
Incorpora. Fabiana Pedroni, Fotografia de tronco de pinheiro com arame farpado e intervenção digital, 2018.
Texto de Fabiana Pedroni..
Era um dia árido. Não precisei do aviso do celular, pois parecia que eu não havia dormido. Dia após dia, deitar, levantar, deitar, levantar, deitar… tanta recorrência que parece que perdemos o sentido de cada uma das ações. Se você deita e levanta todos os dias, durante tantos anos, o ato aparenta obrigação. Quando sentimos que há um dever imposto, nos sabotamos e já não queremos levantar. O corpo levanta, mas não somos feitos apenas de carne.
Não era nem meio dia quando me dei conta de que ainda estava deitada, desde às 5h30, em outro lugar – o espaço sufocante da rotina sobre a qual não pensamos, não falamos, apenas fazemos. Foi um estranho sussurro da memória, um ruído, que me fez ver uma fonte de água a cair entre as folhas de uma samambaia. O barulho gostoso de água e o cheiro de terra molhada queriam adentrar nesse dia deserto. Como pode o tempo e a rotina nos suspender do calor da terra, ignorar que aqui estamos?
Com tantos sussurros a se amontoar, a solução era levantar, sair do caminho, questionar outro lugar. Quando comentei sobre minhas vontades de trazer vida à vida, descobri que um amigo havia começado um pequeno jardim. Uma semente de abóbora deixada ao acaso, um pé de manjericão a deitar aroma pela casa, uma suculenta a se multiplicar… Por que plantas?
A primeira coisa que fiz quando morei sozinha, foi criar um jardim. Em 2014, o último evento que fui no Paço das Artes, antes de voltar para Vitória, foi um diálogo com o artista Fernando Limberger e o coletivo Bijari, quando falamos das relações entre Arte e Natureza.[1] Quando fui à exposição de Salvador Dali, também em novembro de 2014, no Tomie Ohtake, o que não desgrudou da minha cabeça por muito tempo foram as ilustrações que reuniam partes animadas de plantas e insetos. A saudade que deixou Inhotim ficou marcada na sola do sapato pelo Labirinto de Cristina Iglesias, também em 2014.[2] Afinal, o que aconteceu entre 2015 e hoje?
Vou sentar na varanda, olhar as plantas em seu pequeno espaço e pensar, afinal, eu acabei de levantar.[3]
Em abril de 2015 (quase aniversário já?), contamos os pinhos que cercavam a borda do sítio que dava para a rodovia. Na última década parece que filmamos e fotografamos tudo. Isso é ótimo tanto para desmemoriados quanto para quem se mistura com uma pancada de projetos que talvez nunca terminem. Com os vídeos e fotos do corte das árvores pensamos um bom tanto de ideias e sempre com um desejo de criar algum refúgio que integrasse a proximidade da natureza e a vida agitada de realizações. “Entre Crescer e Cair”, o ciclo daquele projeto reflete bem o título.[4]
Será que essa impressão de deserto não seria mais algo como um labirinto? Acho que era em Borges… Alguma citação sobre o labirinto ser o deserto e o deserto o labirinto. Minha família virou processo de criação, meu trabalho, meus amores, meus problemas… tudo processo.
Quando dona Angélica invadiu esse processo com uma potência, que eu gosto de pensar que seja meio genética, os ciclos continuaram a aparecer. “A Morte da Fofura” continua presente em casa pelúcia esmigalhada pelos caninos e, desse ciclo, o desejo por explosões pulsa semana após semana de rotinas. Aliás, como é que esse focinho que acompanha esses caninos não veio logo me contar o que aconteceu nesses últimos dois anos? Como foi que eu não notei que esses latidos começaram a dar opinião em tudo?
Há pelos por toda a casa. No rosnado seguinte já vem a reclamação de que praticamente passo meu tempo em sala de aula e em planejamento. Espera, espera. Tenho que parar um instante. Daqui a pouco vou começar a falar do meu Beatus, desses libríneos, das pessoas que conheci ou desconheci, vou fazer comparativos entre fotos de três anos atrás, nas quais fica difícil me reconhecer, daquele longínquo 2017, arrastado em torno de um suposto doutorado,[5] do meu nervosismo para provas didáticas em 2016 e da alegria de ser elogiada por pessoas que admiro, de me encontrar como professora, depois de anos de negação, da minha sobrinha alemã, que já sabe meu “apelido secreto”, das amizades que começam a ficar espalhadas pelo mundo (será que isso torna o mundo mais amigável?).
Entre aquela mocinha sentada na cabeça de um sapo gigante e essa mulher sem medo de ser louca ou puta, entre a garrafa de café com vidro quebrado, que quase matou todo mundo e o relógio de placas de vidro sujas pelo tempo,[6] entre aqueles cabelos longos com preguiça de falar em público e essa tagarelice de nuca raspada, entre os celulares velhos, usados só para SMS infinitos, e o aflorado gosto aquariano por tecnologias, entre a psicóloga e a escritora, entre a aluna e a professora, entre os manuscritos medievais e os livros infantis, entre pathos e patos, entre botas pretas e tênis coloridos, entre crescer, cair e crescer de novo. Quão mais jovem eu fiquei enquanto ficava mais velha? Que deserto! Que labirinto! Quantos ciclos!
[3] Se vou pensar, também verei, ouvirei e lerei.
[4] HIPÓLITO, Rodrigo ; PEDRONI, Maria Angélica ; PEDRONI, Fabiana. Entre crescer e cair: processos iniciais. https://notamanuscrita.com/2015/07/19/entre-crescer-e-cair-processos-iniciais/
[5] Sobre estes resmungos, só conferir aqui: https://notamanuscrita.com/2018/03/09/nao-pod-chorar-01-como-desistir-de-um-doutorado/
[6] Percebo-me como um labirinto de notas de rodapé… https://chronologiakairologica.wordpress.com/
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