
Owen Jones. Grammar of Ornament, 1856. Capa.
Referência completa: PEDRONI, Fabiana. O pode do ornamento: da forma decorativa ao ornamental. Palíndromo, [S.l.], v. 12, n. 27, p. 070-085, maio 2020. ISSN 2175-2346. Disponível em: <http://www.revistas.udesc.br/index.php/palindromo/article/view/17071>. Acesso em: 04 maio 2020. doi:https://doi.org/10.5965/2175234612272020086.
Resumo: Este artigo parte das definições do termo ornamento proposta por Oleg Grabar e Jean-Claude Bonne para expandi-las em uma análise etimológica com o intuito de observar as potencialidades funcionais do ornamento. As distinções terminológicas apontam para uma divergência entre uma acepção formal e outra funcional, divergência a qual não se mantém de modo estrito, mas, torna-se uma diferenciação dialógica.
Palavras-chave: Ornamento. Ornamental. Ornamentum. Kosmos.
Abstract: This article begins with the definitions of the term ornament proposed by Oleg Grabar and Jean-Claude Bonne to expand them in an etymological analysis in order to observe the functional potential of the ornament. The terminological distinctions point to a divergence between a formal and a functional sense, a divergence which is not strictly maintained, but becomes a dialogical differentiation.
Keywords: Ornament. Ornamental. Ornamentum. Kosmos.
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Introdução
A mesa está posta. Sobre a toalha vermelha, pratos de porcelana branca com bordas de delicada linha dourada são rodeados de talheres e taças a reluzir vivacidade. A cristaleira agora está vazia, a prataria polida e os pratos comuns foram deixados na cozinha. Guardanapos de tecido branco são dobrados e abraçados por argolas de cor vermelha e dourada para harmonizar a composição da mesa. Acrescentemos um ramo de visco sob a porta e estaremos ainda mais próximos de uma cena de Natal.
Os pratos não precisariam ser de porcelana nem existir utensílios de prata para se reconhecer uma organização de mesa diferenciada do uso cotidiano. Para se elevar a hierarquia do jantar comum à uma ceia de Natal, ao invés de ater-se ao valor material, bastaria uma simples raridade de uso de qualquer elemento. Materialidade, usos, funções, poder, são partes de uma diferenciação pertencente também ao debate sobre o ornamento. Por este motivo, será a mesa posta o exemplo guia deste texto, o qual busca discutir principalmente os pontos que envolvem a definição da ideia de ornamento em suas variantes nominais e verbais.
A grande amplitude do uso do termo ornamento equivale à sua presença histórica em diferentes períodos e produções. Um prato grego pode fazer uso de um ornamento em forma de arabesco, assim como um prato comprado em uma loja popular atualmente. Os arabescos podem ser idênticos visualmente, mas sua forma semelhante não determina diretamente que eles possam ser retirados do objeto sem que se sofra alguma consequência. O prato continuará com sua funcionalidade de servir, de “ser prato”, contudo, seu valor social, cultural, econômico pode ser alterado.
A necessidade de se debater a funcionalidade do ornamento em muito se deve ao processo revisionista empreendido nas últimas décadas, o qual retoma conceitos já estabelecidos em diversos campos para analisá-los através de outras perspectivas e aportes teóricos. A aproximação da História e Teoria da Arte com outras disciplinas, como a Antropologia e a Psicanálise, trouxe ao ornamento novas miradas que recontextualizam o termo e garantem ao menos duas vertentes essenciais para a sua definição.
Da forma decorativa à funcionalidade ornamental
Oleg Grabar (2010), historiador da arte e arqueólogo francês, dedicou anos de pesquisa ao tema da ornamentação, sobretudo dentro da arte islâmica e, um ano antes de sua morte, afirmou, em “Do ornamento e suas definições” (2010), que dentre as muitas acepções do termo, as partes formal e funcional recebem diferentes graus de atenção teórica. A primeira seria uma definição mais clara e precisa, mas de pouco interesse intelectual. Nela o ornamento é definido como uma forma desprovida de sentidos (iconográfico ou outro qualquer), que pode ser copiada em diferentes suportes, independente de um embasamento cultural para a escolha – a forma ditaria a repetição.
