Publicado originalmente como: HIPÓLITO, Rodrigo. Herança e distinção. In: HIPÓLITO, Rodrigo; CIRILLO, José; GRANDO, Angela. Seminário em Arte e Cultura. Volume I. Vila Velha: ObjetoQuadrado, 2025, pp. 22-43.
Texto de Rodrigo Hipólito
Cultura e norma
Até algumas décadas atrás, o determinismo geográfico ainda possuía força como tentativa de explicar as diferenças entre povos, embora já tivesse sido confrontado com grande número de evidências e exemplos contrários. Essas diferenças não podem ser explicadas por antropologia biológica ou pela influência do meio (Laraia, 2001, pp. 16-17). Como exemplo, diferente do que se afirmava antes de pesquisas arqueológicas mais aprofundadas, as sociedades indígenas amazônicas não “decaíram” das andinas. A interpretação sobre a impossibilidade de desenvolvimento de sociedades complexas na floresta tropical se baseava em pressupostos falhos (em tipo de agricultura, de construção, de solo, etc.). O rompimento com o determinismo ambiental tornou possível considerar que os povos amazônicos tenham migrado do centro oeste brasileiro, da periferia da floresta tropical e do Orenoco venezuelano, com ocupações numerosas e complexas anteriores aos assentamentos andinos.
A teoria “ambiental”, quando primeiramente aplicada às terras baixas tropicais enquanto orientação para a pesquisa de campo, tornou-se uma espécie de profecia autoexplicativa, que evitava as evidências que não se coadunavam. Indícios de ocupações pré-cerâmicas aparentemente precoces têm sido contestados ou ignorados; e quando as ocupações cerâmicas nas terras baixas produziram resultados radiocarbônicos indicativos de sua antiguidade, foram interpretados como não-agrícolas, ou as datas foram contestadas ou ignoradas. […] Quando, em meados deste século, as primeiras pesquisas profissionais revelaram a existência de culturas construtoras de sambaquis nas várzeas da Grande Amazônia, estas foram geralmente atribuídas a influências externas. As sofisticadas culturas de origem andina foram consideradas como tendo decaído sob a influência do ambiente tropical, sendo suas populações dizimadas pelos rigores ambientais. (Roosevelt, 1992, p. 54)
Quando se diz que tanto a arqueologia quanto a antropologia perpetuaram, até muito recentemente – caso não se queira afirmar que ainda o fazem –, essas ideias do difusionismo e da degeneração vinculada ao ambiente impróprio da baixa Amazônia, aponta-se para um longo legado colonialista. O trabalho de e Betty Meggers, arqueóloga estadunidense que repetia princípios do século XIX, não apenas obsoletos, como vinculados ao entendimento das culturas originárias como menos capazes e propensas a serem tuteladas ainda permanece como referência fundamental (Noelli; Ferreira, 2007, p. 1250-1258). Sob esse ponto de vista, o entendimento de cultura estaria intrinsecamente vinculado aos estudos da natureza.
Mesmo antes de “Primitive Culture” (1871), de Edward Tylor, os esforços para a definição do conceito de cultura, entre os séculos XVII e XX, tiveram duas consequências para os estudos sociais e antropológicos. A primeira foi o alargamento do sentido de cultura, ao ponto de o conceito parecer pouco útil para os debates. O segundo foi a separação entre natureza e cultura, cujo marco pode ser indicado no texto “O superorgânico”, de Alfred Kroeber, de 1917 (Laraia, 2001, pp. 25-29).
