Porta Sem Aldrava III

Quando você está com muito medo, quando só enxerga desespero, lhe são oferecidas soluções fáceis. Essas soluções retiram sua autoridade sobre sua própria vida e, de início, você se sente confortável por não precisar fazer o esforço de tomar decisões. No começo, pode parecer que tudo o que você precisa pode ser decidido por outra pessoa e que sua obediência é igual ao seu conforto. Mas, isso não será o suficiente. Você pode acreditar que precisa apenas de ordem, segurança, comida, casa, água, limpeza, trabalho. Mas, isso não é o suficiente. Em algum momento você sairá da infância. Nesse momento você pode perceber que não gosta tanto de Coca-Cola, sanduíche e frango frito, ou não vê muito sentido em ir àquela igreja toda a semana, ou que gostaria de ficar na rua até de madrugada, ou queria ter livros diferentes em casa. Você pode perceber que discorda do que seus pais dizem sobre gays, sobre cinema, sobre saúde, sobre religião, sobre o meio ambiente, sobre educação, sobre negros, sobre ciência, sobre imigrantes, sobre a vida, sobre a morte. Mas, o que há de errado? Você continua a ter casa, comida, roupas limpas, segurança. O que há de errado? Economicamente está tudo tão bem. Você terminou seu ensino básico, entrou para a faculdade e seu pai tem dinheiro de sobra para pagar as mensalidades. Em dois anos você vai se formar na mesma área que seus irmãos, que é uma área necessária para todos. Você terá emprego, mais dinheiro. Você pode comprar o que quiser. Mas, você não pode comprar o que quiser.

Você sai de casa. Aluga seu próprio apartamento. Compra sua comida, paga suas contas, tem teto, limpeza, segurança. Você pode pagar por tudo. A economia está ótima. Mas, o que há de errado? Aos poucos você deixa de ir à igreja dos seus pais. Não porque você planejou, mas porque nunca realmente fez questão de ir. Você fica um pouco mais só, pois todas as pessoas que você conhecia eram de casa ou da igreja. Tudo bem, você tem colegas de trabalho agora. Você começa a frequentar outra igreja, menor e menos formal. Só que todos eles parecem assustados e conversam entre si sem contar nada sobre a própria vida. Você acha isso estranho.

Agora você faz suas compras e decidiu mudar o cardápio. Mas como você não tinha reparado antes? No supermercado, só existem as coisas que seus pais sempre traziam para casa. Você pode comprar o que quiser, mas todas as coisas são iguais e você não quer nenhuma delas. Você não pode comprar nada.

Essa mesma cena acontece quando você decide mudar o que veste, assistir outros filmes, encontrar músicas novas. Você nem sabe por onde procurar por coisas novas.

No domingo, você sai para almoçar fora, quando pode decidir entre variedade de sucos ou variedade de refrigerantes. Você decide tomar água e terminar logo de comer para poder caminhar pelo parque. A cidade é tão limpa. A cada esquina você tem um Starbucks, uma farmácia, um Mcdonald’s, um Subway e uma feira de foodtrucks. A cada esquina isso se repete, até que você chega ao parque, paga sua entrada e se senta num banco no meio da grama verdinha. Você observa uma marcha de escoteiros e escuta um coral que canta hinos. E o que era apenas tédio, começa a se tornar angústia.

Você vê ao fundo uma agitação. Alguns policiais aparecem e imobilizam uma moça que usa roupas pretas meio sujas. Antes de eles terminarem de jogar a moça na viatura, a equipe de limpeza do parque já repinta o muro sobre o qual ela havia escrito algo com Spray de tinta. Isso foi rápido o suficiente para você não perceber a chegada do senhor que se sentou ao seu lado. Você se assusta ao ouvir as mesmas palavras que sempre ouviu em casa, na igreja, na escola, no Youtube: “Tinham que matar logo esse bando de vagabundo drogado que fica sujando a cidade!”.

Você não entendeu de imediato. Você precisou pensar por muito tempo para compreender o que lhe incomodou. A cidade está limpa, mas isso te deixa triste, por que? A economia está ótima, você pode comprar o que quiser, mas, o que você quer comprar? Se todas as pessoas do mundo dizem para matar aquela moça, então, de onde ela veio e por que ela fez aquilo?

