[crônica] Você fica aí parado no canto

Texto de Rodrigo Hipólito

Perdi as contas de em quantas casas já morei desde criança. Não é força de expressão. É impraticável recordar. Até os oito ou nove anos, competia com meu irmão do meio em uma espécie de partida de cronologia de casas. Logo perdemos a confiança na memória um do outro e brigávamos pela defesa da ordem que havíamos cantado. Após as primeiras discussões, a sequência entre a décima e a vigésima residência variavam tanto que se tornou impossível separar os desejos infantis de vitória da veracidade dos fatos narrados.

As mudanças eram tão frequentes que criamos métodos muito eficientes para organização e transporte dos móveis, roupas e objetos da morada antiga para a nova. Cidade pequena. Por vezes, o deslocamento era entre ruas paralelas. Nesses casos, nem mesmo era necessário fretar um caminhãozinho ou uma charrete. Tampouco havia necessidade de desmontar as duas camas. Retirávamos o estrado e carregávamos o catre com os varões fixados. O fogão poderia ser carregado por um adulto, a TV 14’ por uma criança, o guarda-roupas de duas portas valia uma viagem de dois, assim como a antiga mesa de madeira escura e pesada. Cada um levava uma cadeira ou um tamborete, uma ferramenta e uma caixa de livros. Uma viagem de carrinho de mão com as roupas juntadas em lençóis amarrados, outra com as panelas e sacolas de comida. Restavam umas pastas e bugigangas pessoais, antes de fechar a porta e devolver as chaves da casa antiga. Pronto. Mudança feita.

Eu não tive quinquilharias e trepeças até a vida adulta. Precisei apenas de uma mochila e umas pastas cheias de desenhos para me mudar de cidade. Não ter o que carregar era um costume de vida que facilitava idas e voltas. Não voltei. Fiquei na nova cidade, mas mantive o costume de pular de casa em casa por muitos anos. Ainda me sinto mais tranquilo com a ideia de não ter objetos. Insira aqui qualquer analogia óbvia com a sensação de leveza e ela vai funcionar bem. Mas, sei que as coisas não são tão simples e isso pode ser revelar um problema. Além disso, é meio triste e bastante improvável morar por anos em um lugar e não acumular um mundaréu de triquelitraques barulhentos que só fazem chacoalhar em caixas de papelão, se não forem organizados em móveis, pendurados em paredes ou adormecidos em gavetas.

Acredito que foi assim que perdi dois documentos na última mudança, meu certificado de reservista e meu cartão de vacinas. O primeiro não vai ter serventia em poucos anos. Nunca me cobraram a verificação do original e sua digitalização permanece em ótimo estado. Devo pedir uma segunda via, pois sou traumatizado pela violência burocrática.

O cartão de vacinas, no entanto, exigiu atenção. Os registros das vacinas em um sistema nacional acessível em rede é algo recente. Eu tinha apenas duas vacinas nele inseridas, tomadas já no fim da graduação, talvez depois disso.

Precisei de um cartão novo e de atualizar boa parte do meu quadro vacinal. Isso fez com que fossem recorrentes minhas visitas ao postinho de saúde de Jardim da Penha. Os demais frequentadores são uma boa amostra dos moradores da região, divididos entre senhorinhas brancas de cabelos brancos e passos firmes, velhos brancos de cabelos brancos e pés inchados da cachaça, e estudantes de graduação dos mais diversos tamanhos e cores de cabelo. Se desconsidero os dias de campanhas de vacinação, quando brotam bebês do teto aos rodapés, é um local tranquilo e até meio vazio.

Foi em uma dessas visitas que Dona Elba atravessou a porta da frente, sorriu ameaçadora para a recepcionista, girou cento e oitenta graus e, com cinco passos certeiros, fincou-se na minha frente e passou a me inquirir sobre seus remédios. Despreparado, não consegui gravar o nome do médico que ela via em mim. Não queria interrompê-la e precisei gastar energia para segurar o riso. Tomei consciência das minhas roupas e ironizei, na minha cabeça: agora sim, é o fim do racismo nesse país.

— Senhora. Desculpa. É que eu não trabalho aqui. Eu tô só esperando pra me vacinar.

— Ah tá.

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— E onde vão chamar meu nome?

— Ali, ó. Naquela televisão lá na frente. Seu nome vai aparecer em vermelho e com o número da sala.

— Nossa Senhora! É muito pequena a letra. Não dá nem pra diferenciar.

— Pode sentar lá perto. Olha lá, a cadeira vazia. Daí vai dar pra ver melhor.

— Tá bom. Você fica parado aí no canto todo de branco e confunde a cabeça da gente.

Dona Elba demorou dois ou três minutos para fechar os olhos depois de se sentar. Não se mexia. De longe, era difícil dizer se respirava. Supus que a velha tinha morrido. Mandei mensagem para uma amiga ela me retornou com a manchete “Senhora Branca morre dois minutos depois de demonstrar ser não-racista”. Ri, mas fiquei preocupado.

Besteira. Outra senhorinha sentou-se ao lado dela, começou a falar sozinha e a acordou. Logo, o nome de Dona Elba apareceu na tela, mas ela não percebeu. Na verdade, nunca tive certeza de que esse era o nome correto. Poderia ser outra das dez senhorinhas ali presentes. Elba ficou na minha cabeça porque eu tinha assisto a um filme de Napoleão no dia anterior, por ser o nome que estava na tela quando me chamaram para a sala de vacinas e, também, por ela ter desaparecido.

Saí da sala de vacina com meus dois braços devidamente picados e a anotação no cartão que me orientava a retornar apenas daqui dez anos para a próxima dose. Espero não perder o cartão nesse meio tempo.

Poderia ter apenas ido embora, mas preferi esperar mais alguns minutos. Uma das enfermeiras rodava os corredores e gritava:

— Dona Elba! Dona Elba na sala oito! Dona Elba!

Quando saía, ouvi uma das recepcionistas que voltava do almoço:

— Ih! Dona Elba sumiu de novo.

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