propor a apropriação de espaços inteiros, parques e mesmo concertos, como modo de pleitear a uma experiência ambiental de liberação do poder criativo no âmbito social. A posição de antiarte estaria sempre num estado de contraponto, de oposição e nesse sentido poderia permitir a transformação e a ascendência para uma condição superior. “Já afirmei e torno a lembrar aqui: o meu programa ambiental a que chamo de maneira geral de Parangolé não pretende estabelecer uma ‘nova moral’ ou coisa semelhante, mas ‘derrubar todas as morais’, pois que estas tendem a um conformismo estagnizante, a estereotipar opiniões e criar conceitos não criativos. A liberdade moral não é uma nova moral, mas uma espécie de antimoral, baseada na experiência de cada um: é perigosa e traz grandes infortúnios, mas jamais trai a quem a pratica: simplesmente dá a cada um o seu próprio encargo, a sua responsabilidade individual; está acima do bem e do mal” (p. 81) Está aqui o tom revolucionário empregado por HO a respeito da liberação do poder criativo através da experiência com o fenômeno. Provavelmente as datas batem com o momento em que HO travava contado com mais leituras de Marcuse, como já apontavam as “Cartas”, de modo que pode ser válido ler os textos exatos de Marcuse que incentivaram as movimentações estudantis de 1968.
15 de maio de 1967: a respeito das intenções e questões levantadas por Tropicália: “Dois elementos, pois, importantes para mim na minha evolução contavam aqui de modo firme: o primeiro seria o de criar ambiente para o comportamento, ambiente este que envolveria as ‘obras’ e nasceria em conformidade com elas; o segundo referente ao próprio comportamento do participador, baseado no seu contato direto com o tal ambiente, nas suas perceptivas globais que resultam no próprio comportamento”. (p. 100).
03 de jan. de 2012
Dezembro de 1967
O aparecimento do suprasensorial na arte brasileira
HO aponta a passagem da condição da obra abarcada pelas categorias (pintura, escultura) para a coisa aberta, para o estado de objeto. Esse “objeto” já pediria a participação do público, e esse ponto é colocado de modo bastante consciente, não como um “novo condicionamento” para o espectador, mas já no sentido de abertura para a experiência, como quebra dos condicionamentos.
É também patente a intenção de desvincular os chamados “objetos” da condição estética. “Não quer dizer aqui criar uma estética do objeto ou do ambiente; este seria uma lado menor do problema, que pode tomar certa importância, mas limitada ao espaço e ao mesmo tempo nessa evolução. O que importa, ainda, é a estrutura interna das proposições, sua objetividade [a conceituação da palavra objetividade, de modo fenomenológico, é importante]. (…) O próprio ‘fazer’ da obra seria violado, assim como a ‘elaboração’ interior, já que o verdadeiro ‘fazer’ seria a vivência do indivíduo”. (p. 103).
HO já coloca os “objetos” também como “proposições cada vez mais abertas, exercícios criativos”, indicando onde estaria a questão da arte nesse fazer, definitivamente não mais na materialidade, mas num conjunto de relações capaz de “levar o indivíduo a uma ‘supra-sensação’ ao dilatamento de suas capacidades sensoriais habituais, para a descoberta de seu senso criativo interior (…)” (p. 104).
[1] OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Seleção de textos de Luciano Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
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