Texto de Rodrigo Hipólito
Mota, Lucas. Moeda de Troca. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2025.
Lucas Mota constrói, em Moeda de Troca, uma narrativa pulsante sobre a crueza e a correria dos universos marginalizados. Seu domínio de uma linguagem que mescla o poético e o coloquial confere ao texto um ritmo cativante e enfurecedor. Existe essa cadência frenética da vida de quem acorda todos os dias preocupado com a própria sobrevivência. A escolha lexical, especialmente o termo “troca” e suas ramificações simbólicas, não é mero acaso, mas uma ferramenta astuta para discutir as dinâmicas de poder, exploração e sobrevivência em uma sociedade profundamente desigual. A prosa de Mota é, assim, tanto forma quanto conteúdo: ágil, afiada e consciente do seu papel social e estético.
Moeda de Troca é ótimo e vale a leitura. Dito isso, não quero escrever sete mil caracteres de elogios. Isso poderia transmitir a ideia de que o livro é simplório e de que você não precisa prestar atenção. Lucas Mota nos entrega uma sátira aos ricos, ainda que caricatural, e esse é um dos trunfos do romance. Há injeções de humor ácido e uma constante crítica raivosa da quase escravidão em que estamos inseridos. Ele prova que é possível ser inteligente, engajado e eletrizante ao mesmo tempo. Se você chegou até o final deste segundo parágrafo, essas informações devem ser o suficiente para compreender por que vale a pena analisar e criticar Moeda de Troca.
Apesar da prosa cativante, há um problema no uso de termos culturalmente dissonantes com a expressividade construída das personagens. Não é apenas que não usamos a palavra “nobre” desse modo fora da ficção, as personagens e a narração também não a usam com naturalidade. A maioria dos sujeitos centrais de Moeda de Troca possui voz própria. Logo, não esperamos que tenham conversas oficialescas entre si. Quando o termo “nobre” ou as explicações em torno de seus sentidos surgem, a voz das personagens se perde, por instantes ou por várias linhas. Algo similar ocorre com as palavras Ox e Oxiomínio, porém, de modo mais evidente, dada a necessidade de intercalar os dois termos para evitar uma repetição que não seria um risco, se as personagens apenas dissessem “pedra”. O público, após trinta páginas, já saberia do que se trata.
Penso no desafio que é usar linguagem pop sem perder o peso das palavras. O cansativo tom do intelectual que supõe compreender o pobre, comum na literatura dita realista, não é o caso. Fico feliz que Lucas Mota se distancia cada vez mais desse tedioso buraco literário. Mas, é necessário inserir momentos de densidade da prosa. Por que é necessário? Você percebe ao ler um trecho como esse:
A rua estava vazia. Tinha vontade, mau humor, sede de vingança e nenhum pingo de justiça. Asfalto era veia, trânsito era sangue. Canção não tinha. A rua era viva.
Deixou a noite vir e o movimento das ruas acalmar, porque de noite a rua ainda era viva, mas incomodava menos pra quem era da quebrada.
Rato saiu de casa, bicho noturno deixando a toca, alerta aos predadores que podiam fazer hora extra. Sabia que o sossego caseiro estava com os dias contados. Se o haviam encontrado na rua, era só questão de tempo até chegarem à sua casa.
Desceu o morro ligeiro. Sabia aonde ir. A brisa da noite era o pedido de desculpas pela inclemência do sol. (p. 110)

Mão segurando exemplar físico do livro “Moeda de Troca”, de Lucas Mota. A capa mostra a ilustração da silhueta de uma moto com piloto usando uma mochila com caixa de entregador. Linhas azuis saem da moto, dando a impressão de velocidade. Ao fundo, duas faixas de fogo cortam o cenário de formas que indicam prédios em tom de rosa no horizonte. Sobre o asfalto, logo abaixo da moto, o título do livro.
Noutra linha, a escolha da palavra “troca” me agradou muito. Ela possui sentidos para o mundo concreto que a entrelaçam com nossas falas e nos inserem no texto. Por exemplo, há a distância normalizada entre nosso trabalho e nosso ganho em dinheiro, que praticamente impossibilita o acúmulo de valor pelos mais pobres. O pouco que pode ser acumulado não possui livre valor de troca, pois é gerido pelos mecanismos dos ricos, além de estar submetido à constante ameaça de escassez. Não bastasse o constante medo do fim do mês, não há permissão para pausas. Nossas semanas se atropelam em uma agitação desesperada que só pode ser narrada como um videoclipe. Lucas Mota domina a linguagem videoclíptica traduzida para o texto.
