Texto de Rodrigo Hipólito
Encontrei um documento com um comentário que deixei em um portal de cultura que nem existe mais. Lá se vão o que, quinze anos? Até desconfio de qual era a postagem original, mas salvei apenas o comentário. Vou supor que o eu do passado queria que essa ideia fosse desenvolvida o suficiente para se transformar, no mínimo, em um texto de duas páginas.
O comentário: A cadeira é um dos objetos/ideias mais recorrentes na história da arte. E talvez, por isso, Kosuth tenha escolhido a cadeira em detrimento a todos os demais objetos utilitários que poderia empregar para expressar o conceito direto. Pode muito bem ser um vício de continuidade no raciocínio e, nesse caso, veremos cadeiras em exposições de arte para todo o sempre e sempre.
É verdade que o objeto aparece quase como uma chave mestra, que funciona muito bem quando se sabe qual porta abrir. A intenção de uso da cadeira aparece de maneira tão imediata, que mesmo o menor desvio de sua função grita.
Cadeiras deixaram de ser verdadeiras cadeiras das mais variadas formas: “A cadeira de Gaugin”, de Van Gogh; o banquinho que segurava o “Bicycle wheel”, Duchamp, transformado em pedestal; a cadeira extravasada da pintura, em “Pilgrim”, de Robert Rauschenberg; a cadeira que passa do desgosto pessoal para a liberdade do objeto despropositado, em “Fat chair”, de Joseph Beuys; na aglomeração de “Installation”, de Doris Salcedo; a cadeira solitária na absurdez da contemplação, em “His chair”, de Chiharu Shiota; na passagem do conforto ao transtorno, em “The black hole”, de Michel de Broin; o objeto passivo da mente voadora, em “Shit in your hat – head on a chair”, de Bruce Nauman; na convidativa e desconcertante instalação de Michelangelo Pistoletto, “The love difference table”; e, ainda que não me lembre do autor nem do título, naquela sombra pintada no chão do Cemuni II, que valeu uma exposição, um ou dois anos atrás.
Pensando bem, insistimos em chamar esses componentes materiais das obras como o que poderiam ser, caso não fossem obras de arte. Com exceção de algumas instalações e objetos interativos, dificilmente conseguimos encontrar características próprias de cadeiras nessas coisas. O caso escolhido de Júlio Tigre é bastante curioso, pois a cadeira acaba por permanecer e, talvez, seja imprescindível que continue como cadeira. A “cadeira” de Nalesso é quase uma cerca eletrificada. “Aqui ninguém toca, essa memória não é mais usual”.
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O objeto cadeira é um elemento comum no quotidiano da maioria das culturas e isso talvez seja o que mais facilita o seu uso como um recurso expressivo e simbólico na arte contemporânea. Não vou retornar aos exemplos que elenquei na comentário acima. Devo voltar apenas a alguns deles e apontar outros. É provável que esse texto comece a parecer redundante depois de alguns parágrafos desse exercício.
O exemplo mais repetido de obra de arte que faz uso de cadeiras é a instalação “Uma e Três Cadeiras” (1965), de Joseph Kosuth, que consiste em uma cadeira real, uma fotografia da mesma cadeira e uma definição de dicionário da palavra “cadeira”. Essa é uma das primeiras imagens que surgem quando pensamos em arte conceitual. Kosuth considerava que, após Duchamp, artistas deveriam medir sua qualidade pela capacidade de se voltar para a reflexão sobre a própria arte. Ou seja, sua concepção de arte era tautológica, e ele defendeu com profundidade esse ponto (KOSUTH, 2006). Embora Kosuth não detenha qualquer espécie de monopólio sobre a arte conceitual, é inegável a influência que essa obra e seus escritos tiveram no modo como passamos a compreender, dentro do mundo da arte, o valor das ideias e representações imagéticas e materiais.

Armchair (Portrait of my Mother’s Chesterfield Chair), 1964, de Gunnar Aagaard Andersen. Fotografia de em fundo branco de uma cadeira ou sofá coberto de camadas de resina que lembram couro amarelado e escurecido. As camadas parecem escorrer pelos braços e pelo assento, como se tivessem derretido sobre o sofá. Várias partes estão pretas, como se tivessem sido queimadas ou usadas durante muitos anos.
Na maior parte dos casos, vamos encontrar o objeto cadeira usado para subverter sua função, causar desconforto e, a partir dessa reação, apresentar ideias. Em “Armchair (Portrait of my Mother’s Chesterfield Chair)”, 1964, de Gunnar Aagaard Andersen, uma cadeira é formada por uma massa de resina ou couro que escorre até formar um aglomerado com aparência suja e pouco convidativa. Depois do desconforto, podemos começar a considerar elementos como sensualidade e simbolismo.

