
Imagem de capa. Página do livro “Os Pássaros”, de Germano Zullo, com ilustrações de Albertine (Editora 34, 2013). Ilustração, fundo azul claro como céu, caminhão sobre um morro de terra amarelo escuro no canto esquerdo inferior, diversos tipos de pássaros, de tamanhos e cores diferentes, voam da esquerda para a direita, em primeiro plano.
Transcrição do podcast Não Pod Chorar 23.
Texto de Fabiana Pedroni.
Mal abro o portão e os cachorros já latem doidos pra traçar o caminho. [latido alto que se distancia] Como se eles soubessem pra onde estão indo. Antes eu os deixava em casa, mas, eles gostam tanto de passear no meio do mato, que agora eu os carrego junto. Só fico bem esperta para eles não tentarem pegar nenhum tatu ou se meterem num mato longe, que possa ter cobra. Imagina se entram numa toca e não conseguem mais voltar? Ah, que bom que choveu, o mato está tão verdinho. Agora tenho que rir um pouco, porque mato nem sempre é uma coisa que a gente queira saudável na roça. Na maioria das vezes ele sufoca plantações ou fecha caminho. Mas, antes verdinho e alto do que amarelo naquela secura que foi o último ano.
Vem Chewie, num é por aí não! [latido] Aqui, Chi chi, a primeira mudinha! Nossa, ela amou a chuva. Vou só tirar uns matinhos em volta do pé, pode ir dar uma volta, mas não vai longe. [latido]. Até parece que ele vai longe, dá uns passos e já olha me vigiando. Bicho medroso. mas, tá certo, a gente nunca sabe o que esperar na roça. Pronto, primeira muda limpinha. Estava com medo dela ter morrido porque não pude vir vê-la no último mês. Tava com muito trabalho. Alá a outra muda. [latido e se distancia]. Tadinha, essa tá mais queimadinha, mas tá viva, então tá bom. [latidos, muitos latidos] Que Chewie? [passos] Que porra é essa? Não era pra gente conseguir ver o outro morro daqui. Que clareira é essa? Vou ver mais de perto. Não, não.. não acredito.. pra quê, mano, pra que faz uma merda dessas? O vizinho cortou umas árvores do terreno dele e fez um poço! Um açude, na verdade, desses de represa. A água que dividimos já é tão pouca e frágil, como que o cara me faz um açude! vai secar tudo! Um açude perto de nascente, que isso. E eu aqui plantando árvores apropriadas pra fazer a nascente aumentar. Fala sério. Mas deve ser por isso que ele plantou umas árvores de madeira de lei, daquelas que demoram décadas pra cortar. Quando secar toda a água e não puder mais plantar flor nem verdura, vai deixar só as árvores aí pra voltar um dia e cortar. Pior que soube que quando tentaram fazer uma denúncia sobre uso de água, aconteceu um incêndio acidental no terreno de quem denunciou. Eu.. Vem Chewie, eu vou ver como estão as outras mudas e voltar logo pra casa.
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Maaae, cê tá queimando alguma coisa? Pera, ah, não.. não.. olha essa fumaceira! tá vindo dos morros de lá de trás de casa. Eles colocaram fogo no pasto de novo. Não sei pra que colocar fogo pra preparar a terra pra plantar. Chega essa época do ano e é sempre a mesma coisa. A maioria já parou de fazer isso porque entendeu que é ruim, mas, sempre tem um que não acredita e insiste. Sabe que quando eu era criança, meus pais fizeram um aceiro enorme no morro aqui atrás, quando chegou nessa época de queimadas. Nunca vi aceiro mais grande, ele pediu pra passar um trator. Foi bem caro. E qual não foi a surpresa de que nosso terreno pegou fogo e fomos denunciados. Sim, você faz um aceiro para se proteger dos vizinhos e ai seu terreno pega fogo, você consegue controlar, apaga e ainda tentam te incriminar. Tivemos que buscar um fiscal na capital, porque os de perto, neh… tudo parente. O fiscal ficou de cara, porque a alegação era de que a gente tinha feito o aceiro depois de por fogo. Teríamos colocado fogo no nosso terreno e passou pro do vizinho. Só que, neh, o fiscal viu que havia cinzas sobre o aceiro, ou seja, ele foi feito antes. E, não tinha como o fogo ter passado nem de um lado nem pro outro, e que o vizinho possivelmente colocou fogo no terreno e depois no nosso, pra haver uma denúncia e ainda nos incriminar. Resultado, uma multa pelo vizinho ter posto fogo no terreno dele.
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Aqui na roça tinha uma cooperativa muito legal de polpa de morango. Eles pegavam os morangos menorzinhos e mais docinhos dos produtores e beneficiavam em polpa. Era uma super estrutura. Eu adorava ir lá, porque era uma fábrica e eu nunca tinha visto fábricas de perto. Eu era um cisco de gente, mas dava um jeito de carregar as caixas de morango e descarregar o caminhão pra poder ir junto. Tinha umas esteiras, umas coisas que andavam sozinhas. Era muito legal! Mas hoje ela tá fechada. Um cara de uma família tradicional da região abriu uma fábrica de polpa bem perto. Pagava um pouquinho mais caro pela caixa. Muitos começaram a vender pra ele e a cooperativa quebrou. Sem concorrência, o cara passou a pagar uma mixaria pela caixa de morango. Ficou ricaço. E nessa a associação de produtores também quebrou. Selo de produção segura.. hahah aiai…
Mas é isso, vou parar com os causos por aqui. Imagino que vocês já tenham entendido onde quero chegar. Fugir da cidade cruel e ir pra roça bucólica e maravilhosa é uma linda ilusão. Crimes ambientais, corrupção, racismo, violência doméstica, violência contra homossexuais, exploração de trabalho infantil, violência contra idosos, violência contra crianças… a lista é bem extensa para dizer que não é porque o ser humano está cercado de matos fofinhos que ele se torna fofinho.
