[crônica] O sol sobre o corpo de minha vó

Texto de Fabiana Pedroni

“Quando o cubo chegou em casa, eu sabia que, dali pra frente, tudo escorreria para o lado errado.”

Esse foi o começo de um conto não escrito. Não sei bem o que essa imagem significava, mas, desde que escrevi, as palavras escorreram para o lado errado. Depois desse começo de texto de meses atrás, só sei que eu não escrevi mais. Eu produzi, sim, uma tese de doutorado. Mas, escrever, sem prazo, sem obrigação profissional, não. Primeiro, veio a estafa mental, após a escrita da tese. Depois, cresceu a sobrecarga emocional dentro de um corpo já espatifado.

Era de se esperar que a imagem romântica do escritor que encontra inspiração no sofrimento fosse mais uma grande bobagem. A dor pode ser um ponto de partida poético, uma observação do mundo, mas, não se escreve enquanto se sente dor. Algumas pessoas até conseguem fazer isso bêbadas, anestesiadas, entupidas de alucinação ou todas as opções. Eu não funciono desse jeito.

Sujeito sentado com dor na lombar não escreve nem um “ai” de interjeição na folha, imagine escrever enquanto a fisgada é na alma.

E eu tentei.

Em um dia de saudades de minha avó, falecida há pouco mais de um mês, peguei a caneta. Suspirei. Forcei uma desapertada no coração pra ver se pingava uma palavra. Nada. Quando o aperto é muito forte, o sangue não circula e as ideias ainda menos. A ponta da caneta sequer encostou no papel.

Semanas depois, liguei o computador para acrescentar uma nova linha à dedicatória do livro.

“Dedico esta escrita aos pequenos encantos cotidianos

E ao calor das mãos de minha avó Nita”

Paisagem de interior. Fabiana Pedroni. Ilustração.

Paisagem de interior. Fabiana Pedroni, 2023. Ilustração de interior de cozinha com fogão à lenha ao centro, mulher de vestido e cabelos longos de pé, com o pé direito apoiado no joelho da perna esquerda, de frente para o fogão e de costas para quem observa, com janela verde aberta sobre pia à esquerda, madeiras de teto baixo acima, prateleira com potes coloridos à direita e chão avermelhado.

Meus pés sempre foram muito gelados. As mãos de minha avó eram quentinhas.

— Por que a mão dela está tão gelada? — perguntou uma criança diante de minha avó, gelada dentro do caixão. Eu ri. Tenho certeza de que ela também.

Sempre existiu uma tal briga de temperaturas lá em casa. Eu me encolhia para dormir e ela me soterrava de cobertores. Minha avó dizia que gente dorme esticada, não deve dormir que nem bicho enrolado. Eu me sacudia, tirava a pilha pesada de panos e lá vinha a vó Nita de novo, ficar nos meus pés, rezando um terço pela minha alma de bicho acuado.

Tantas vezes eu fingi dormir, só pra não espantar aquele cuidado. E da despedida é que mais sinto falta.

— Dorme com Deus, Binha, aqui ninguém passa frio.

Ela devia sentir muito frio, mas eu nunca perguntei. É estranho pensar que apenas ela me chamava de Binha. Meu avô também chamava, quando eu era criança, mas, aos poucos, começou a me chamar pelo nome. Dá um engasgo na garganta ouvir a reprodução de sua voz na cabeça, dizendo um nome que é tão especial e doloroso.

As palavras começam a escorrer para o lado errado.

Com muito esforço, elas grudam no papel. Socadas por uma vontade de não perder o sentimento. Não a dor, essa quero bem longe, mas o sentir das coisas. Ela morreu, talvez, sem sentir muito. Alzheimer é um trem miserável. Rouba as memórias, os afetos e, não satisfeito, rouba todo o corpo. Anos e mais anos em casa, em uma dura rotina que bambeia entre viver e sobreviver.

O que fazer depois?

Primeiro, meu avô quis um funeral de tradição. Seus falecidos filhos, tios que eu não convivi por morrerem bem jovens, foram velados naquela mesma casa, em que ele ainda mora. E era lá que minha avó também receberia, pela última vez, as pessoas. Seria sua última prosa.

O velório começou às 6:30. Ajeitei um pequeno altar, umas velas, que nunca tive a oportunidade de queimar, e umas fotos antigas. A mais velha delas: uma foto de minha avó aos 14 anos. Uma raridade. Não sei onde ela arrumou dinheiro pra isso, mas a foto agradou. Tampei a entrada do quarto de bagunças com uma colcha. Penduramos o tecido vinho de minha avó, um que nunca virou saia nem roupa nenhuma, pois eu enrolei a sua máquina de costura com linha azul pra fazer uma obra de arte. Esse tecido ficou na cabeceira do caixão, a pedido de meu avô, pra tampar o Boi que ele mesmo pintou. Minha mãe e eu adoramos o Boi, meu avô o odeia, não sei por quê. Cristo não tinha um boi do lado quando nasceu? Por que minha avó num poderia ter um no seu momento de partida? Eu queria perguntar, mas, naquele dia, só obedeci. Ela tinha sido minha avó durante 37 anos, mas, era a sua esposa por muito mais anos.

A gente sabe que se tornou adulta quando se torna a portadora da notícia de morte. Eu que precisei dizer a meu avô, por três vezes, que minha avó morreu.

E as palavras voltam a escorrer do papel.

Pois bem, o velório foi tradicional. Começou às 6:30 e terminou às 16:00. Não foi um velório qualquer. A porta de casa aberta, vizinhos chegando, senhorinhas sumidas há décadas mostravam que, às vezes, a gente se afasta, mas reconheceram a importância de minha avó pra comunidade. Dez horas para receber pessoas, conversar sobre o passado, ouvir causos. Descobri situações absurdas, relembrei da mulher caridosa que cuidava dos presos na penitenciária, e a sua brabeza e tapas de mãos pesadas. Eram mãos quentes e duras. Foram dez horas com tempo para cozinhar um almoço pra família e tampar o sol que começou a invadir o velório. Eu cheia de pregadores de roupa, pendurando um lençol do lado de fora da grade do quintal e gritando da rua:

— Ainda tá pegando sol nela?

— Sim! Mais pra direita.

— E agora?

Transportada diretamente para as memórias de roça, com minha mãe tentando acertar a direção da antena parabólica e eu, de cima de um banquinho, com a cabeça enfiada na báscula do corredor, gritando:

— Ainda não. Volta um pouco!

Talvez seja isso. Voltar um pouco.

Escrever tem isso, brincar com o tempo. Hoje, eu volto pra vários tempos, porque foi hoje que, finalmente, pintei o chão de vermelhão. Mas, isso é causo pra outro dia.

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