Alana de Oliveira (SEDU-ES)
Rodrigo Hipólito (LabArtes/PPGA-UFES/Bolsista FAPES)
Publicado originalmente em: O olho que toca a morte: as videoinstalações de Maya Watanabe. Brasilidades: raízes culturais e caminhos para o futuro. Organização Jovani Dala … [et al]. 1ª ed. Cariacica, ES: Cantarelo, 2025, p. 115-124. ISBN 978-65-985995-3-9
Resumo: Neste artigo, realizamos a descrição e a análise das videoinstalações Liminal e Bullet, de Maya Watanabe. Através dessas análises, procuramos ressaltar que o conceito de visualidade háptica, trabalhado por Laura Marks e Erly Vieira Jr., abre uma perspectiva rica para compreensão da sensorialidade e dos elementos materiais do audiovisual como caminho para uma relação sensível com a histórica política e a violência. Nesse sentido, concluímos que as instalações de Watanabe não apenas documentam ou refletem, mas criam experiências que mobilizam o espectador a se posicionar sensorialmente frente à história e ao presente.
Palavras-chave: visualidade háptica; Maya Watanabe; videoinstalação.
Abstract: In this article, we describe and analyze the video installations Liminal and Bullet by Maya Watanabe. Through these analyses, we seek to emphasize that the concept of haptic visuality, developed by Laura Marks and Erly Vieira Jr., opens a rich perspective for understanding sensoriality and the material elements of audiovisual media as a path to a sensitive relationship with historical politics and violence. In this sense, we conclude that Watanabe’s installations do not simply document or reflect, but create experiences that mobilize the viewers to position themselves sensorially in relation to history and the present.
Keywords: haptic visuality; Maya Watanabe; video installation.
Introdução
As videoinstalações de Maya Watanabe oferecem uma abordagem singular para temas de memória, violência e trauma histórico, inseridas em um campo artístico que explora a complexidade do desaparecimento forçado e suas consequências éticas e sociais. Em Liminal (2019) e Bullet (2010), a artista peruana utiliza o audiovisual para criar experiências sensoriais que transcendem a representação literal e permitem ao espectador mergulhar em um universo de fragmentação, ausência e presença. Essas obras se destacam por sua capacidade de transformar a visualidade em uma experiência sensória mais extensa, conectando corpo, imagem e memória de maneira visceral.
O conceito de visualidade háptica, central para as análises de Laura Marks (2000) e Erly Vieira Jr. (2020), oferece um arcabouço teórico relevante para compreender a estética de Watanabe. A visualidade háptica prioriza a textura, o toque e a proximidade sensorial em relação ao objeto audiovisual, o que desafia a primazia da visão ótica e da narrativa linear. Em Liminal, a câmera detalha elementos como terra, raízes, ossos e ferramentas forenses, enquanto Bullet desacelera o impacto de um projétil em um crânio humano, o que cria imagens que oscilam entre o abstrato e o figurativo. Ambas as obras ampliam a percepção do espectador e propõem uma interação sensorial que mobiliza memórias e emoções.
A espacialidade das instalações de Watanabe também desempenha um papel crucial na experiência do espectador. A escolha de ambientes imersivos, como a sala ampla e sem assentos de Liminal ou a projeção em alta definição de Bullet, reforçam a conexão física e emocional entre o público e o espaço expositivo. Esses ambientes evocam um deslocamento entre a galeria e os contextos de violência representados, transformando o espaço da arte em um local de memória e testemunho. Essa abordagem fragmenta o realismo documental e oferece uma interpretação sensorial e simbólica das atrocidades históricas.
Por meio da materialidade audiovisual, da exploração tátil das imagens e da interação ativa do público, Watanabe propõe uma reflexão crítica sobre a fragilidade humana e as marcas simbólicas da violência. A seguir, realizamos a descrição mais detalhada dessas videoinstalações, estabelecemos quais elementos podem ser ressaltados como próprios do tátil e voltados para a experiência ativa do espectador e relacionamos tais características com aquelas indicadas pelos autores que discutem a visualidade háptica.