[…] o ornamento é um conjunto de técnicas e padrões, geralmente agrupados em listas e associados principalmente – mas não exclusivamente – às artes industriais ou à cobertura de superfícies arquitetônicas. […] Esses motivos ou temas geralmente não têm significado, iconográfico ou não, além do objeto ou superfície em que estão localizados, e a técnica de sua criação incentiva uma repetição mais ou menos infinita. Ao contrário da grande arte figurativa da representação, o ornamento nunca é único e sempre pode ser copiado. (GRABAR, 2010, p. 05).
O pouco interesse intelectual a que ele se refere está preso aos estudos de datações e procedências estilísticas que evidenciam um aspecto de rigor, de trabalho preciso, porém limitados às especificidades formais dos ornamentos e nas técnicas de produção.
Menos clara, segundo Grabar (2010, p. 5-7) mas mais interessante, a segunda acepção deixaria as especificidades formais e técnicas em segundo plano para preocupar-se com o efeito produzido pelo ornamento e, sobretudo, o prazer oferecido pelas composições, pelas cores, proporções, expressões e outras categorias analíticas das obras de arte. Esses efeitos, segundo ele, não deveriam se subordinar às censuras predominantes no meio intelectual desde o último quarto do século XX, tempo em que o prazer deveria ser deixado apenas aos “críticos e amadores”, como diz Grabar (2010, p. 6). Ele frisa os sentimentos e as atitudes causadas pelo ornamento, que afetam a compreensão da obra pelo sujeito.
É em meditação sobre o ornamento nesse sentido que nós podemos eventualmente compreender os sentimentos e as atitudes que afetam nossa compreensão das artes de maneira geral e que nós escondemos habilmente dentro de pesquisas estilística ou iconográfica. A este nível, o ornamento não é mais uma coisa, mas uma emoção, uma paixão, uma ideia, o que afeta tudo que é criado pelos artistas e artesãos. É uma propriedade da obra de arte que transforma aquele que a olha.
É preciso cautela nas reflexões que se seguem. Tendo em mente que o texto é breve e sintético, como o deve ser um material de abertura de uma edição de revista, no caso, a Perspective, sabemos que essa citação está longe de resumir as contribuições de Grabar sobre o estudo do ornamento. Fazemos a ressalva, principalmente, quanto à generalização de ações por parte do ornamento (pensado por Grabar nesse texto) geradas no sujeito, independente da obra que olhe (“das artes de maneira geral”), pois nem toda arte pode ser ou ter caráter de ornamento. Torna-se complexo tentar delimitar um conjunto delimitado de reações à arte, mas, salvo essa observação, podemos frisar a contribuição de Grabar ao considerar o ornamento não como uma coisa, “mas uma emoção, uma paixão, uma ideia”, o que confere ao ornamento uma aproximação a uma vontade humana. Segundo Eugène Grasset (apud PAIM, 2000, p. 20) a criação ornamental nos aproximaria de uma vontade pela fantasia e abstração que não se limite à imitação dos objetos naturais. Para este artista do início do século XX, ornamentar seria como preparar uma festa, um modo de demonstrar o prazer de viver. Com atenção ao contexto de produção de Grasset, podemos, dentro do processo revisionista, encontrar outros sentidos históricos para a compreensão do ornamento. Observamos que, mesmo antes do início do século XXI, quando se intensificam os estudos teóricos do ornamento, já havia uma clara diferenciação para quando o ornamento é pensado em sua forma, como um motivo que pode ser aposto à objetos, e outra acepção que trata de suas potencialidades de existência, sua funcionalidade.