Outras consequências da conceituação de Tyler e da popularidade do viés evolucionista no contexto de sua formulação permanecem até hoje. A perspectiva de que as sociedades europeias seriam mais avançadas, quando comparadas com os povos originários de outros continentes, por exemplo, serve de fundo para um sem-número de preconceitos, afirmações, ideologias e para o próprio planejamento de nossas políticas públicas. Percebe-se que existe o pressuposto de que a saída da floresta e o abandono dos modos de vida tradicionais de povos indígenas, em favor dos aglomerados urbanos e da participação nos modos de produção e consumo capitalistas são compreendidos como melhora de vida ou, explicitamente, como evolução. Por mais que as consequências catastróficas da industrialização e do sustento das metrópoles nos afetem diariamente, a aproximação com os modos de vida dos povos originários da América Latina, exposta pelos princípios do bem viver,[2] pode ser encarada como um retorno para o primitivo. Podemos nos perguntar, por exemplo, se boa parte da população consideraria positivo o abandono da lógica de aquisição de carros particulares e da separação de residências entre núcleos familiares de formulação europeia. Além disso, segue a normalização da lei do mais forte, compreendida como uma lei da natureza. Nessa lógica, os povos invadidos e dizimados assim o foram por serem menos evoluídos do que aqueles que assassinam, disseminam doenças, envenenam a terra, as matas, os rios, escravizam, exploram o trabalho de multidões, sustentam a fome e a miséria. Consideramos os modos de vida baseados na ganância e no individualismo como mais avançados. Sobre esses fortes, dizemos que são mais evoluídos. Chamamos essa evolução de progresso.
Em um sentido oposto e jocoso, ainda dentro do evolucionismo, poderíamos considerar como característica adaptativa superior a capacidade de evitar, tangenciar ou sobrepor-se aos processos massivos da industrialização e do acúmulo de capital. Em última análise, esses processos parecem pavimentar o caminho para a extinção da humanidade, assim como determinaram a extinção de milhares de outras espécies em menos de duzentos anos. Saber desviar da extinção prevista a longo prazo não deveria ser considerado um comportamento dominante, sob a ótica do evolucionismo? Certamente, nenhuma explicação sobre as transformações e atravessamentos culturais poderia ser tão simples.
Ainda que os pressupostos do progresso continuem, de modo amplo, vinculados a tais princípios, o entendimento das inevitáveis transformações sofridas pelas diversas culturas, tanto em seus desenvolvimentos iniciais quanto em suas fases mais complexas, ganha vertentes variadas. Ao encarar as possibilidades e os problemas abertos pelas definições de Edward Tylor e Alfred Kroeber, desdobram-se os esforços rumo à uma definição que seja suficientemente elástica e especifica.
Dentre tais esforços, a cultura pode ser compreendida como (i) um sistema adaptativo, ainda sob uma lógica evolucionista; (ii) um sistema cognitivo, ou seja, a operação de um conjunto de saberes; (iii) um complexo de sistema estruturais, o que permitiria elaborar princípios se não universais, bastante extensos; e (iv) culturas como sistemas simbólicos, com atenção para a construção dos elementos culturais através de comportamentos e da comunicação (Laraia, 2001, pp. 59-64).
Nesse último caso, podemos nos remeter a Derrick De Kerckhove que, além de considerar que não existiria um ser humano natural, defende que a linguagem possui tanto peso sobre a nossa visão de mundo, que determinaria nossa percepção do tempo. O sistema simbólicos surgiriam como programas e nós seríamos aptos a executá-los. “[…] somos todos mais ou menos programáveis, se não mesmo mutantes genéticos. Não é caso para alarme. É antes um convite para que nos conheçamos com mais precisão.” (Kerckhove, 2009, p. 193-194). Isso significa que algumas das informações que guardamos nos permitem executar ações que somente fazem sentido ou são possíveis em comunidade.
Dessas definições, é fácil notar que duas condições são observáveis e relacionam-se diretamente: a herança e a distinção. As culturas se processam através de heranças coletivas, como crenças, idiomas e gostos. Tais heranças conformam visões de mundo. Ao perceber o mundo de um modo específico, compartilhado por uma comunidade, passamos a estranhar o estrangeiro, pois não percebemos e construímos a realidade a partir de sua herança. No extremo, o estranhamento pode refletir um forte etnocentrismo e gerar crenças e comportamentos que variam da autopercepção de um povo como superior e “escolhido” até práticas xenofóbicas, nacionalistas e agressões preconceituosas.