Liminal e a superfície da morte
Maya Watanabe[1], uma artista peruana cuja prática se concentra em questões de memória, violência e trauma histórico, utiliza o audiovisual para explorar as complexidades do desaparecimento forçado e suas implicações éticas e sociais. Em obras como Bullet e Liminal, Watanabe traduz as atrocidades da violência política no Peru em experiências sensoriais profundas, que desafiam o espectador a refletir sobre a relação entre presença e ausência, visibilidade e invisibilidade, memória e esquecimento.
A videoinstalação Liminal (2019), em particular, documenta o processo de exumação de fossas comuns relacionadas ao período de violência no Peru (1980-2000), quando milhares de pessoas desapareceram forçadamente devido ao conflito entre guerrilhas, milícias locais e o Estado[2]. Esse período resultou em milhares de desaparecimentos e a existência de inúmeras fossas comuns que ainda aguardam exumação. A obra, fruto de uma pesquisa extensiva e do acompanhamento direto de processos de exumação, traduz o trauma coletivo e a complexidade desse contexto histórico em uma linguagem audiovisual de forte impacto sensorial e emocional.
Liminal é uma obra profundamente reflexiva e visualmente imersiva. Sua ambientação e sua configuração expositiva apresentam uma sala ampla, desprovida de assentos tradicionais. Essa escolha pela sala vazia traz um certo desconforto ao espectador, o que o obriga escolher se irá permanecer em pé, sentar-se ou deitar-se diretamente no chão. Esse detalhe arquitetônico é crucial, pois conecta fisicamente o espectador ao espaço da instalação, enquanto ecoa a temática da terra como local de memória e testemunho. O vídeo é exibido em uma única parede, preenchendo o ambiente com sua presença visual e auditiva, enquanto o chão funciona como uma extensão simbólica do espaço escavado no vídeo, intensificando a relação entre o espectador, a obra e a temática abordada.
A obra é composta por uma série de planos detalhados que documentam o processo de exumação em duas fossas comuns relacionadas a massacres históricos. A câmera explora elementos como a terra, raízes, insetos, restos humanos (incluindo dentes e cabelos) e ferramentas forenses, como fitas métricas e pincéis. Os planos frequentemente alternam entre focos nítidos e desfoques, criando uma sensação de oscilação entre o visível e o invisível. Esse jogo de nitidez desafia o espectador a reconsiderar a forma como observa e interpreta os vestígios da violência, sugerindo que o que está fora de foco ou parcialmente oculto pode ser tão revelador quanto aquilo que é claramente visível.

Figura 1. Liminal, La casa encendida, Maya Watanabe, 2019. Videoinstalação, Madri. Foto de Roberto Ruiz. Fonte: https://mayawatanabe.com/LIMINAL-2. Acesso em: 02 dez. 2024. Sala escura, com projeções que cobrem duas paredes e silhueta de suas pessoas à esquerda, sentadas de frente para a tala maior, à ao fundo da imagem, que mostra com muitos detalhes uma mosca pousada sobre restos de um cadáver descoberto. Pela aproximação da imagem, não é possível identificar nenhuma parte de corpo ou adivinhar exatamente sobre o que a mosca está pousada.
A ausência de imagens gerais ou panorâmicas impede uma compreensão completa do contexto, isolando os detalhes e criando uma experiência fragmentada e introspectiva. Essa fragmentação reflete a natureza incompleta e incerta do próprio processo de exumação e identificação de desaparecidos, onde corpos frequentemente são encontrados sem identificação e nomes permanecem sem correspondência a restos mortais. Esse tensionamento entre corpo sem nome e nome sem corpo é um dos binômios centrais explorados na instalação.