Quando vim morar na cidade, eu ouvia muito isso “quero ir morar na roça, lá é tão tranquilo”. No começo eu ria e lembrava dos causos de um lá que baleou o outro por causa de um açude, não porque estavam afim de proteger a natureza, mas porque desviou água e água é preciosa no sistema de exploração da terra. Sem contar as tantas vezes que vimos uma pobreza que não conseguíamos solucionar. Quanto mais idealizávamos um lugar melhor, mais a gente afundava na realidade. Ciganos eram ladrões, a velhinha da casa de barro era macumbeira e matava a plantação quando jogava mal olhado, era homem que se casava com mulher que pega no laço…tanta coisa que eu ouvia quando criança que hoje sei que são crimes horrorosos. E não eram crimes dos ciganos ou das pessoas negras com religiosidade de matriz africana, esse eram as vítimas, e eu não tinha ideia. Pode ser que uma ou outra galinha fosse roubada, mas pode ser também que essa uma galinha roubada seria o primeiro almoço de dias de uma família com oito crianças.
Ah, Fabiana, mas trabalhar na roça é tranquilo. Dar aula que é uma loucura, vá numa reunião de professores pra ver o inferno que é uma que poderia ser um email, mas tem que reunir pra juntar frustrações neh. Não, pior que isso só o ambiente corporativo, é um querendo passar a perna no outro. Ninguém fica muitos anos na mesma empresa, porque senão dá ou suicídio ou assassinato. Aiai, pior mesmo é ser médico. Todos juram que você é um grande privilegiado, mas aí o sistema te tira até a equipe que paramenta a sala de cirurgia! Daí você tem que ajeitar tudo antes da cirurgia, quando o paciente chega, você já está cansado. Pior que isso, só relacionamentos amorosos. Você está ali junto há anos numa parceria e descobre que tem uma bactéria vaginal incomum que só tem em cadáveres.. é, aí você descobre que seu marido fiel praticava necrofilia. Poderia, novamente, dar muitos e muitos exemplos, até ficarmos todos mais deprimidos. Mas, acho que depois do rumo político bizarro que o Brasil tomou, depois da pandemia, massacre de indígenas, queimadas por todo lado, não tenho muito mais a dizer que seja surpresa para a ilusão romântica que criamos sobre a vida.
Não sei vocês, mas fui educada num berço de ideologia e expectativas com um mundo maravilhoso que não existe nem em 10%. A vida adulta foi um grande tapa na cara. Ainda tento me acostumar com isso, mas, nem sempre é fácil. Saber que há pessoas ruins e cruéis me destrói por dentro. E isso não significa que eu não me inclua na mesma sociedade. Quantas vezes não fui racista, homofóbica e gordofóbica? Quantas vezes, desde essa infância romantizada eu também não coloquei fogo no pasto? Duas vezes. Duas! Quer dizer, mesmo dentro da nossa ideologia preciosa, eu coloquei fogo num pasto. E na minha perna. Bateu um vento e a sacola que tava pegando fogo grudou em mim. Viver é uma coisa muito bizarra. Não dá pra romantizar nada, nem o romantismo.
Mas este é um Não Pod Chorar e, com todos esses resmungos, me pergunto como não perder o encantamento?
Quando comecei a me aproximar de livros infantis não imaginei a proporção que eles ganharia no meu entendimento de mundo. Parece clichê dizer que as crianças são nossa esperança, mas, é isso. Alguns livros infantis me deram essa força para não perder o encanto com o mundo. Uma árvore que pode estar cortada, brota com ainda mais força. Uma gota azul que cai do céu, vira piscina de pássaros, vira mar, vira abundância e inunda toda a página.
Indicações:
DIPACHO Apesar de tudo. Ilustrações de Dipacho. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2018.
MOREYRA, Carolina Lá e aqui. Ilustrações de Odilon Moraes. Rio de Janeiro: Pequena Zahar, 2015.
CASTANHA, Marilda Sem fim. Ilustrações de Marilda Castanha. Curitiba: Positivo, 2016.
DUBUC, Marianne O leão e o pássaro. Ilustrações de Marianne Dubuc. Curitiba: Aprende Brasil, 2019.
POTIGUARA, Eliane O pássaro encantado. Ilustrações de Aline Abreu. São Paulo: Jujuba, 2014.
ZULLO, Germano Os pássaros. São Paulo: Editoria 34, 2013.
BARNET, Mac Sam & Dave cavaram um buraco. Ilustrações de Jon Klassen. São Paulo: Salamandra, 2015.
LEE, Suzy. Onda. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
LEE, Suzy. Espelho. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
LEE, Suzy. Sombra. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
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