O ornamento pensado fechado em sua forma pode ser encontrado em catálogos de repertórios e padrões de ornamento, muito comuns a partir do século XVI, e que até hoje são reeditados e reproduzidos como material de consulta a artistas, designers, pesquisadores, outros profissionais e até “curiosos”. Um dos catálogos mais importantes e conhecidos é a “Gramática do Ornamento”, do arquiteto Owen Jones, de 1856.

Ornamento Celta

Ornamento mourisco
Fonte: Owen Jones, 1856 (obra completa aqui).
Na figura acima, o ornamento é destituído de seu lugar (histórico e material) e colocado ao lado de outros padrões que não funcionam senão dentro da sua própria forma, como parte de uma grande amostragem. Jones não apenas coletou e descreveu formalmente vários exemplos de ornamento usados desde a Grécia e Egito Antigo à China Imperial, como também formalizou 37 princípios básicos para a criação desses padrões. Esforços como o de Jones são importantes para estudos que pretendem reconhecer, datar e identificar a transmissão dos ornamentos entre diferentes culturas.[2] Apesar de catálogos como este contribuírem com o uso descontextualizado e indiscriminado dos repertórios de ornamento, Jones faz uma advertência aos copistas no prefácio de sua obra e mostra sua preocupação contra esse uso.
Ao justapor as muitas formas de beleza que cada estilo ornamental apresenta, espero contribuir para interromper essa tendência infeliz do nosso tempo que consiste em copiar, enquanto é moda, formas criadas em outras épocas, na ignorância das circunstâncias particulares que tornaram belos os ornamentos que eram expressivos e apropriados – os mesmo ornamentos que fracassaram inteiramente quando transplantados (JONES, 1856, s.p. tradução nossa).
Vale notar como só muito recentemente esta citação foi levada em consideração, assim como as 37 regras de criação ornamental, para a compreensão de Jones sobre a ideia de ornamento. Cada discurso precisa ser contextualizado dentro de seu próprio debate e preocupação.
É dessa origem estética voltada à beleza decorativa que nasceram as teorias mais tradicionais do ornamento, localizadas principalmente entre as décadas de 1850 e 1950. Dizemos tradicionais mais para frisar a tradição que para cristalizá-las em um sentido pejorativo de superação.[3] Para as teorias tradicionais, o ornamento localizava-se em uma questão formal, como um elemento belo aposto sobre uma superfície, da qual, se retirado, não traria prejuízos, senão estético e formal. Esse caráter de exterioridade deve muito às restrições modernistas ao ornamento, que foram muitas vezes lidas e citadas fora de seus contextos. Não apenas o ornamento foi reduzido ao aspecto decorativo, mas os próprios debates deste período, de 1850-1950, sofreram restrições à sua profundidade teórica. Debates esses que envolviam historiadores da arte, artesãos, críticos, teóricos, designers e arquitetos, mas que muitas vezes eram reduzidos às conhecidas fórmulas antiornamentais, como “o ornamento é crime”, de Adolf Loos, e “é preciso parar de ornamentar”, de Louis Sullivan (PAIM, 2000, p. 9).[4] Tais afirmativas esvaziaram-se de seus contextos de origem e sintetizaram toda a produção teórica daquele momento a uma negação do uso do ornamento. Da teoria do ornamento, produzida no período em questão, foi retirado o diálogo com a produção industrial, em que o ornamento já não tinha lugar, em comparação às utilidades do objeto.[5] Também foram ignorados os impactos do surgimento de exposições internacionais, as quais apresentavam produções até então periféricas à história da arte ocidental, como os artefatos Maori,[6] e o desenvolvimento da Art Nouveau. Esses eram eventos que se relacionavam diretamente com o papel do ornamento nas produções daquele período. Em todo caso, não havia uma restrição ao ornamento por se tratar de um simples complemento de beleza formal, mas por ter se afastado da experiência da arte daquele momento, por ter se recusado a participar da criação das formas e misturar-se genuinamente aos materiais. O diálogo do ornamento com a matéria passava a ser baseado em um disfarce da precariedade, uma ostentação de um luxo inexistente. Temos uma produção e teorização do ornamento distinta e específica nesse final de século XIX e início do XX, tão específica que não pode ser pensada fora de seus parâmetros.