A paisagem sonora de Liminal é composta por ruídos naturais e ambientais, como o som de escavações, passos na terra e movimentos delicados de instrumentos forenses. Essa trilha sonora submersiva reforça a conexão sensorial do espectador com o espaço expositivo e com o próprio processo de exumação, intensificando o efeito de visualidade háptica. O som, combinado com os visuais texturais, cria uma experiência quase táctil, em que o espectador não apenas observa, mas “sente” o peso e a materialidade da terra e dos objetos apresentados.
Háptico é aquilo que se refere ao tato, ao tátil. Quando nos referimos a uma visualidade háptica, estabelecemos um contraponto com a visualidade óptica, que depende da distância entre o sujeito e o objeto visto. Já na visualidade háptica, o sujeito se aproxima do objeto visto, percorrendo sua superfície. Na visualidade háptica, a visão do todo dá lugar a visão da parte, o que ressalta em texturas e evoca o toque. “Trata-se de uma espécie de insubordinação da mão (e da pele) ao olho, num espaço que tradicionalmente se constitui como opticamente organizado (a tela cinematográfica, ou qualquer outra superfície de projeção/exibição audiovisual).” (Vieira, 2020, p. 37).
Essa concepção de visualidade háptica surge com peso no livro The Skin of the Film: Intercultural Cinema, Embodiment, and the Senses, de Laura U. Marks (2000). Ela propõe uma abordagem para o estudo do cinema intercultural que enfatiza a relação entre imagem, corpo e memória sensorial. Nesse sentido, a autora explora como filmes e vídeos utilizam experiências sensoriais para transmitir memórias e histórias que, muitas vezes, não poderiam ser adequadamente articuladas por meio da linguagem verbal ou escrita.
No conceito de “haptic visuality“, as imagens não apenas são vistas, mas sentidas. Essa experiência sensorial aproxima a audiência de uma conexão física e emocional com o filme, o que indicaria que a visualidade háptica tem o potencial de evocar lembranças corporais e culturais. Logo, diferencia-se a visualidade háptica da ótica, que privilegia a distância e a análise; de modo que a háptica dissolve a separação entre o espectador e a imagem. De modo amplo, Marks examina o cinema intercultural como um espaço de tradução cultural, em que narrativas históricas e memórias coletivas podem ser expressas por meio de imagens sensoriais. A materialidade do cinema (textura, cor, som, tela, luz), nesse sentido, seria usada para transmitir histórias de migração, deslocamento e identidade. Esses filmes, muitas vezes, resistem à narrativa linear e enfatizam fragmentos e camadas que refletem as experiências de violência, diferença e diáspora.
Tais características, ressaltadas por Laura Marks e por Erly Vieira como próprias da hapticidade audiovisual, estão presentes tanto em Liminal quanto em Bullet. No caso da primeira, a instalação explora três binômios de opostos: (1) presença-ausência, refletida na representação dos desaparecidos como uma ausência que persiste através da memória dos familiares; (2) corpo sem nome-nome sem corpo, que questiona a separação entre identidade e materialidade física no contexto da violência; e (3) espaço de exposição-espaço de exumação, em que a instalação reproduz simbolicamente o local da escavação, transformando o espaço da galeria em um local de memória e testemunho (cf. Perez, 2024).
Com essa construção, Watanabe subverte o que seria um documentário convencional sobre violência ao evitar imagens explícitas de atrocidades, optando por uma estética que alude ao trauma e à perda de maneira mais sensorial e reflexiva. Em vez de narrar diretamente as histórias dos desaparecidos, Liminal se concentra nos vestígios materiais e no próprio processo de busca, o que cria um espaço para que o espectador reflita sobre a violência como um fenômeno estrutural e simbólico. Em um mundo de imagens de violência explícita, tão amplamente divulgada cotidianamente, ao deixar a cargo da imaginação do espectador o preenchimento dessas lacunas, Watanabe traz um outro modo de se relacionar com esses acontecimentos de violência extrema.