Em sentido oposto, o desgarramento cultural pode se dar de diversos modos e com consequências das mais sutis até as trágicas. Ainda que, em nosso tempo, encontremos a hegemonia do pensamento individualista, esse se efetiva de modo coletivo. As crenças nas capacidades individuais, a ode à superação por empenho próprio, a concepção da propriedade privada como sagrada e a explícita ilusão da ascensão socioeconômica por mérito são partilhadas por centenas de milhões de pessoas. Ou seja, mesmo dentro do discurso individualista, o rompimento com as raízes culturais não é algo que possa acontecer pela simples decisão de abandonar sua cidade natal ou idolatrar as representações de outras nações. O exemplo trágico do sequestro e escravização de populações africanas, trazidas para as Américas, ou dos povos indígenas expulsos de suas terras por colonizadores e, recentemente, pelo agronegócio, não se encerram nos fatos históricos. O desenraizamento da população negra tem consequências densas para seus descendentes. Minimizar o sofrimento da experiência de não poder trilhar o caminho de seus antepassados, com ou sem vínculo sanguíneo, é uma das estratégias de homogeneização cultural. Quando as heranças culturais dominantes são quase sempre dos colonizadores, é fundamental compreender que não fortalecer deliberadamente as demais heranças significa aceitar o seu apagamento. Não há mesclas culturais igualitárias. Ainda que esses cruzamentos sejam inevitáveis, isso não precisa resultar em homogeneização, mas em variedade. Com medo da variedade, a cultura hegemônica encobre a assimilação com uma defesa de que as mesclas culturais apenas gerariam algo novo.
Os processos de assimilação são mais de perda do que de mescla. Ocorre que cada cultura possui sua lógica interna. Mesmo que se tomem elementos de variadas culturas, submetê-los à lógica de outra pode resultar em profunda alteração de seus sentidos, ou mesmo no desaparecimento de seus significado e na adoção de outros, já presentes na nova lógica. Em larga medida, essas dificuldades podem ser percebidas quando tentamos responder à pergunta sobre o que consideramos normal e fora do normal.
Maura Corcini Lopes e Eli Henn Fabris (2016) sintetizam algumas ideias de François Ewald e Michel Foucault para nos lembrar de que a norma é um modelo que opera como medida de comparação. O normal, simultaneamente, inclui e exclui. Os processos de normação, normalização e normatização instituem a normalidade na direção do controle e da homogeneização.
Então, a norma age tanto na definição de um modelo tomado a priori aos próprios sujeitos quanto na pluralização dos modelos que devem ser referência para que todos possam se posicionar dentro de limites locais, e uns em relação aos outros.
[…]
A norma disciplinar é constituída a partir de um normal universal. Isso significa que primeiro se define a norma e depois se identificam os sujeitos, sempre de forma dicotômica ou polarizada, como normais e anormais, incluídos e excluídos, sadios e doentes, deficientes e não deficientes, aprendentes e não aprendentes, ricos e pobres, brancos e negros, etc. Por normalização marcamos um processo inverso ao de normação. A normalização parte do apontamento do normal e do anormal dado a partir das diferentes curvas de normalidade, para determinar a norma. Isso significa que “a operação de normalização consistirá em fazer interagir essas diferentes atribuições de normalidade e procurar que as mais desfavoráveis se assemelhem às mais favoráveis”.