O ornamento não é um elemento concreto e inflexível, ele está diante do tempo, é afetado pelo espaço que ocupa. A folha de acanto de um capitel coríntio não será a mesma folha de acanto de um vaso de porcelana comprado em uma loja de departamento. O ornamento pode ter uma história, como propõe Aloïs Riegl, mas essa história nunca será linear.[7] Pode-se localizar o ornamento em um tempo, ao fazer datações e procedências, mas não se deve esvaziá-lo de suas possibilidades de atuação nem mesmo de sua operacionalização teórica em momentos distintos. Afinal, teria o ornamento de acanto as mesmas formas e funções, na produção grega, romana e mesmo contemporânea?
A intensa, senão pesada, herança modernista na teoria do ornamento teve como consequência certa supervalorização da forma. Reduzido a uma forma aplicada de modo impensado, ou compulsivo, a um objeto, o ornamento seria um elemento puramente decorativo, que chegou mesmo a ser odiado. [8]
Contudo, o ornamento, em sua origem etimológica, na palavra ornamentum, abarca algo mais que a forma. Diferente das ideias modernistas, o ornamento, na concepção medieval, possui utilidades, seria “aquilo que permite funcionar, que é útil”. A reprodução impensada das restrições ao ornamento parece ter cegado grande parte dos estudiosos sobre essas contribuições. Cegueira tão seletiva que se deixou passar trabalhos como de Lloyd Wright, que afirmava a necessidade de se pensar o ornamento na raiz do projeto, e de que ele nascesse em harmonia com o projeto arquitetônico inicial. O ornamento não seria aposto de modo impensado a um prédio, residência, mas pensado na totalidade do projeto arquitetônico e artístico (ALOFSIN, 1994).[9]
O ornamento dentro de suas origens etimológicas
No latim medieval, ornamentum pode assumir variada significação que, basicamente (quer dizer, não apenas), divide-se em dois espectros de ação: “aquilo que orna, aquilo que veste, que decora” e “aquilo que permite funcionar, que é útil” (ARNALDI, 1983-2011, s.p.) [10] No primeiro conjunto estão também palavras como orno, ornatus e ornare: designam particularmente toda espécie de beleza, são recursos para ornar, decorar, embelezar, honrar, distinguir e exaltar. Pode se tratar de um objeto precioso, um enfeite ou adorno (roupa ou joia), ou outros materiais que em suas aplicações envolvem um sentido estético. Mas podem também ter sentido figurado, isto é, ornamento como brilho, prestígio, glória, virtude (qualidades morais e espirituais que são o adorno da alma, por exemplo).[11] Nesse conjunto de variações dos sentidos e usos da palavra ornamentum, identificamos com maior claridade o entendimento atual e ordinário do ornamento como objeto decorativo. Intimamente, se não estritamente, relacionado a seu caráter de beleza, é comum suprimir outros aspectos atuantes no embelezamento e ligados a origem da palavra, como a honra e o prestígio, para restar uma ideia limitada de complemento de beleza.