A ausência de uma narrativa tradicional e a ênfase nos detalhes sensoriais e materiais transformam o espectador em um participante ativo, convidando-o a contemplar a experiência de ausência e perda. A obra não oferece respostas, mas cria um espaço para perguntas, memórias e conexões emocionais, destacando a humanidade compartilhada que transcende fronteiras culturais e temporais. Liminal atua como um espaço liminar, um lugar entre o visível e o invisível, entre o presente e o ausente, entre o trauma e a memória; o que ressoa com a ideia de que a arte pode ser um poderoso veículo para testemunhar e resistir às injustiças históricas.
Sob a perspectiva da visualidade háptica, Liminal convida o espectador a “sentir” a paisagem exumada, conectando-se fisicamente ao espaço expositivo ao permanecer em pé, sentado ou deitado no chão da instalação, o que ecoa o solo explorado no vídeo. Essa proximidade tátil amplifica a experiência sensorial, enquanto a falta de imagens gerais, substituídas por fragmentos texturais e detalhes isolados, estimula uma relação íntima e perturbadora com o material exibido. Aqui, a percepção se torna tátil e emocional, em vez de puramente visual, intensificando o impacto do trabalho.
Marks fala que o toque é um sentido que se relaciona com a superfície do corpo, é a sensação de algo que toca na pele, porém, pensar o cinema háptico vai além, pois é entender como essas imagens afetam o corpo como um todo, e não apenas na sua superfície.
(…) um filme ou vídeo (ou pintura ou fotografia) pode oferecer imagens hápticas, enquanto o termo visualidade háptica enfatiza a inclinação do espectador em percebê-las. As obras que proponho chamar de hápticas convidam a um olhar que se move no plano da superfície da tela por algum tempo, antes que o espectador perceba o que está vendo. Tais imagens só se transformam em figuração gradualmente, se é que o fazem. Por outro lado, uma obra háptica pode criar uma imagem de tal detalhe, às vezes por meio do miniaturismo, que evita uma visão distante, em vez disso, puxando o espectador para perto. (Marks, 2000, pp. 162-163. Tradução nossa)[3]
Tanto Liminal quanto Bullet exemplificam o compromisso de Watanabe em usar a arte para questionar narrativas históricas e sociais, enquanto propõem novas maneiras de engajar o público com o passado traumático. Sua abordagem, fundamentada em estratégias de fragmentação visual e sensorial, transforma o espectador em um participante ativo, promovendo uma experiência háptica que desafia os limites da compreensão e da empatia frente à violência e à memória.
Bullet e a visualidade háptica
Em Bullet (2010), é possível aprofundar a relação com o conceito de visualidade háptica. Essa instalação explora o resultado do impacto de um projétil em um crânio humano, filmado em detalhes que oscilam entre o abstrato e o figurativo. Isso revela não apenas a violência física, mas as marcas temporais e políticas da destruição. A câmera penetra o orifício deixado pela bala e conduz o espectador por uma “paisagem interna” composta de ravinas ósseas, sombras e texturas que evocam tanto a materialidade quanto a fragilidade da condição humana.
A obra se concentra nos rastros do instante fragmentado e estendido do impacto, desacelerando o tempo e ampliando os detalhes do evento. Dessa forma, Watanabe revela a brutalidade da ação, as marcas simbólicas, históricas e materiais deixadas pela destruição.
A instalação é concretizada em uma sala escura, onde o espectador é envolvido por uma projeção em alta definição que ocupa uma parede principal. O espaço expositivo amplifica a relação do espectador com a obra e cria um ambiente de imersão visual e sensorial. A ausência de elementos visuais ou sonoros disruptivos no entorno concentra a atenção no crânio e na interação entre o projétil e sua superfície, o que enfatiza tanto o impacto visual quanto o simbólico.