Cidades padronizadas são vendáveis, cidades com culturas muito variadas, não. Um projeto como o “cidade limpa” está diretamente vinculado a morte de culturas de gueto, assim como transformar favelas em parques temáticos para turistas estrangeiros consumirem o exótico, ou o sonho asséptico do “porto maravilha” das olimpíadas do Rio. Empresas multinacionais não abrem franquias se precisarem repensar sua estrutura, métodos de produção e de venda. Tornar a cidade em um produto padronizado facilita sua privatização. Esse é um dos grandes riscos de um crescimento econômico posto em marcha por uma elite preconceituosa, tacanha, obsoleta e conservadora. Uma cidade com empregos, mas na qual as pessoas não podem se expressar livremente ou que não possuam direito a consumir algo além do que as grandes empresas produzem, não representa uma sociedade bem desenvolvida. Separar economia de cultura e imaginar que ter emprego e dinheiro soluciona todos os problemas de sociedades complexas é um pensamento que faz parte do mesmo grupo que a eugenia, o apartheid, a colonização, o escravismo… Um planejamento que visa “colocar a economia nos eixos”, mas que não possui equivalências afirmativas para sociologia, ciências políticas, antropologia, história, artes, ciências exatas e tecnológicas, engenharias e demais campos de pensamento ativo, somente pode gerar uma colônia rica de recursos financeiros, mas sem humanidade.

Quando governos começam a ditar estruturas econômicas, culturais, éticas e morais que devem ser seguidas por décadas, seu direito de tomar decisões desaparece. Depois de alguns anos, ou meses, você terá dificuldades de perceber que quer algo diferente, pois não conhece nada diferente do que lhe é dado e anunciado. O modo como a mídia se comporta para permitir que isso aconteça pode ser pouco nítido, mas sem esse papel, você não ficaria com medo o suficiente para desistir dos seus direitos e não estaria fechado num mundo de informações controladas para não querer sua liberdade de volta.

Todos os jornais fazem uso da sua preguiça de se informar. A diferença entre propaganda e notícia nunca foi muito grande. Mas, a propaganda cria desejos através da facilidade de interpretação de mensagens simples, enquanto a notícia precisa do seu compromisso e do seu esforço para interpretar mensagens complexas. As mídias sociais e os jornais fazem propaganda de mensagens simples para te vender decisões sobre informações complexas.

Qualquer mensagem que exija muito do seu tempo e esforço para compreender o que está dito, passa por um filtro infantil antes de você aceitar gastar esse tempo e esse esforço: o filtro do seu preconceito. Caso a mensagem inicial discorde de suas opiniões formadas, você dificilmente fará esse esforço. Aos poucos, você passa a somente aceitar mensagens que confirmem seu ponto de vista e a se comunicar apenas com pessoas que concordem com você. Popularmente, está formada a sua “bolha”. A partir desse ponto, você não apenas recusa informações que lhe contradizem, mas deseja fortemente mais propaganda das ideias com as quais você concorda.

Concordar, no entanto, é um termo forte. Você talvez tenha medo de pensar diferente. Em algumas ocasiões você se arriscou a mudar de ideia. Mas, logo você percebeu que isso significava ser atacado pela sua “bolha” e você não teria como se defender. Sem ter para onde fugir ou como pedir ajuda, você se cala e continua a concordar, não com as ideias, mas com as pessoas. O mesmo talvez aconteça com elas e, nesse momento, todos fazem propaganda de ideias sobre as quais nunca pensaram e das quais muitas vezes discordam.

Se a sua “bolha” for a de colegas de classe, colegas de trabalho, colegas de academia, influenciadores digitais, web celebridades e colegas da igreja, você é apenas uma pequena parcela de um processo maior de cerceamento de liberdades e apagamento do pensamento crítico. Quando essa espécie de visão de mundo, própria da propaganda e não da interpretação, atinge o poder estatal, nós encontramos propostas de mudanças profundas da sociedade, propagandeadas por slogans rasos e confortáveis, como a melhora da economia. Congelamento de gastos, reforma do ensino público para formar funcionários, retirada de direitos dos trabalhadores, proibição de formas de expressão, homogeneização do consumo, leis baseadas na defesa de uma moral, privatização das funções do Estado, intervenção militar.

Decisões como essas são tomadas em momentos nos quais a maior parcela dos indivíduos que detém o poder possui pouca responsabilidade. Sempre há indivíduos com pouca responsabilidade sobre seus atos no governo. Por vezes, essa quantidade é pequena, frente aos sujeitos responsáveis, mas, por vezes, é maior. Indivíduos irresponsáveis, com muito poder e aliados a outros indivíduos irresponsáveis, não estão abertos a argumentação. Você não deve tolerar aqueles que trabalham para te agredir, te humilhar, te escravizar e te destruir. A única maneira rápida de deter a dominação dos indivíduos irresponsáveis é a violência, ainda que não física.

Nos tempos atuais, a violência gerida por mecanismos de comunicação em prol da redução dos poderes dos irresponsáveis talvez seja o campo de batalha mais eficiente quanto aos regimes ditatoriais em processo de consolidação. Nesse sentido, a cultura hacker é uma arma pouco pensada pelos pacifistas e humanistas conscientes de suas responsabilidades. Como este texto já está muito extenso, deixemos o hacktivismo para um momento seguinte. Por enquanto, embora a mensagem não seja tão simples: sim, devemos tomar os meios de comunicação como parte daquilo que, um dia, pode ser o retorno dos direitos e das liberdades.

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