[conto] Fora da linha 32

"Escape", 2014.

“Escape”. Rodrigo Hipólito. Fotografia com intervenção manuscrita, 2014.

 

Texto de Rodrigo Hipólito

Entrou na sala com um arranque da porta, estacou antes de fechá-la às costas, olhou fixamente para as duas figuras que conversavam à mesa, antes de disparar em tom ofendido e infantil:

– Ainda posso entrar aqui ou preciso avisar?

Um dos sujeitos se ergueu, sorridente, enquanto o outro se conteve, cabisbaixo e, pronto, dispôs-se a ajeitar papéis numa pasta azul. O primeiro aproximou-se, pôs a mão sobre o ombro daquilo que para ele não era um ser humano, mas sim uma criatura esguia e turva como uma cachoeira petrificada.

– Pode se acalmar e começar de novo. Vai permanecer muito, muito tempo nesse mundo de merda. Coisas como esta – e apontou para o outro homem – haverão de ser mais que suficientes como boas companhias. Do contrário, vai terminar sem roupas, numa mata fechada, comendo minhocas e catando as latas de Pepsi da dieta de qualquer tribo aborígene recém-descoberta. Isso é ainda mais respeito próprio do que ocorre com a maioria.

O segundo tombou o olhar sem entender muito bem a fala do colega e assustou-se quando esse se virou abruptamente com um riso teatral e uma caneta Bic suspensa como uma navalha suja demais para refletir a luz branca do escritório.

As cenas do quotidiano! Sempre tão bem explicadas, que sequer possuem epígrafe ou um fechamento com o destino das personagens sobreviventes. Após os primeiros sete ciclos do satélite, já era possível antever um caminho tão bem determinado para cada uma dessas figuras desajeitadas e impacientes com os próprios pelos, que as psicopatias e demais degenerescências retiniam interesse.

Resistir e disciplinar-se para não entrar em jogos de azar ou entregar-se àquela espécie de vício que exige assumir uma nova identidade a cada sessão sempre foram os maiores entraves. Aqui, ali, em todo o lugar, encontrar aqueles que se esqueceram de sua própria natureza, por tanto suportar o corpo débil, era mais triste que a derrocada de Lucien Chardon ou mais tragicômica que o destino do Grande Mentecapto.

Quando alguns novos apareciam como sobreviventes de um desabamento sem água ou comida por dias, havia sim uma expectativa sobre suas chances de adaptação. Pouco sucesso era apresentado quanto mais demora havia na fuga.

Algumas lógicas humanas tem sua serventia. Aquela que desacredita os heróis parece repetir-se em todos os tempos e lugares. Figura deformada de carne e espírito é ele a se humilhar numa caricatura apolínea. O heroísmo é a rubrica de todos os párias.

Aquela forma escura e chorosa foi o último (provável) dentre os salvos e resgatados. Somente permanecem até o final dos créditos os sovinas, os maníacos, os ególatras, os jornalistas cultos, os escritores pobres e os aspirantes a heróis.  Deveria ter sido evidente que a capacidade de adaptação do último covarde é menor e mais despropositada que os títulos de nobreza da grande Sealand.

O dia que se repetia como um hábito renovado sofreu, por fim, um tremor indefectível. Acordou com aquela sombra que se esgueirava pela cidade, inconformada com a condição de parca percepção que tivera de assumir.

A palavra mais próxima seria revolta, talvez indignação. Detestáveis são as personagens sem alma, que adentram o roteiro de última hora para desestruturar sociedades pacatas, as quais convivem tão bem com seus assassinatos e traições, ao ponto de manterem os gramados limpos e o entulho nos bairros pobres.

Uma coisa movente que não deveria estar ali. O que corria pelas pranchas dos jornais e vídeos na internet já não poderia ser considerado notícia ou deslumbramento, pois não havia a mesma temporalidade na qual a informação pudesse ter matéria. Aquela entidade vazia que, nas histórias de H. G. Wells, talvez tragasse as estradas como um buraco sedento, apenas permanecia perdida como o urso Humphrey apanhado pelo guarda.

E os movimentos tornavam-se mais lentos e pesados. Não havia método para reaver a consciência nas vítimas e os poucos que sobreviveram duzentos anos sem cair em miséria ou lastimar o amargor da verdade, agora assistiam o tempo estacionar. Certos de que deveriam encontrar uma porta com urgência de quem vê a arma sob a camisa do assaltante, todos restavam incrédulos num coro inaudível:

– Babaca.

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