O vídeo documenta em câmera superlenta as texturas e superfícies feridas pelo instante do impacto, quando a bala colide com o crânio humano. A desaceleração extrema permite observar a transformação da matéria em níveis invisíveis à percepção cotidiana: o osso fragmenta-se em partículas quase microscópicas. Essa estetização da superfície transforma a violência em uma forma quase coreografada, em que o caos do impacto é reorganizado em uma narrativa de texturas, formas e movimento.
O foco visual da obra está na textura dos materiais: a rigidez frágil do osso, a fragmentação pulverizada. Planos extremamente fechados isolam os detalhes, retirando o evento de seu contexto para transformá-lo em um estudo visual abstrato. Esse distanciamento do realismo direto subverte a percepção do espectador, que é convidado a observar a violência não apenas como destruição, mas como um processo de transformação material e simbólica.
Em “Realismo sensório no cinema contemporâneo” (2020), Erly Vieira Jr. fala sobre como não é possível, em alguns casos, se relacionar com determinadas imagens através da racionalidade:
Trata-se de um cinema no qual a dimensão racional já não é mais a porta principal para se lidar com a experiência que se propõe ao espectador. Aqui, cabe ao sensorial um papel decisivo nesse processo, antecedendo muitas vezes ao pensamento, Realismo sensório no cinema contemporâneo na tentativa de se apreender aquilo que críticos como Luiz Carlos de Oliveira Júnior (2006) definem como uma “presença invisível, fantasmática” a rondar a imagem. (Vieira Jr., 2020, pp. 24-25)
Assim como em Liminal, Bullet não se limita a ser uma representação literal da violência, mas propõe uma investigação filosófica sobre a materialidade e a fragilidade do corpo humano, bem como sobre os limites entre vida e morte, presença e ausência. Ao capturar o momento de transformação do crânio, de uma entidade sólida e estável a fragmentos dispersos, a obra sugere a vulnerabilidade inerente à condição humana.

Figura 2. Bullet, Maya Watanabe, 2021, Videoinstalação. MOT, Museu de Arte Contemporânea de Tóquio Fonte: https://mayawatanabe.com/BULLET. Acesso em: 02 dez. 2024. Sala escura com ampla projeção em parede ao fundo, com silhueta de pessoa à direita, observando a projeção de perto, que mostra em detalhe fragmentos de osso com extrema aproximação.
Sob a perspectiva da visualidade háptica, como anteriormente comentado, Bullet transforma a observação em uma experiência sensória. A proximidade dos planos, combinada com a desaceleração extrema, cria uma sensação de intimidade com os materiais apresentados. O espectador é levado a “tocar”, “roçar” visualmente os fragmentos do crânio, e a se conectar emocionalmente com o processo de destruição e fragmentação.
Além disso, a obra estabelece uma crítica implícita à banalização da violência nas sociedades contemporâneas. Ao desacelerar o tempo e estetizar o impacto, Bullet força o espectador a confrontar a complexidade e a gravidade do ato violento, que muitas vezes é consumido rapidamente na mídia como um espetáculo efêmero.
A fragmentação visual e a desaceleração promovem uma relação contemplativa e sensorial com a obra. O espectador é desafiado a abandonar a postura passiva e a se engajar ativamente com os detalhes da destruição. O ritmo dilatado do impacto, durante os 10 minutos de duração do vídeo, permite uma reflexão profunda sobre a natureza da violência, destacando sua brutalidade, mas também sua capacidade de reconfigurar a matéria e a percepção.
Com Bullet, Maya Watanabe transforma o que poderia ser um momento fugaz de violência em um espaço para a meditação estética e ética. A obra transcende a mera representação visual para oferecer uma experiência sensorial complexa, em que os limites entre o visível e o tátil, entre o físico e o simbólico, são continuamente explorados e questionados.
