[crítica] A superfície da carne

Texto de Rodrigo Hipólito

Originalmente publicado em: Jornal ES Hoje, Cultura, p. 9, 20 jun. 2025.

Formada em Artes Plásticas pela UFES, natural de Vitória e moradora de Vila Velha, Liliana Sanches atua no cenário das artes capixaba há mais de 20 anos. Nesse tempo, tem passeado pela pintura, desenho, fotografia, serigrafia, instalação, literatura visual e por aí vai. Integrou coletivos, com o Grupo Célula de Gravura, participou de mostras em Portugal e México, além de várias exposições coletivas.

Vista da exposição “A Paixão Mora no Mistério”, no Museu de Arte do Espírito Santo – Dionísio Del Santo. Ao fundo, grande pintura em tecido e costuras em tons escuros, pendurada em sentido vertical, sem moldura. Ao lado, uma porta para outra sala. À direita dessa porta, parede coberta com pequenas peças de pintura em madeira. À direta dessa parede, uma entrada para outra sala, onde vemos duas pinturas quadradas, uma sobre a obra em sentido vertical, afixadas em uma estrutura móvel de madeira pintada de branco, como as paredes. O chão é cinza. No canto esquerdo da imagem, sobre o chão, há um objeto preto feito de papel que lembra uma pequena montanha. Foto de Cacá Lima.

Em “A Paixão Mora no Mistério”, com curadoria de Clara Sampaio, no MAES, a pintura invade o espaço e o espaço invade a pintura. Grandes telas divididas em trípticos impõem sua presença como altares contemporâneos ou janelas ampliadas para o inconsciente; enquanto polípticos, agrupamentos de pequenas pinturas, assemelham-se a coleções de achados arqueológicos pessoais ou diagramas de uma psique fragmentada. Tal variação de escalas e estruturas, do minúsculo e flutuante ao monumental e compartimentado, não é mero formalismo. A expografia apresenta uma estratégia sutil para modular a experiência emocional, oscilando entre a sedução do detalhe e o afastamento da vastidão onírica.

É nessa materialidade diversa que signos viscerais ganham força perturbadora e poética. Conchas emergem como formas vulvares, abrigos protetores ou fósseis de desejos passados, símbolos arquetípicos do feminino, do nascimento e do segredo guardado, sua textura lisa e interior convoluto ecoando na aplicação da tinta, ora fluida, ora espessa, por vezes rala, em pinceladas de um granulada pelicular.

Figura poderosamente dissonante é a cama abandonada em paisagem noturna. Colchão solitário em clareira, ou à beira de um penhasco celeste. Em oposição negativada, os detalhes vermelhos em um céu de azul inocente e flutuante são imagens de extrema vulnerabilidade, sugerindo repouso interrompido, abandono, intimidade violada ou, paradoxalmente, fusão radical com o selvagem afastado da terra. Quando os pés não tocam mais o chão?

A cama, símbolo típico do íntimo (sonho, sexo, repouso, morte), deslocada para a natureza bruta, torna-se ícone do desamparo e do desassossego. Num ponto alto de síntese visual, tentáculos abraçam simbioticamente ramos de plantas. Tal entrelaçamento orgânico não deve ser lido só como paixão como força primordial, inconsciente e natural, mas um reconhecimento racional tanto da flora externa quanto da fauna pulsante dentro de nós. Numa mostra como essa, corre-se o risco de supor que tudo está voltado para o Eu. Mas, o desejo se manifesta como raiz e como ventosa, como crescimento e como apreensão, no escuro da sala de fundos, no chão de entrada, no olho de madeira que observa você, espectador. Muitas das imagens e objetos de “A Paixão Mora no Mistério” nos olham de volta com tamanha desfaçatez, que roçam suas texturas em nossa pele, evocam a viscosidade sugerida da tinta, o som do tecido contra tecido, o contraste com a aspereza dos galhos pintados, criando uma fascinação tátil mesclada com a expectativa de perder controle.

Como resultado, variados turbilhões de sensações e ânsias interpretativas fazem com que o conjunto não esteja costurado. O respiro exigido de cada trabalho é longo, amplo e individualizante. Tantas vezes pede-se que artistas produzam obras com personalidade, mas isso não traz qualquer certeza de que uma peça seja interessante. A recusa de formar um conjunto coerente, a despeito de sua familiaridade formal, faz pensar em como podemos detestar e amar as pessoas que fazem nossa casa ser um lar.

No entanto, são a carne como objeto, o sangue como linha, o chão como trama e a pele como tecido os elementos unificadores da tese central de “A Paixão Mora no Mistério”: ela está por debaixo da pele, por dentro da carne, tenta sair de nossas vísceras, violenta e terna.

A pele é o território privilegiado desse mistério. Sanches cria superfícies enrugadas, marcadas, translúcidas, escondidas por camadas e amarradas por linhas. As próprias madeiras irregulares que servem de suporte funcionam como peles do mundo, sobre as quais o toque vira metáfora da escrita. É aqui que a exposição revela sua força motriz: a paixão que Sanches explora não é etérea, ideal ou intocável. Essa força manifesta-se voraz e incontrolável em formas embrenhadas (tentáculos, galhos retorcidos), em cores escuras e saturadas, no risco perdido no céu quase branco e na matéria aplicada com gestos gotejantes. Mas coexiste, inextricavelmente, uma doçura desconfortável: na delicadeza com que os ramos são pintados, na escolha de parar a cor pelo cansaço, na suavidade de marcas que apenas sujam a tela. Essa ternura não é oposto de violência, mas sua contraparte inevitável.

Essa mostra apresenta tentativas fatalmente irrealizáveis de reunir fragmentos do corpo sensível. Seus signos funcionam menos como objetos representados e mais como órgãos de um corpo simbólico maior, que não me arrisco a mensurar. Ela demonstra com eloquência como a pintura do século XXI, ao abraçar sem reservas a transversalidade com a instalação, adquire uma potência renovada para tratar de temas íntimos e amplos com complexidade e crueza que atiçam a carne do público. A paixão, de fato, reside no mistério pulsante sob a superfície. Quando tateada pelos olhos, vira outra coisa, esconde-se inquieta em nossas entranhas, até virar presença física e emocional, testemunho da matéria e do desejo que nos constituem.

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