Little Electric Chair, 1964, de Andy Warhol. Serigrafia baseada em uma fotografia preto e branco de uma cadeira elétrica no meio de uma sala de teto baixo. O chão, a cadeira e demais partes iluminadas aparecem em azul claro e as sombras em preto.
Já Andy Warhol em “Little Electric Chair” (1964), apresenta uma série de serigrafias que retratam uma cadeira elétrica vazia. Ou seja, de início, não temos o objeto desprovido de sua função. Essa função, tampouco, seria a de uma cadeira corriqueira. Há a referência às execuções realizadas pela justiça dos EUA, junto da expressão de nossa capacidade de consumir esse tipo de imagem aterradora de modo cada vez mais popular, em um processo de estetização que não encontra fronteiras no absurdo. Mas, além disso, devemos considerar que não se trata da apresentação de uma cadeira elétrica, mas de serigrafias que realizam sua representação.
Se ampliamos os tipos de cadeiras que poderia ser usados em obras de arte para além dessas que estão junto das mesas de nossas casas, podemos perceber que seu jogo simbólico é amplo. Cadeiras são símbolos de poder, de conforto, de comunicação, de identidade, de memória, de amizade, de sociabilidade, de liberdade, de criatividade e por aí vai. Ao serem modificadas, deslocadas, combinadas ou desconstruídas, as cadeiras passam a gerar novos sentidos e experiências estéticas.
Nesse sentido, assim como quaisquer outros objetos utilizados em obras de arte, a cadeira, nesse contexto, pode ser usada como um elemento de contraste, de ironia, de humor, de crítica ou de poesia. Essa é o tipo de afirmação simples de ser compreendida quando pensamos dentro do contexto pós-arte contemporânea. Supostamente, não há limites para o que se possa utilizar para se apresentar uma ideia. Mas, ainda que as categorias tenham sido chutadas para escanteio e as restrições de materiais sejam mais ligadas às restrições financeiras do que qualquer outro tipo de imposição. As cadeiras continuam a marcar seu lugar de preferidas.

Marble Chair, 2008, de Ai Weiwei. Fotografia de cadeira feita de mármore branco. O assento é reto e quadrado, as pernas são curtas, com ligações horizontais bem próximas ao chão. O espaldar é alongado, com duas partes finais nas laterais e uma mais larga ao centro, para o encosto das costas, terminado com uma linha horizontal que se sobra para cima nas pontas laterais.
Ai Weiwei “Marble Chair”, de 2008, é uma cadeira esculpida em uma só peça de mármore branco. A aparência é de uma tradicional cadeira chinesa. Mas, o material escolhido tanto se opõe ao conforto e praticidade quanto expõe conflitos, diferenças e o inevitável convívio entre as tradições europeias e chinesas.

Chair Pool, 2005, de Doris Salcedo. Fotografia de um beco entre dois prédios, coberto de cadeiras de madeira de variados tipos, até a altura do segundo andar. O amontoado de cadeiras se sustenta sem invadir a área da calçada, pela qual caminha um rapaz.
“Chair Pool” (2005), de Doris Salcedo, é uma instalação composta por 1.550 cadeiras empilhadas em um espaço vazio entre dois edifícios em Istambul. Além de causar estranhamento no espaço público, essa instalação evoca a memória coletiva das vítimas de violência e desaparecimento forçado na Turquia.

Remains, 2017, de Mona Hatoum. Fotografia de cadeira simples, com as pernas e parte do assento feitas de carvão, envolvidas por uma malha de metal fino, que continua a formar o resto do assento e do espaldar.
Em “Remains”, de 2017, Mona Hatoum constrói uma frágil cadeira com malha de aço usada para construção civil, que envolve pedaços de carvão. O contraste não está apenas entre os elementos, mas entre a suposta segurança das estruturas que construímos a nossa volta e as expectativas humanas sobre conforto e continuidade.

Scramble for Africa, 2003, de Yinka Shonibare. Fotografia de uma mesa de jantar de madeira, rodeada por catorze cadeiras de madeira, sobre as quais há catorze manequins sem cabeça, vestidos com mantas de estampas coloridas e variadas, sem cabeça e voltados para o centro da mesa, como se discutissem. Alguns apontam as mãos e outros viram-se para os manequins do lado.
“Scramble for Africa” (2003), de Yinka Shonibare, é uma instalação com 14 manequins sentados a mesa em cadeiras de madeira escura. A obra faz referência a uma conferência do final do século XIX, em Berlim, na qual as nações europeias dividiram o continente africano. Os manequins sem cabeça, cobertos por mantas com estampas que remetem à estéticas africanas, questiona as noções de identidade, colonialismo, gênero e classe social, misturando elementos culturais diversos.

Chair Times, 2018, dirigido por Heinz Bütler. Captura de tela do documentário que mostra dezenas de cadeiras de variadas épocas e estilos dispostas em fila em um grande salão e um homem branco de terno caminhando entre elas.
Como eu não pretendo continuar a citar cadeiras e mais cadeiras, termino os exemplos com a recomendação do documentário “Chair Times” (2018), de Heinz Bütler, que apresenta 125 cadeiras, desde 1807 até os dias atuais. O filme de uma hora e meia mostra a evolução do design, da tecnologia e da sociedade, em um testemunho cultural da importância da cadeira como objeto de arte e de do quotidiano.
Referências
CHAIR Times: A History of Seating. From 1800 to Today. Direção de Heinz Bütler. Alemanha: HOOK Film & Kultur Produktion GmbH; Vitra Design Museum, 2018.
KOSUTH, Joseph. “A arte depois da filosofia”. Trad. Pedro Süssekind. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecilia (org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, 210-234.
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