[…] a normatização é o que designa, estabelece e sistematiza as normas. Assim, é possível entender que “dispositivos normatizadores são aqueles envolvidos com o estabelecimento das normas, ao passo que os normalizadores [são] aqueles que buscam colocar (todos) sob uma norma já estabelecida e, no limite, sob a faixa de normalidade (já definida por essa norma)”. (Lopes; Fabris, 2016, pp. 29-30)
Se algo escapa desses processos, a tendência é de que seja encarado como fora da normalidade e, logo, externo à nossa cultura, estranho. Se alguém caminha de terno e gravata sob o sol de 38º de uma metrópole tropical, parece não haver estranhamento. Isso está dentro da normalidade, pois segue a lógica da nossa cultura. Quando Flávio de Carvalho caminha com seu new look, em 1956, pelas ruas de São Paulo, por mais adequado que as vestes estivessem para o ambiente tropical, o resultado foi o estranhamento. A cultura não é determinada pelas condições naturais do ambiente ou do ser humano. Ainda que não seja uma definição, é razoável afirmar que a cultura existe nos complexos processos de operação da normalidade e transforma-se em resposta aos atritos e às disputas de poder que movem as sociedades.
Educação, sucessão e cultura-valor
Recentemente, passei por uma postagem da historiadora e professora Juliana Araujo Meato a respeito da dificuldade de acessar os códigos da escrita acadêmica.[3] Seus questionamentos sobre a pouco ou nenhuma existência de preocupação com a escrita acadêmica no currículo dos cursos de ensino superior receberam uma boa variedade de respostas. Algumas pessoas identificaram-se com seu depoimento e reconheceram o cenário como problemático. Outras pessoas discordaram da diferenciação entre aprendizagem da escrita acadêmica de outras escritas formais quaisquer. O que, aparentemente, não recebeu negativas foi a existência de uma dificuldade generalizada, por parte não apenas de estudantes de graduação, de aproximarem-se do universo da produção científica e da publicação de seus resultados.
De fato, no cenário brasileiro, a compreensão e a prática com redação à publicação de artigos e livros acadêmicos costuma se dar por contato pouco estruturado. Além da prévia disposição de estudantes para acercarem-se de professores que desenvolvem pesquisa e publicação, há a dependência da disponibilidade docente para realizar essa orientação. No currículo da grande maioria dos cursos superiores, é improvável que encontremos disciplinas voltadas para esse fim.
No mesmo sentido, mas com um horizonte mais ampliado, essa dificuldade tem origens mais profundas, anteriores, complexas e difíceis de serem superadas apenas por mudanças nos currículos do ensino superior. A distância que faz com que uma pessoa leia dezenas, ou até centenas, de artigos e livros acadêmicos durante sua graduação e, ainda assim, não assimile os elementos estruturais e os estilos de escrita, de modo a empregá-los para comunicar os resultados de sua própria pesquisa, pode relacionar-se com um sem-número de fatores. Alguns deles me fazem pensar a Figura 1:

Figura 1. Sem título. Disponível em: https://x.com/comunadememes/status/1808133476173926574. Acesso em: 08 jul. 2024. Duas fotografias organizadas verticalmente. A superior mostra uma cena de piscina, com uma criança sorridente saindo da borda para os braços de uma mulher adulta já na água, com o rosto de outra criança em primeiro plano, quase se afogando. Sobre primeira criança, lê-se: estudantes que são bons em memorização. Sobre a mulher, lê-se: escolas, faculdades e concursos públicos. Sobre a criança se afogando, lê-se: estudantes que são bons em resolver problemas concretos. Na imagem de baixo vê-se um esqueleto humano sentado em uma cadeira no fundo do mar. Sobre ele, lê-se: estudantes bons em pensamento crítico e habilidades criativas.
O comentário humorístico da imagem responde ao relatório do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (OCDE, 2024), o PISA, que aponta o Brasil como abaixo da média esperada para o desenvolvimento de habilidades criativas em estudantes. Deve-se especificar que a avaliação da OCDE está voltada para a criatividade como a capacidade de resolução de problemas sociais e científicos, não no sentido de desenvolvimento de ideias artísticas ou percepção de cenários culturais. A despeito disso, tanto a imagem quando o relatório apontam para os problemas de um ensino calcado na assimilação e na reprodução de fórmulas definitivas. Mas, afinal, a reprodução de fórmulas não está na base da educação formal? A resposta positiva para essa pergunta não desconsidera que há modificações a partir do afastamento da base. No entanto, sob a ótica foucaultiana, o controle está ali, no cerne dessa instituição. A aprendizagem escolar envolve, há séculos, a função de docilizar os corpos (Foucault, 1987, p. 121). A disciplina permite a assimilação dos sujeitos na sociedade normatizada e, como ameaça, fecha a porta da plenitude cidadã para aqueles que não se adequam.