O ornamentum é da ordem do equipamento, daquilo que fornece o necessário para o funcionamento adequado de um mobiliário, moinho, navio ou mesmo de tropas militares (os soldados que se vestem de armas).[12] Também é aquilo que concerne à liturgia, isso inclui o mobiliário litúrgico, roupas, cortinas, relicários e outros objetos que formam os bens de uma igreja ou monastério, chamados de ornamenta ecclesiae.[13] Esse “tesouro” também possuía um equivalente laico – ornamenta regia -, objetos que marcavam o status social do detentor e mostravam-se como “insígnia de poder (real ou imperial)”.[14]
Apesar de aqui nos guiarmos por essa separação dos significados do termo ornamento, presente no Dicionário Internacional de Latim Medieval (800-1200), o Novum Glossarium Mediae Latinitatis,[15] pode-se observar que um conjunto de sentidos dialoga com o outro. O equipamento não é só útil, ele também é belo; a beleza do ornamento não é só forma, é também utilidade. Afastamo-nos da concepção comum de ornamento, como complemento de beleza, para aproximarmo-nos da ideia medieval de uma beleza que é formada por uma porção externa (decor) associada a uma dimensão honorífica (decus), para juntas aderirem a um suporte de modo conveniente (decet) (BONNE, 1996, p. 45-46). Ou seja, o ato de embelezar confere valor e honra ao objeto que orna, de modo que o caráter estético do ornamento seja adequado, decente, ao valor suposto do objeto. Por exemplo, uma coroa determina o status e poder de um rei, e para que ela o legitime como tal, a coroa deve conter ornamentos decentes a tal propósito. Agrega-se ouro, pedras preciosas e formas decorativas que se adéquam a essa legitimação de poder e status. Se voltarmo-nos ao exemplo da mesa posta, do início do texto, observaremos que uma série de detalhes conferem valor para que o lugar se torna digno da ritualística natalina. Encontramos essas relações entre decor e decus em uma fórmula de Isidoro de Sevilha, na distinção e união da alma ao corpo: “Decus ad animum refertur, decor ad corporis speciem” (BONNE, 1996, p. 218).
Se adentrarmos na origem etimológica da palavra ornamentum, perceberemos que essa tênue separação também ocorre em kosmos, palavra grega que tem no ornatus sua tradução latina (PUHVEL, 1976). Kosmos significa um arranjo adequado que une as ideias de ordem, beleza e mundo – uma bela ordenação do mundo.[16] Essa noção é estritamente ligada à retórica, sob a ideia de decoro, ou conveniência.
O ornamento e sua disposição, observados em uma perspectiva retórica, mostram-se como fundamentais para garantir o decoro e a realização da bela ordem, que faz com que aquele ambiente cumpra com eficácia sua função – ou funções, seja de polo agregador e centralizador da vida social, seja como centro de intercâmbios e estruturações das relações de poder, seja como o paraíso terrestre ou o lugar mais próximo do sagrado na Terra (BENVEGNÚ DOS SANTOS, 2014, p. 146).
A ordenação de kosmos também se relaciona à origem da palavra latina ordinare, que por haplologia, supressão de uma ou duas sílabas, declina para ornare (GROS, 2010),[17] que junto de ornamentum e outras palavras da mesma família de orno possuem os sentidos de ordenação e beleza. A ideia de beleza em kosmos forma o que hoje conhecemos por cosmética (kosmétikê) (PRÈVOST, 2012). Uma das primeiras referências a esse aporte estético está em uma passagem da Ilíada, em que Hera se veste, orna seu corpo com toda sua elegância (kosmon), para seduzir Zeus (PUHVEL, 1976, p. 157).
Sabemos que essas duas atribuições dadas ao ornamento são dialógicas, mas a distinção é proveitosa para frisar a existência da porção funcional (a que faz funcionar), deixada de lado em detrimento da porção formal (da forma que embeleza), e que só muito recentemente recebeu atenção no campo teórico do ornamento.
Se retomamos a definição de Grabar quanto à segunda definição, aquela que considera o efeito do ornamento sobre o sujeito, observaremos que como uma experiência da ordem perceptiva, ela será guiada pelo diálogo de duas atribuições básicas do ornamento, pertencentes ao universo do ornamentum e do kosmos. Tornamos mais evidente que a beleza do ornamento não é externa, mas funcional e própria do ato que a compõe. O trabalho do ornamento dependerá do trabalho da imagem, de seu suporte, e vice-versa. Ou seja, é possível ao ornamento assumir outras funções que não apenas a decorativa, assim como um dos modos de trabalho da imagem é pela ação do ornamento. Assim, a decoração se torna uma das possíveis funções da extensa variabilidade funcional do ornamento.
