Texto de Fabiana Pedroni
Abracei bem forte um pato, para ter certeza do meu lugar.
Quando ouço as maritacas cantando no entardecer, na disputa por um cantinho na árvore para uma longa noite de sono, fico inquieta. Não por causa do barulho estridente do canto, das brigas de casais, mas, porque eu não posso abraçá-las. Aves que voam e ficam longe do colo parecem gritar algo como:
— Esqueça, você está na cidade!!
Sim, eu estou na cidade. Por isso, o abraço no pato foi tão demorado. Ele certamente desconfiou de que algo estava errado. E está. Não sei qual foi o dia em que parei de me conectar de modo natural com os animais. Não sei quando foi que comecei a ter medo de cachorros sem coleira, ou estranhar uma vaca pastando, quietinha, por baixo da cerca. Essa grama do outro lado, tão mais gostosa…
Não sei quando foi que virei bicho de cidade. Quando foi que eu passei a ter agonia de encostar em besouros? Eles ainda precisam de um empurrãozinho para virar de barriga pra baixo!
Tudo isso eu pensei enquanto abraçava o pato.
Mas, não é de patos que essa história conta. Essa história fala de pássaros, que voam, cantam, que partem e que voltam. O pássaro é elemento simbólico que brinca com a ideia de liberdade.
Escolhi quatro pássaros para que vocês entendam por que eu precisei abraçar o pato assim que o vi, naquele quintal.

Capa do livro “Os pássaros”. de Germano Zullo, com ilustrações de Albertine (Editora 34, 2013).
O primeiro não sabia voar. Ele estava em um caminhão, que parou na frente de um precipício. O motorista abriu a carroceria e os pássaros voaram, menos um. Ele estava quietinho, lá no fundo. Tímido, talvez? O homem o acolheu, deu instruções de como voar, sacodiu os braços, registrou movimentos. Depois de compartilhar um lanche, ele estava pronto. Levantou voo e foi embora. O caminhoneiro também, entrou em seu veículo e seguiu viagem.
O pássaro, que havia partido, voltou com seu bando, atrás do caminhão! Assim, o homem e os pássaros seguiram viagem, voando, juntos.
Às vezes se parte, mas também se retorna para levar consigo aquilo que é importante, aquilo que mais prezamos. Esse pássaro, que aprendeu a voar com um humano, é a história contada no livro “Os pássaros”, dos suíços Germano Zullo e Albertine.
O livro possui um texto inicial, escrito por Germano, em página dupla e fundo branco. Ele fala sobre um pequeno, minúsculo detalhe, que diferencia um dia de outros iguais. “Um único desses detalhes é suficiente para enriquecer o instante que passa. Um único desses detalhes é suficiente para mudar o mundo.” Nas páginas seguintes, temos uma narrativa puramente visual, que conta a história que narrei acima.
As ilustrações de Albertine nos fazem pensar naquele detalhe de um acolhimento, de um voltar-se para o outro. Isso nos toca, sensivelmente, sobre a ideia de mudança. Quantas vezes custamos a sair do lugar e, quando saímos, queremos nos reconectar com este lugar de origem, com um aprendizado antigo? O quanto precisamos ser acolhidos nos nossos voos?
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No final do livro, uma surpresa, a qual eu não queria contar, mas, possivelmente já podem imaginar: o caminhoneiro voa pelos céus e carrega o amigo pássaro na cabeça!
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Um encontro significa que todos são marcados. Um aprendizado de voo pode ser ensinado, mas aquele que ensina, também aprenderá! 🐦
O segundo pássaro também fala sobre acolhimento, amizade, partidas e retorno. No livro “O leão e o pássaro”, de Marianne Dubuc, traduzido por Ana Caperuto, o pássaro sabia voar, mas não podia. Seu bando partiu, mas ele não, porque estava com a asa machucada. O leão cuidou do ferimento, o acolheu.

