[texto de processo] Sistema das artes e africanidades

Antônio Manuel Pinto Coelho. Cabeça de Homem. Artista negro.

Antônio Manuel Pinto Coelho. Cabeça de Homem. Óleo sobre tela, 1891, 54x39cm, Niterói.

Texto de Rodrigo Hipólito

Há alguns anos respondi à pergunta de um aluno num longo e-mail. A seguir, vou reproduzir essa resposta. Não vou indicar qual foi a pergunta do aluno. Acredito que seja interessante pensar nas possíveis perguntas que gerariam essa resposta, pois são muitas possibilidades.

A resposta é um pouco triste, mas guarda alguma energia. Fico um pouco espantado quando leio que o risco do retrocesso desumano já nos assolava quando escrevi essas palavras. De lá pra cá, continuo a tentar me aproximar mais de história da arte não hegemônicas. Reler essa resposta é ótimo lembrete sobre esse caminho, sobre essa escolha.

***

Boa tarde, 

Já me desculpo por, provavelmente, não ter lhe enviado a resposta a tempo. Como sempre, as obrigações se encadeiam e, quando menos notamos, o ano já virou. Ainda assim, decidi escrever algumas das ideias que me passaram pela cabeça.

Quando li sua pergunta, uma série de fios soltos surgiram como possível resposta. De fato, por fazer uso de um episódio exemplar para discutir a profundidade do racismo no desenvolvimento histórico da sociedade brasileira, sua pergunta abre margem para compreender o problema da invisibilidade dos artistas negros por diversos prismas. Essa questão talvez se mostrasse menos urgente em um caminho para ser solucionada positivamente há alguns anos.

Infelizmente, hoje, é possível perceber um avanço estridente do tipo de premissa que se esconde sob as generalizações daquele ex-professor universitário. Algo pouco comentado dentro da própria academia e não tão difícil de se encontrar fora dela é a defesa, velada ou não, de que negros seriam intelectualmente inferiores ou “biologicamente menos desenvolvidos”. É estranho imaginar que o século XXI se iniciaria com uma alavancada de discursos pseudocientíficos, mas isso em muito se dá pela academia haver menosprezado o poder de uma grande massa de pessoas com pouco ou nenhum acesso à uma educação libertadora.

Voltamos a perceber a necessidade de um ensino humanista, que não desenvolva apenas a tecnologia e as ciências duras, mas permita que possamos tomar as melhores decisões sobre o que fazer com os avanços tecnológicos e científicos. Sem o conhecimento desenvolvido pelas Humanidades, no que se inclui as Artes, é provável que voltemos a usar a ciência para a destruição da própria humanidade.

São problemas que, numa primeira olhada, parecem desconectados. Porém, o discurso pseudocientífico é um dos grandes responsáveis por mantermos a estrutura de uma sociedade misógina e racista. Com alguns centímetros de margem, o pensamento racista apresenta as ideias que permanecem na sociedade desde que algumas cabeças ditas iluministas e iluminadas deram justificativas “científicas” para que negros não fossem considerados plenamente humanos, ainda nos séculos XVII e XVIII. Quaisquer afirmações que permitissem a absolvição dos escravocratas diante de deus e do mundo sempre foram abraçadas de imediato. Esse ainda é o mecanismo que gere ações racistas, misóginas e classicistas. O sujeito procura por um conjunto de sujeitos dispostos a afirmar em uníssono o absurdo que possa deixá-los confortáveis com suas ações. Caso esse absurdo varra um problema para debaixo do tapete, causará ainda mais regozijo e será mais ardentemente defendido.

Um dos maiores problemas da sociedade brasileira é a impossibilidade de absolver a população herdeira dos escravocratas frente ao fato de que a população herdeira dos escravos raptados de nações africanas continua a sofrer por gerações, sem ressarcimento. Esse não é um problema simples de resolver e, por isso, os maiores interessados em esquecê-lo estão dispostos a promover o extermínio da juventude negra, o aprisionamento da população periférica e favelada e mesmo o retorno a escravidão legalizada. A dificuldade de resolver esse problema e a disposição para encobri-lo estão presentes em todos os sistemas que compõem a sociedade brasileira, incluso nas Artes. Se, no caso amplo da academia, o discurso racista tenta evitar que negros tomem posições de poder e promovam o esclarecimento sobre a dívida histórica, que poderia culminar numa redistribuição das riquezas do país, no Sistema das Artes esse discurso é ainda mais amedrontado.

Rosana Paulino. Coração. Artista negra.

Rosana Paulino. Coração, Sem título. Técnica mista, 2013.

Aceitar a presença de artistas negros, temáticas negras e a ocupação de posições de poder por negros provenientes de camadas financeiramente desfavorecidas da sociedade poderia significar uma profunda reformulação no fluxo de sentidos e capitais simbólicos do Sistema das Artes. Penso que a invisibilidade de artistas negros na História da Arte se relaciona diretamente com “quem” escreveu e escreve essa história, mas esse “quem” não é tão simples.

A História da Arte continua a ser escrita por sujeitos que adquirem poder de fala na aceitação ou concordância de propostas que tentam desesperadamente manter um “estado das coisas”, no qual a Europa branca continue e ser o berço do pensamento racional e o Sul geopolítico o grande emaranhado de fronteiras com povos primitivos. Mesmo os intelectuais que se formaram no Brasil, em décadas, em sua grande maioria, o fizeram com pesquisas que sequer redigiam uma nota de fim na reafirmação da ótica europeia sobre a visão dos outros povos.

Para compreender esse “quem”, devemos considerar desde as grades curriculares atuais das graduações em Humanidades até as suas origens, as exigências feitas pelas fontes de capital que sustentam mostras, feiras e leilões de arte. Além disso, e talvez de maior importância, devemos pensar a necessidade ou não de manter um sistema baseado na aquisição particular e na produção de objetos e ideias que mais sirvam aos interesses dos herdeiros dos escravocratas que à libertação dos povos negros. Enquanto uma sociedade construída para servir a outro mundo se esforçar tanto para conservar suas tradições, dificilmente conseguirá se reconhecer quando positivamente representada.

Sei que é uma resposta um pouco longa e que talvez não sirva mais para o propósito da pergunta. De todo o modo, não poderia deixar de responder à questão. Ainda sobraram pontos que penso que devem entrar nessa discussão, como o tratamento dispensado para a Arte Sacra a partir da abertura da Academia de Belas Artes, durante a colonização institucional do século XIX, a romantização de negros e indígenas nos últimos suspiros do neoclassicismo, a mitificação dos modernistas brasileiros, provenientes da aristocracia e construtores de estereótipos úteis para o estado de espírito nacionalista dos anos 1920-30, a abertura de nossos museus e grandes eventos com capital do Norte e na obediência de suas exigências, a absorção involuntária de um discurso de “exportação da arte brasileira”, o distanciamento do olhar e das vozes populares durante a solidificação das universidades no país, a priorização do trabalho produtivista e do frio crescimento econômico no lugar da consciente aplicação de ganhos para a vivência e o aprofundamento culturais e por aí vai.

Já me estendi muito. Talvez eu continue a desenvolver esse comentário para deixar público noutro momento.

Apenas espero que tenhamos oportunidade de construir mais sobre esse tema.

Forte abraço!

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