O poder do ornamento, segundo Jean-Claude Bonne
A diferenciação entre um ornamento que é apenas decorativo, em um sentido estrito, e um ornamento potencialmente funcional é base também para o trabalho de Jean-Claude Bonne. Para sublinhar a existência da função (e utilidade) no ornamento, Bonne assume significações diferenciadas para dois conjuntos de palavras: ornamento e ornamentação destinam-se ao aspecto mais formal do ornamento, e ornamental e ornamentalidade, dedicam-se à funcionalidade, sem excluir a forma de seu entendimento.
Quando o ornamento ultrapassa o domínio de motivos, de composições repetitivas, para se constituir como um modus operandi, ou seja, o modo de funcionamento da ornamentação, podemos falar sobre o ornamental.
Se adotarmos como categoria fundamental o ornamental, e não o ornamento ou a ornamentação, é para sublinhar que não o designamos como um domínio ou um tipo de objeto particular e bem situado na arte medieval, mas como um modus operandi em que a função estruturante é susceptível de atravessar todos os gêneros (BONNE, 1996, p. 213, tradução nossa)
O ornamental configura-se como um “poder”, aquilo que a ornamentação pode fazer, as várias funções que pode vir a assumir, podendo atravessar todos os níveis da imagem, desde os mais figurativos e representacionais aos mais abstratos e simbólicos. Aqui consideramos o ornamental como potência, em sua capacidade de ação, em sua possibilidade e poder de modificar-se ou ser modificado pelo contexto no qual se insere, pois suas formas e significados dependem de um contexto não apenas formal-imagético, mas também sociocultural. O ornamental pode tomar posse da imagem, participar da composição e vir a exercer a funcionalidade a que lhe é pedido celebrar.
O modo como o ornamental se porta ao assumir determinada função define-se como ornamentalidade. Ou seja, um termo que qualifica determinado elemento com uma característica de função ornamental: a ornamentalidade das cores, a ornamentalidade dos entrelaços, a ornamentalidade medieval. A ornamentalidade liga-se, portanto, à qualidade de ser ornamental, de se apresentar como ornamental, como situação. A palavra ornamentalidade, se pensada a partir de sua construção morfológica, define-se como o estado ou situação de ser ornamental devido ao sufixo “-idade”.
A diferença entre ornamental e ornamentalidade encontra-se, de certo modo, na própria funcionalidade. Enquanto o ornamental é potência, a ornamentalidade é a situação, o ornamental posto em ação. O ornamental se expressa como substantivo e no poder de exercer funções, como potência. A ornamentalidade expressa propriamente qualidade, porta-se como um advérbio, que modula o caráter de um elemento ser ornamental, bem como é a própria condição para que a ação ornamental seja exercida.
Conclusão
Portanto, podemos dizer que o ornamento e a ornamentação estão para a forma assim como o ornamental e a ornamentalidade estão para a função. Em outras palavras, todos os quatro conceitos consideram a questão formal, contudo, no ornamental e na ornamentalidade, esclarecidos por Bonne, a forma é ponderada junto com a funcionalidade, com os sentidos.
Segundo Bonne (1999, p. 1014), é devido ao ornamento não ser da ordem dos sentidos, a priori, que pode ter permitido que os padrões fossem copiados e transmitidos entre culturas diferentes. A exclusão, ou suspensão, da ideia direta de signo pode ser percebida de modo mais claro em ornamentos mais abstratos que figurativos, como elementos geométricos. Na figura 01, observemos, por exemplo, uma seleção de padrões de ornamentos celtas e mouriscos, compilados por Owen Jones. Estes ornamentos utilizam linhas curvilíneas entrelaçadas, linhas que se misturam e passam umas por dentro das outras até criarem uma forma específica, um entrelaço. Esse tipo de ornamento é encontrado também em outras culturas, como nas produções carolíngias.
