[conto] Arquivo: Carla

Texto de Rodrigo Hipólito

Publicado como podcast em Arquivo: Carla. Original MIDCast Política, 11 mai. 2025.

Capa do episódio de podcast com fundo cinza. Na parte de cima, centralizado, o logo do MIDCast Política. Abaixo, o texto “Arquivo: Carla”. Logo abaixo uma silhueta de uma mulher de cabelos curtos e encaracolados.

A cela estreita abriga uma solidão que se estende além das grades. Carla encosta a testa na parede fria, a textura áspera lembrando um mapa de decisões passadas. Lá fora, o mundo segue girando, indiferente. Jornais estampam manchetes cortantes: “De revolucionária a réu – o ocaso de um símbolo.” Nenhuma linha recorda os anos de discursos ardentes, apenas o momento em que a arma brilhou sob o sol do horário de almoço.

Na primeira semana de cárcere, sonhos a perseguem. Juízes sem rosto recitam artigos do código penal, enquanto vozes anônimas sussurram “sentinela” como um epíteto irônico. Acorda com um gosto metálico na língua – sangue ou memória da noite pós Jardins, quando tudo desmoronou com o peso de uma pistola carregada e mal empunhada, em confiantes passos paquidérmicos.

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No passado, Carla sobe ao palanque com um sorriso que não alcança os olhos. O Partido a escolhe por sua ferocidade, não por idealismo. “Menos Estado, mais justiça”, ela proclama, enquanto apoiadores erguem cartazes com seu rosto transformado em ícone bélico, princesa guerreira, entre flores e fuzis. Na plateia, uma antiga companheira, agora rival, a observa com lábios cerrados. Duas mulheres outrora unidas, separadas por trincheiras ideológicas, incompatibilidades cognitivas, egoísmo e alucinações policialescas.

A ex-companheira a repreende após o comício, a acusando de trocar revolução por aplausos. Carla retruca, ajustando o broche do partido no paletó, argumentando que a revolução morrera nas urnas. “Você é burra, Carla”, é a única frase guardada pela memória coletiva dos moribundos mecanismos de busca.

O conflito com um deputado adversário marca o primeiro sinal de queda. Carla espalha acusações veladas, manchando reputações como quem semeia vento. Desafia o padrinho de casamento, aponta dedos para quem lhe dá avisos de bom grado, em um prenúncio do desespero que a acometeria em um futuro breve. Quando a condenação chega, Carla ri, declarando que a justiça é um teatro. Ela paga a multa com doações de seguidores. Cada moeda é um prego em seu caixão de virtudes virtuais.

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É março de 2021. Um homem magro, olhos fundos como abismos, visita Carla em seu autoexílio abismal. Ele fala em códigos e brechas digitais, sussurrando sobre um plano ousado: invadir sistemas judiciais, plantar documentos falsos para abalar o Supremo. Ela hesita, mas a sede de relevância fala mais alto. Carla transfere recursos para contas de assessores, separa imóveis onde o homem se esconderia, compra celulares e avisa seu público sobre a grandiosidade do que estaria porvir. Carla ordena que nenhum registro seja feito, mas assina papéis com mão firme e digita postagens sonolenta ou extasiada.

A operação fracassa. O homem é preso, e gravações revelam seu nome. No quarto escuro, Carla se questiona: quando foi que trocou megafones por esquemas sem fundamento? A resposta surge em fragmentos – no dia em que entendeu que o poder não se conquista com gritos, mas com silêncios estratégicos.

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É abril de 2024. Um ex-aliado a visita, trajando um terno que exala ambição desgastada. Senta-se à mesa de aço, evitando seu olhar. Ele a acusa de imprudência, de arrastar o grupo para sua tempestade. Carla ri, um som áspero, um riso desejoso de trincar os dentes e engasgar-se com sangue e saliva. Ela se lembra de que carregou suas bandeiras e lutou por suas causas. Ele se levanta, ajusta a gravata e declara a política um jogo de sobrevivência. “Você perdeu”, finaliza o ex-aliado, deixando cair um jornal com a manchete “Novo escândalo envolve contas pagas por deputada para ataque coordenado ao Supremo.” Seu nome não está lá. A roda da fortuna gira, engolindo novos sonhadores.

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Lembra-se de quando insistiu para uma ex-amiga matricular o filho em um colégio militar. Justificara como proteção. Precisava manter as amizades. Mas a imprensa acusou privilégios. Não há mais amigas, tampouco padrinhos. Seus companheiros congressistas a evitam, trocam de fileira nas cadeiras, interrompem a caminhada por um corredor. Um homem de terno atravessa seu caminho. “Por que insistiu naquela maluquice de não usar máscara? Era só você ter ficado calada. Aquilo nem era pauta sua!”. Carla não se lembra do nome dele. Um ex-assessor, talvez. Sua vontade de rebater acabou. Parece que aquilo foi há décadas. Quantos outros erros teria cometido? quantas vezes mais seria incompreendida? Perguntas a perfuram como alfinetes para ajustar o vestido de seu velório. Ela responde com silêncios, temendo que a verdade a diminua ainda mais.

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É março de 2025. Não há o tribunal lotado. Não há multidões no aguardo de sua sentença. Ministros de togas sombrias parecem estátuas de tempos empoeirados. Um deles lê a condenação com voz monótona: porte ilegal, constrangimento, invasão de sistemas. Carla olha para as câmeras. Não. Não há câmeras. Carla olha para a câmera do próprio celular e desiste de gravar. Nos corredores digitais, inimigos sorriem, ex-aliados mordem os lábios. Um grito ecoa: “Burra!”

Sua advogada argumenta em vão sobre imunidade e contexto político. Palavras vazias. Ao anunciarem dez anos de prisão e perda do mandato, Carla não chora. Sente alívio, como se um fardo de concreto fosse arrancado de seus ombros já cansados de se curvar.

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Na cela, um envelope sem remetente a aguarda. Dentro, uma foto antiga: Carla e a ex-companheira, abraçadas em protesto, rostos pintados, indicadores erguidos. No verso, uma mensagem: “Os espelhos quebrados ainda refletem luz.”

Naquela noite, Carla sonha com margens de rios. Ela mergulha nas águas turvas e descobre que pode respirar. Nada contra a corrente até avistar a praia do outro lado, onde sua versão jovem a espera, megafone em mãos.

A jovem pergunta por que ela parou de lutar. Carla responde com uma única palavra: “Solidão” Talvez, fosse medo de descobrir que estava errada. A jovem sorri, estendendo a mão. “E não estamos todas sozinhas?”

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