Sobre o comportamento adequado para a assimilação e a manutenção da ordem, não devemos nos esquecer de que observá-los envolve reconhecer os padrões bem-quistos em cada sociedade. Esses podrões são, até certo ponto, herdados (ainda que possam ser adquiridos). Nas escolas, essa herança pode ser mais facilmente observada e avaliada. Esse patrimônio, ou laço geracional, foi chamado por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (2014) de herança invisível. Ligada às classes mais favorecidas, essa herança invisível é o que permite o acesso a uma cultura-valor, que poderia ser assimilada na experiência de frequentar ambientes e conviver com conteúdo e pessoas adequadas ao sistema para o qual a escola disciplina os corpos. Teatros, galerias, museus, bibliotecas, restaurantes, cafés, espetáculos musicais, a presença de livros e do ato da leitura, as conversas sobre literatura, cinema, arte ou mesmo presenciar o comportamento tido como educado em seu cotidiano influenciaria a capacidade de estudantes de serem mais ou menos facilmente integrados e disciplinados pelas escolas. Ou seja, o sucesso e o conforto acadêmicos, como a facilidade para lidar com a escrita e a leitura especializadas, não dependeriam de capacidades inatas, mas fariam parte de um processo de socialização, no qual a familiaridade é o elemento mais pesado (Bourdieu; Passeron, 2014, p. 69).
Para além do consumo de cultura-valor, o papel da herança para a socialização e a atuação em comunidade é repleto de conflitos e nem sempre resulta na facilidade de assimilação. A estrutura familiar executa a herança através da sucessão. Mas, embora os interesses econômicos, a judicialização da vida e os rituais de reafirmação dos vínculos afetivos exerçam grande influência nos processos de sucessão, mesmos as estruturas familiares e comunitárias mais tradicionais geram atritos e inconformidades quase paradoxais na transição de responsabilidade e direito entre gerações:
De todos os dramas e conflitos, ao mesmo tempo interiores e exteriores, e ligados tanto à ascensão quanto ao declínio, que resultam das contradições da sucessão, o mais inesperado é sem dúvida o dilaceramento que nasce da experiência do êxito como fracasso, ou melhor, corno transgressão: quanto mais bem-sucedido você é (isto é, quanto maior seu sucesso em cumprir a vontade paterna de vê-lo bem-sucedido), mais você fracassa, mais você mata seu pai, mais você se separa dele; e, inversamente, quanto maior é seu fracasso (fazendo assim a vontade inconsciente do pai, que não pode querer totalmente sua renegação, no sentido ativo), maior é seu êxito. Como se a posição do pai encarnasse um limite que não deve ser ultrapassado, que, interiorizado, torna-se uma espécie de proibição de diferir, de se distinguir, de renegar, de romper. (Bourdieu, 1997, p. 12)
Esse embate não é apenas interno e não impõe uma crise apenas sobre o sujeito levado a confrontar-se com as contradições da sucessão. As consequências desse embate podem ser observadas nas relações familiares, notadamente nas disputas por legados, o que inclui o poder econômico. Para nos valermos da ficção, a citação anterior encaixa-se bem como sinopse alternativa para os conflitos entre os integrantes do núcleo familiar protagonista da telenovela “Renascer” (Barbosa, 1993; Luperi, 2024). Nessa história, que se passa entre a decadência e o ressurgimento da produção cacaueira do sul da Bahia, José Inocêncio é um forasteiro que obtém sucesso no manejo de uma fazenda de cacau cobiçada pelos últimos coronéis da região, enquanto seus vizinhos perdem terras e adquirem dívidas resultantes de uma praga que se alastra pelas plantações. Com um misto de sorte, misticismo, arrojo e conhecimento sobre o trato com a terra, Inocêncio se torna uma espécie de mito vivo para os moradores locais.