Apesar da conceituação do ornamento parecer isolá-lo como um objeto, segundo Bonne, “Um ornamento não é uma entidade positiva que podemos isolar para considerá-la nela mesma”.[18] Talvez tenha sido esse o grande ponto de cisão entre as correntes formais e funcionais do ornamento. Os ornamentos mostrados no catálogo não funcionam de modo ornamental, não como possivelmente funcionariam a trabalhar em uma imagem.
Usar como método de pesquisa o estudo das raízes etimológicas e as variantes de nominais e verbais de um conceito como o de ornamento, nos auxilia para compreender a complexidade própria de um elemento que possui uma história própria, como propõe Aloïs Riegl, mas que se mantém também dentro da História da Arte. Não é do interesse teórico que esta história própria seja autônoma como disciplina, mas que ela se enriqueça na análise de objetos históricos.
Vimos que, assim como Grabar, Jean-Claude Bonne faz a distinção entre uma acepção formal e outra funcional, para compreender de que modo um motivo de ornamentação pode ser pensado como elemento decorativo, em sua forma, mas com suas valorações sociais. Ao nos questionarmos sobre as diferenciações entre os utensílios domésticos diários em um jantar de um utensílio exclusivamente utilizado no Natal, buscamos encontrar um exemplo que guardasse a mesma complexidade que uma imagem em que o ornamento é inerente à sua estrutura, e não aderente. Todos os elementos que compõe a mesa da ceia de Natal, até mesmo aqueles que visualmente não estão presentes, fazem parte do contexto da imagem que criamos, seja a questão ritual, social, religiosa ou mesmo a singela presença da cristaleira vazia, que se anuncia como a guardiã de um tesouro, que guarda decus e decor para a ocasião. Qualquer elemento que fosse subtraído desta composição certamente alteraria o modo como encaramos a mesa posta. Assim, por que não perceberíamos o prejuízo causado pela retirada de um “simples” ornamento?
Referências
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Notas
[2] Vale aqui a ressalva feita por Grabar (2010) de que o ornamento não pode ser um elemento de datação automática de um objeto-suporte ou arquitetura, visto que seu desenvolvimento ocorre de modo desconexo do suporte, se difere da história do monumento a que se adere.
[3] Não ultrapassamos teorias, a História das imagens não é evolutiva, nem uma corrida. Todo o material considerado tradicional o é por ser base para outros pensamentos.
[4] O livro de Gilberto Paim, A beleza sob suspeita, traz diferentes significações atribuídas ao ornamento em autores da modernidade e abre a discussão da ornamentação para um âmbito da vivência, correlacionada ao contexto em que é empregado, como na sua relação com a produção industrial.
[5] Adolf Loos fala de uma diferença de sensibilidade do homem moderno em comparação a outras épocas: “Nossa sensibilidade é mais delicada que a dos homens Renascentistas […] Mais delicada ainda do que aquela da era rococó, quando se tomava a sopa sobre um fundo de cebolas azuis que lhe dava uma desagradável cor cinza esverdeada. Nós preferimos comer sobre um fundo branco.” (PAIM, 2010, p. 62).
[6] Segundo os adeptos da teoria técnico-materalista, como Gottfried Semper, os primeiros padrões ornamentais teriam surgido espontaneamente de técnicas e materiais utilizados na tecelagem. O primeiro padrão teria, portanto, sido observado, e não inventado, no padrão da tecelagem que depois passaria a ser reproduzido em outros materiais. Riegl, pautado no impulso criativo para a formação de novos padrões, isto é, um novo padrão derivado de outro padrão, critica a teoria técnico-materialista a partir da existência de padrões ornamentais em culturas que não conheciam a técnica de tecelagem, como os Maori. (PAIM, 2010).