A maior parte dos trechos de perseguição e brigas parece obedecer à lógica cinematográfica mais tradicional da montagem de ação. Considero isso um elogio. Tente descrever uma sequência de ação de um filme para alguém que não o assistiu e perceba como é difícil gerar expectativa e encadear todas as informações necessárias sem cansar a pessoa leitora. Ainda assim, há uma dificuldade com o ritmo ao se estender uma sequência de ação por três ou quatro capítulos.
Existe um o tempo próprio do thriller que, às vezes, Lucas Mota acerta, às vezes erra. Esse é o caso do primeiro diálogo de Rato e Ariel, por telefone, após o sequestro. O assunto não bate com o tempo decorrido e a gravidade dos acontecimentos recentes para um casal que está há anos junto. Ali, a intimidade parece desaparecer e a burocracia do texto vence as infinitas possibilidades expressivas surgidas em relações afetivas longas.
Sobre a construção das personagens, entendo que é proposital o jogo com estereótipos, mas, o exagero de seus usos na apresentação de pessoas ricas faz com que os da ficção sejam quase inocentes, infantis, menos violentos e perigosos do que os que observamos no dia a dia. Por outro lado, é tentador ridicularizar ricos e playboys e, provavelmente, essa narrativa não seria tão divertida se o autor não tivesse se dado a liberdade de construir essas caricaturas. Afinal, não abri esse livro a procura de um retrato frio e distanciado da aristocracia paulistana. O prazer de acompanhar o fracasso fruto da estupidez de filhos mimamos de filhos mimados é impagável.
Longe dos bairros nobres e das mansões cafonas, não me agradou a representação de Ariel. Ela é uma mulher quase idealizada. Isso significa que ela também é uma caricatura. Seus poucos defeitos parecem ser o orgulho e o medo, que ela supera no correr da trama. Diferente de Rato, que tem o direito de cometer vários erros, ficar confuso, ser violento, expressar mal suas emoções e, ainda assim, manter nossa empatia, Ariel não parece ter o direito de errar. Idealizar mulheres pode abrir portas para desumanizá-las. Em sua perfeição, a personagem restringe-se aos papéis de servir aos objetivos, à densidade psicológica e às fragilidades de Rato e de sua filha. Suas ações são, talvez, as mais decisivas para desencadear e concluir a trama. No entanto, somo afastados dos conflitos emocionais e éticos envolvidos e tais ações. É difícil construir personagem que vivem, em vez de apenas cumprir um papel.
Ainda sobre Rato: as atitudes do protagonista, a partir de certo ponto, tornam-se improváveis pelo contexto. Por exemplo, logo depois de o amigo morrer e de Rato ter sido perseguido diversas vezes, ele fica em casa, deixa a caixa de Ox sobre a mesa e vai dormir sozinho? Não consigo aceitar essa atitude como coerente. O mesmo ocorre quando penso que o casal ainda dá importância para a separação diante de tudo o que aconteceu nos dias anteriores. Quando sua vida está ameaçada por todas as paredes, certas emoções passam para o segundo, terceiro ou último plano. Elas ainda estão lá, mas podem ser resolvidas bem depois que pararem de apontar uma arma para sua cabeça.
Esse tipo desenvolvimento pede por tempo e espaço textuais. Lucas Mota precisa escrever mais livros. Eu preciso que ele faça isso.
É arriscado afirmar que um autor já se firmou como uma voz original na literatura contemporânea. Muitos nomes se perdem ou deixam de receber a devida atenção. O tipo de ideias discutidas e o modo com Lucas Mota atiça nossa imaginação o colocam sobre o alçapão do sacrifício editorial. A qualquer momento, podem puxar a corda e deixá-lo cair, caso considerem muito arriscado continuar a publicá-lo. Expor a realidade de modo eletrizante é perigoso.
Moeda de Troca prova que a literatura de entretenimento pode, e deve, carregar consigo um olhar agudo sobre as estruturas que perpetuam a violência e a desigualdade, tudo isso sem abrir mão do prazer narrativo. A capacidade do autor de traduzir a linguagem dos videoclipes e a montagem cinematográfica para o texto escrito é não apenas um feito estilístico, mas uma forma potente de dialogar com a sensibilidade de seu tempo.
Por fim, Moeda de Troca se encerra como um testemunho de insubmissão. Apesar de eventuais questionamentos de ritmo ou coerência pontuais, o conjunto é vibrante, inteligente e cativante. Trata-se de um romance narrado com urgência, pois essa é a única alternativa de quem precisa sobreviver por mais um dia de luta.
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