Já rico e respeitado, ele envia três de seus quatro filhos para estudarem em Salvador. O único a permanecer para trabalhar na fazenda é o filho mais novo, João Pedro, a quem Inocêncio culpa pela perda da esposa, falecida durante o parto. Repudiado e maltratado pelo pai desde o dia de seu nascimento, João Pedro cria-se sob sua sombra, entre a necessidade de provar-se digno do sobrenome, a inveja dos irmãos mais velhos, José Augusto, José Bento e José Venâncio, e a mágoa e o respeito pelo pai.
Os três irmãos mais velhos constroem suas vidas distantes da fazenda, sustentados pelo dinheiro enviado por José Inocêncio, que faz questão de manter distância e pouco sair da fazenda. Ele entende o custeio dos estudos e dos empreendimentos dos filhos como investimento financeiro e culpa-os por não terem dado frutos. Do outro lado, os filhos entendem esse comportamento como afastamento deliberado e constante avaliação. Ao retornarem para a casa de origem, os três frustram o processo de sucessão. José Augusto formou-se em medicina, mas perdeu o CRM e somente retorna à casa do pai após separar-se da esposa que o traiu. José Bento forma-se em direito, mas não consegue o registro de advogado, vive de trambiques e contrai grandes dívidas em jogadas fracassadas no mercado financeiro. José Venâncio conseguiu estabilidade ao abrir uma empresa de marketing com o dinheiro que recebia, mas se desfaz de tudo em uma crise existencial repleta de mentiras, na intenção de dar um neto para José Inocêncio e, enfim, conquistar sua aprovação. Nenhum dos três compreende o pai ou demonstra qualquer interesse nas terras que produziram seu sustento.
Já o quarto filho, João Pedro, frustra a sucessão ao cumprir todas as exigências do pai. Ele torna-se capaz de gerir melhor a fazenda, compreender melhor o mercado do cacau, produzir com maior qualidade, é justo com os empregados e conquista a confiança da população local. Os motivos que o levariam a ter o respeito do pai, no entanto, geram sua desconfiança e a recusa de ser destronado. A despeito da realidade que o engole, José Inocêncio se nega a aceitar que foi suplantado pelo filho preterido, que, aos seus olhos, não deveria ter direito de sucedê-lo, e força confrontos até que seja derrubado.
A trama de “Renascer” mescla uma diversidade de camadas da sucessão: econômica, sanguínea, espiritual, cultural, moral e intelectual. Todas elas são cruciais para que se compreenda o funcionamento da herança e a continuidade de tradições, o que envolve a repetição e a adaptação dos papeis sociais. Como em muitas outras histórias, observamos a disputa sucessória através da desagregação e da reformulação dos laços familiares. “Irmãos Karamázov” (Dostoiévski, 2008) contém boa parte dos atritos e disputas entre pais e filhos já apontados em “Renascer”, além da competição entre pai e filho pelo amor de uma mulher. Assim como na obra de Dostoiévski, vemos o resultado trágico da divisão de um reino em “Rei Lear” (Shakespeare, 2022), com suas diversas versões cinematográficas, como “Ran” (Kurosawa, 1985) e “Terras perdidas” (Moorhouse, 1997), literárias e mais recentes, como “We That Are Young” (Taneja, 2018), ou televisivas, como “Suave Veneno” (Silva, 1999) e “Succession” (Armstrong, 2018-2023). Em todos esses casos, podemos observar como as experiências dos sujeitos movimentam as mudanças e manutenções culturais. Não se trata apenas das escolhas desses sujeitos, mas de como as reações aos contextos específicos refletem-se em escaladas de complexidade variadas, como a afetação direta do outro, da família, dos negócios, da comunidade e, em última instância da imagem que construímos para a cultura de uma região e de um povo. Certamente, ainda devemos considerar os problemas decorrentes da resistência de tais contextos específicos, com seu poder micro, local, às forças do macro, do global.