[7] Questão de estilo é vista como conjunto de características formais que distinguem e qualificam um objeto segundo o modo e a época em que foi produzido. (RIEGL, 1980)
[8] Henri Van de Velde, em seu livro “Fórmulas da beleza arquitetônica moderna”, faz uma interessante descrição de uma sopeira de Meissen, ao tratar de seu método para identificar ornamentos teatrais ou supérfluos. Ele a descreve como um grande monumento, com uma vasta cúpula, figuras (golfinhos, cisnes, guirlandas de flores e frutas, sereias, etc.), uma encenação apoteótica, para no fim acrescentar: “[…] Anfitrite e Amor viajam nas costas de um golfinho vermelho e gigante que sopra pelo nariz dois jatos de uma massa verde tão espessa que não pode haver dúvida de que essa sopeira está até a borda de sopa de repolho!”. (PAIM, 2000, p. 82).
[9] Foi na busca de um projeto ao mesmo tempo funcional e expressivo que Louis Sullivan contribuiu para a teoria do ornamento. A partir da observação das transformações sofridas pelas formas naturais, das formas que surgem de outras formas, Sullivan lançou sua máxima, que depois seria tão repetida: “A forma segue a função”. Frase que parece, hoje, significar simplesmente que a boa forma se adequa à função objetivamente. Esquece-se que, na verdade, Sullivan falava sobre “A interrelação entre função e forma não tem começo nem fim. Ela é incrivelmente pequena e incomensuravelmente vasta, inescrutavelmente móvel, infinitamente serena, intimamente complexa – e simples, até.” (SULLIVAN, 1968, p. 43). Ou seja, a mutabilidade constante da forma e da função faz com que não haja uma forma definida para determinada função.
[10] ARNALDI, Francesco et al. Ornamentum In: _______. Novum Glossarium Mediae Latinitatis. Copenhague: Munksgaard, fascículo Ordior-Oz, 1983-2011. Disponível em: <http://scriptores.pl/ngml/view?docId=Ordior-Oz/Ordior-Oz.xml>. Acesso em: 15 jun. 2014.
[11] idem.
[12] idem.
[13] Antes da época carolíngia, havia uma distinção entre os objetos que serviam ao culto, chamados de ministeria, e aqueles que ornavam as celebrações, os ornamenta, como as pinturas, esculturas, relicários, mobiliário litúrgico. Posteriormente, essa distinção tornou-se mais tênue, sendo nomeados como ornamenta ecclesiae, em que o uso no plural sublinha o valor que se adere a sua acumulação.
[14]idem. Também em BONNE, Jean-Claude. Les ornements de l’histoire (à propos de l’ivoire carolingien de Saint Remi). Annales Histoire, Sciences Sociales, 51ᵉ année, n. 1, p. 37-70, jan/fév. 1996, p. 45. Disponível em: <www.persee.fr/doc/ahess_0395-2649_1996_num_51_1_410833>. Acesso em: 10 fev. 2020
[15] Disponível em: <http://scriptores.pl/ngml/view?docId=Ordior-Oz/Ordior-Oz.xml>. Acesso em: 10 jan. 2016.
[16] Como a palavra Kosmos é fonte geracional da palavra ornamentum, ambas possuem significações semelhantes. Sobre a análise etimológica de kosmos como forma de organização militar, ver (HAEBLER, 1967).
[17] Gros traça uma noção da ideia de ornamento e suas declinações através dos usos da palavra ornamentum e suas variações etimológicas nos escritos de Vitrúvio e Alberti. O autor mostra como o ornamento possui um importante papel estrutural nas construções arquitetônicas a partir do confrontamento entre as concepções vitruvianas e de Alberti, este que dá ao ornamento um caráter maior de exterioridade.
[18] BONNE, Jean-Claude. Repenser l’ornement, repenser l’art médiéval. In: Le rôle de l’ornement dans la peinture murale du Moyen Âge. Actes du Colloque International, Saint-Lizier, 1-4 juin 1995. Poitiers: Université de Poitiers, 1997, p. 218.
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