O conceito de visualidade háptica refere-se a uma interação sensorial em que a visão é complementada pela evocação do tátil. Em Bullet, essa interação é intensificada pelo movimento lento da câmera e pelo foco em detalhes texturais que remetem ao toque e à presença corporal. Não interessa, aqui, perceber a imagem como um todo, mas sim as suas partes, seus pedaços. A videoinstalação transforma a materialidade do osso em um espaço sensorialmente ativo e convida o espectador a “sentir” a paisagem interna do crânio e a perceber o impacto físico e emocional da violência que o gerou. Nas palavras da artista: “A paisagem rochosa em seu interior, com ravinas profundas, crateras com bordas irregulares e recifes ósseos. Aqui e ali vemos uma teia pendurada, habitada por uma aranha.” (Watanabe apud Bal, 2022, p. 231. Tradução nossa)[4]
A superfície, transformada em paisagem, abre um amplo leque de possibilidades sensoriais e reações sensíveis do público. Além de compreendermos que é possível e, por vezes, inevitável, essa aproximação háptica com certos tipos de imagens, não devemos nos esquecer das experiências individuais. Viviam Sobchack, em Carnal Thoughts, nos lembra de que não há espectador universal. Cada sujeito carrega em si disparadores de emoções que se ativam diante de certas imagens, de certas representações. Assim, quando falamos em reações sensíveis diante da imagem, não nos remetemos apenas aos aspectos emocionais condizentes com o despertar de memórias, mas com outro plano de reações que essa ativação realiza.
Mais uma vez, quero enfatizar que não estou falando metaforicamente de tocar e ser tocado no e pelo cinema, mas “em certo sentido”, literalmente, da nossa capacidade de sentir o mundo que vemos e ouvimos na tela e da capacidade do cinema de nos “tocar” e nos “mover” para fora da tela. (Sobchack, 2004, p. 66, tradução nossa)
Nessa lógica, conta tanto a materialidade do audiovisual, a respeito do que falamos sobre a espacialidade da instalação, o tamanho da tela e a presença física do público em um espaço amplo, quanto o tempo dessa presença. Bullet incorpora uma temporalidade expandida, característica central da visualidade háptica. Constrói-se o ambiente meditativo para um espectador imerso no ritmo interno das imagens. Essa abordagem não só permite uma exploração mais profunda da materialidade do crânio, mas ressignifica a violência como um evento que transcende o momento do impacto, prolongando suas reverberações no tempo e no corpo coletivo da sociedade.
Portanto, Bullet dialoga diretamente com conceito de visualidade háptica ao transformar o ato de ver em uma experiência multissensorial, na qual a proximidade tátil e a imersão temporal se combinam para intensificar a percepção da violência e suas implicações éticas e políticas. A obra de Watanabe desafia o espectador a não apenas “olhar” para a destruição, mas a senti-la de maneira visceral, subvertendo a passividade tradicional da experiência visual e transformando-a em um ato de engajamento e reflexão.
Considerações Finais
As videoinstalações de Maya Watanabe, ao abordarem a memória e a violência, expandem os limites da linguagem visual convencional, operando em uma zona de tensão entre o sensorial e o simbólico. Sua estética não busca apenas representar os traumas do passado, mas inscrevê-los em uma experiência que ativa a sensibilidade e a reflexão do espectador.
O diálogo entre materialidade e memória é central nas obras de Watanabe, não apenas pela escolha dos elementos visuais, mas pela relação que estes estabelecem com o espaço físico e o espectador. A ausência de uma narrativa linear, somada à atenção ao detalhe e à ambiguidade visual, rompe com as expectativas do público, forçando-o a confrontar as lacunas deixadas pela violência e a ausência.
Além disso, Watanabe cria um campo em que a experiência individual do espectador é inseparável do contexto coletivo que suas obras evocam. A fragmentação formal e o uso de camadas simbólicas transformam suas instalações em espaços de resistência, em que o passado não é apenas lembrado, mas ressignificado.