Referências
BOURDIEU, Pierre. As contradições da herança. In: LINS, Daniel (org.). Cultura e subjetividade: saberes nômades. Campinas: Papirus, 1997.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Tradução de Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2008. v. I-II.
FOUCAULT. Michel. Vigiar e punir: história das violências nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
KERCKHOVE, Derrick. A Pele da Cultura. Investigando a nova realidade eletrônica. São Paulo: Annablume, 2009.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. — 14.ed. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
LOPES, M. C.; FABRIS, E. H. Inclusão & Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
NOELLI, F. S.; FERREIRA, L. M.. A persistência da teoria da degeneração indígena e do colonialismo nos fundamentos da arqueologia brasileira. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 14, n. 4, p. 1239–1264, out. 2007. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-59702007000400008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/fwh6cwYjwPMVfLypG8Fk45z/
OECD. PISA 2022 Results (Volume III): Creative Minds, Creative Schools, PISA, OECD Publishing, Paris, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1787/765ee8c2-en. Acesso em: 03 jul. 2024.
RAN. Direção: Akira Kurosawa. Produção: Katsumi Furukawa, Masato Hara, Serge Silberman. Japão/França: Toho (Japão)/Acteurs Auteurs Associés (França), 1985.
RENASCER Telenovela. Autor: Benedito Ruy Barbosa. Direção: Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: TV Globo, 1993. Telenovela.
RENASCER Telenovela. Autor: Bruno Luperi, baseado em Benedito Ruy Barbosa. Direção: Gustavo Fernandez. Produção: Betina Paulon, Bruna Ferreira. Rio de Janeiro: TV Globo, 2024. Telenovela.
ROOSEVELT, Anna Curtenius. Arqueologia amazônica. In: CUNHA, Manoela Carneiro da (org.). A história dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/Fapesp, 1992, pp. 53-86.
SHAKESPEARE, William. Rei Lear. Tradução de Rodrigo Lacerda. Edição bilíngue. São Paulo: Editora 34, 2002.
SIQUEIRA, G. C.; GONÇALVES, B. S.; SANTOS, A. D. O. D.. Entre utopias desejáveis e realidades possíveis: noções de bem viver na atualidade. Estudos Avançados, v. 37, n. 109, p. 125–144, set. 2023. DOI: https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2023.37109.009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/CNxdWQpkJZCFs4QDHtcZStn/
SUAVE Veneno [Telenovela]. Autor: Aguinaldo Silva. Direção: Daniel Filho; Ricardo Waddington. Rio de Janeiro: TV Globo, 1999.
SUCCESSION [Seriado]. Autor: Jesse Armstrong. Produção: Regina Heyman, Dara Schnapper, Jonathan Filley, Ron Bozman, Gabrielle Mahon. Estados Unidos: HBO Entertainment/ Gary Sanchez Productions/Hyperobject Industries/Hot Seat Productions/ Project Zeus, 2018-2023.
TANEJA, Preti. We That Are Young. Nova York: Knopf, 2018.
TERRAS perdidas. Direção: Jocelyn Moorhouse. Produção: Marc Abraham, Steve Golin, Lynn Arost, Kate Guinzburg, Sigurjon Sighvatsson. Estados Unidos: Buena Vista Pictures Distribution (North America), PolyGram Filmed Entertainment (International), 1997.
[2] Não é exagero dizer que a noção de bem viver é uma das mais antigas formulações indígenas de oposição ao colonialismo e ao desenvolvimento exploratório, posto em prática pelos invasores europeus nas Américas. Além de antigo, o pensamento do bem viver foi construído em várias matrizes: “a matriz das visões de mundo indígenas; a matriz do pensamento utópico latinoamericanista; a matriz estatal; e a matriz socioambiental.” (Siqueira; Gonçalves; Santos, 2023, p. 126).
[3] Disponível em: <https://x.com/meato_/status/1806497083517526250>. Acesso em: 03 jul. 2024.
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