Capa do livro “O leão e o pássaro”, de Marianne Dubuc, com tradução de Ana Caperuto (Editora Positivo, 2014).
O que significa acolher? Os dois partilham a rotina da casa, pescam, brincam na neve. Nos detalhes do dia a dia, estão juntos e quentes. “Mas, a dois, o frio não é tão ruim assim”.
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Com a primavera, vem a partida. “Sim, eu sei”, diz o leão. O leão sabe que é preciso seguir. Ele sente saudades, ele espera e pergunta “E você?”. Quando o inverno se aproxima, retorna o pássaro, para o quentinho do lar à dois. “Juntos, não sentiremos frio este inverno.”
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Neste inverno, neste momento, no agora, no dia a dia do presente.
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O Pássaro, como na narrativa anterior, é aquele que parte, mas que também retorna. É o pássaro, com o cantar e o símbolo da liberdade, que voa para onde é preciso voar.
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O branco que toma as páginas de ausência do Pássaro é aquele que inunda de neve o afeto no inverno.
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Marianne Dubuc consegue mostrar, pelo texto e pelas delicadas ilustrações, que a expectativa de retorno não deve nos afundar. O afeto mantém o outro perto, mesmo quando longe. E se é para estar junto, que se esteja junto no presente.
O terceiro pássaro é um pássaro mulher. Uma menina que recebe nome de pássaro e voa, quando adulta, para longe do convívio do seu povo. Esta é a história do livro “Criaturas Ñanderu”, da escritora indígena potiguara Graça Graúna, com ilustrações de José Carlos Lollo.

Capa do livro “Criaturas de Ñanderu”, de Graça Graúna, com ilustrações de José Carlos Lollo (Editora Amarilys, 2010).
Ao enfrentar a experiência diaspórica, de deslocar-se para o centro urbano, a protagonista se percebe em situações nas quais busca reforçar a sua indianidade.1
A relação do corpo com a terra, com a ave, a teia, as ações, tudo neste livro remete à partida e retornos para si.
Um trechinho do livro:
“Filha, de hoje em diante você terá nome de pássaro. Levará um tempo para se acostumar com a ideia, mas não tenha medo, pois o Grande Espírito lhe guiará porque é também sua missão proteger com o seu canto e as suas asas os nossos parentes, a nossa tradição, a nossa ciência e a nossa terra, como quer a sábia natureza”.
O pássaro canta as origens e a tradição também em “O pássaro encantado”, de Eliane Potiguara e ilustrações de Aline Abreu. Neste livro, a figura do pássaro aparece por mediação da avó, aquela que traz dentro de si a história.
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Essa é uma história das mais sensíveis que já li sobre o encontro com a morte. A escrita consegue passar pela incompreensão da morte (por parte das crianças), pela necessidade de retidão e reflexão (do povo da aldeia) e dos prantos e busca de conforto pela memória (da Grande Avó que perdeu o Grande Avô).
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É a figura do pássaro ancestral, aquele que sai do tronco de uma antiga árvore, que trará o acalento pelo cantar do passado.
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A avó ensina: “Por isso, crianças, vocês não devem se assustar com o canto do pássaro que chega de longe. De tempo em tempo, ele aparece para trazer aprendizado e alegria para vocês. É a ancestralidade do nosso povo, a nossa memória, os nossos costumes. Agora, vão brincar!”

Capa do livro “O pássaro encantado”, de Eliane Potiguara, com ilustrações de Aline Abreu (Editora Jujuba, 2014).
A narrativa visual, em harmonia com a verbal, é de uma riqueza impressionante. Há uma materialidade da imagem que encontramos em trabalhos atuais de Aline Abreu, principalmente do gesto no risco em profundidade. Há algo de encanto, de magia, em cada cor que é atravessada por outra.
O pássaro é aquele que canta para a aldeia sobre as origens, é aquele também que preenche, com suas várias cores, as páginas do livro e a capa.
Cada detalhe, presente nesses quatro pássaros, fala do desejo de seguir viagem, sem abandonar suas origens. Você pode levá-las consigo pelos ares ou pode visitá-las periodicamente de forma mais intensa.
A liberdade nas asas dos pássaros vem acompanhada de uma responsabilidade e de um autoconhecimento daquilo que os constrói. Não se parte, de verdade. Não se abandona o lar. Esses pássaros, assim como nós, carregam o lar dentro de cada detalhe do dia a dia.
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