Portanto, Liminal e Bullet não apenas documentam ou refletem, mas criam experiências que mobilizam o espectador a se posicionar sensorialmente frente à história e ao presente. Por meio da interação entre memória, espaço e imagem, suas obras evidenciam a importância da hapticidade da imagem como uma forma de conhecimento sensorial e crítico, reiterando o papel transformador do audiovisual na construção de uma consciência ética e histórica.
Referências
BAL, Mieke. Hetero-chronical Experiments Between Life and Death: Vanitas Revolts Against Time Management. In: FLEMMING, Victoria von; BERGER, Julia Catherine. Vanitas als Wiederholung. Berlin/Boston: De Gruyter, pp. 207-236, 2022. DOI: https://doi.org/10.1515/9783110761047-010. Disponível em: https://www.degruyter.com/document/doi/10.1515/9783110761047-010/html. Acesso em: 02 dez. 2024.
COMISIÓN de la Verdad y Reconciliación del Perú. Informe final. Perú: CVR, 2003. Disponível em: https://www.cverdad.org.pe/ifinal/. Acesso em: 08 jan. 2024.
MARKS, Laura. The skin of the film: intercultural cinema, embodiment, and the senses. London: Duke University Press, 2000.
PÉREZ, José Alejandro López. The documenting by opposites of forced disappearance and the Peruvian video installation Liminal (2019) by Maya Watanabe. Avanca: Conferência Internacional de Cinema – Arte, Tecnologia, Comunicação, 2024. Disponível em: http://publication.avanca.org/index.php/avancacinema/article/view/562. Acesso em: 02 dez. 2024.
SOBCHACK, Vivian. What my fingers knew. In: Carnal Thoughts: Embodiment and Moving Image Culture. Berkeley: University of California Press, 2004.
VIEIRA JR., Erly. Realismo sensório no cinema contemporâneo. Vitória, ES: EDUFES, 2020. Disponível em: https://edufes.ufes.br/items/show/541. Acesso em: 08 jan. 2024.
WILLAKUY, Hatun. Versión Abreviada Del Informe Final De La Comisión De La Verdad Y Reconciliación, Lima, Perú: Corporacion Grafica, 2004. Disponível em: https://idehpucp.pucp.edu.pe/. Acesso em: 08 jan. 2024.
[1] Uma breve apresentação dos trabalhos da artista pode ser encontrada em: https://mayawatanabe.com/
[2] A história de violência e governos autoritários no Peru possui especificidades que dificultam sua comparação simplificada com processos de outros países latino-americanos. Após duas ditaduras com políticas econômicas e sociais distintas (1968-1975, sob o general Juan Velasco Alvarado, e 1975-1980, sob o Francisco Morales Bermúdez). Em 1980, com o retorno do presidente deposto na década de 1960, Fernando Belaúnde Terry, iniciam-se conflitos armados entre o exército e organizações como Sendero Luminoso, o Movimento Revolucionário Tupac Amaru. Tais conflitos arrastaram-se até os anos 2000, incluem a ditadura de Alberto Fujimori e não cessaram por completo até os dias de hoje. A Comisión de la Verdad y Reconciliación del Perú (2003) estima que cerca 70 mil pessoas tenham sido assassinadas nesses vinte anos de conflito armado. Essa violência, no entanto, atingiu de modo mais intenso alguns povoamentos, regiões e cortes socioeconômicos (Willakuy, 2004, pp. 17-18).
[3] (…) a film or video (or painting or photograph) may offer haptic images, while the term haptic visuality emphasizes the viewer’s inclination to perceive them. The works I propose to call haptic invite a look that moves on the surface plane of the screen for some time before the viewer realizes what she or he is beholding. Such images resolve into figuration only gradually, if at all. Conversely, a haptic work may create an image of such detail, sometimes through miniaturism, that it evades a distances view, instead pulling the viewer in close.
[4] The rock-like landscape within, of deep ravines, jagged-edged craters, and bony reefs. Here and there we see a web hanging, inhabited by a spider.
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