
Imagem de capa. Robert Rauschenberg, “Sem título (elemento escultural)”. Junção de aço e pedra. 1953. Pequeno círculo de metal com uma pedra arredondada encrustada, ligada a uma haste de metal torta, dobrada para cima, que termina em um parafuso. Todos os elementos de metal estão enferrujados.
Texto de Rodrigo Hipólito
Havia um pingo escuro no chão da cozinha. Pensei que era uma gota de café, mas estava próximo da área de serviço. Não tomamos café na área de serviço, ao menos aqui em casa.
Desde que iniciamos o distanciamento social, borrifamos água com cloro em boa parte dos objetos que chegam da rua. Isso inclui as sacolas reutilizáveis que usamos para fazer compras. Dentre essas sacolas, uma tinha alças reforçadas com arame.
No mesmo dia em que encontrei o pingo escuro. Aquela sacola se rompeu na volta do mercado. Entendi o que era a gota de sujeira no chão da cozinha.
Fiquei parado e tentei me lembrar da palavra para o que havia acontecido com o arame da sacola. O metal tinha oxidado, era óbvio. Mas, a palavra mais comum para isso não me vinha à mente.
Só consegui me lembrar de zinabre.
É engraçado como formamos nosso vocabulário. A palavra zinabre significa a camada verde de oxidação em peças de cobre. É realmente uma palavra específica e que tem suas variações, como azinhavre e azebre. Mas, meu pai dizia zinabre para todo o tipo de ferrugem.
Eis a palavra típica! Ferrugem. O arame das alças da sacola havia enferrujado.
Já me habituei a esse embate com as palavras. Quando me mudei de vez para a capital e durante a faculdade, era comum que as pessoas se incomodassem e me acusassem de “falar difícil”.
Acredito que esse é um problema comum de adaptação para pessoas da minha idade que cresceram num certo tipo de interior (atenção para o fato de não existir apenas uma experiência interiorana nesse inferno de país gigante!). Mas, de imediato, eu pensei na palavra zinabre por outros motivos.
Não basta dizer que eu vim do interior. Outras pessoas que tenham nascido na mesma cidade em que eu nasci e vivido no mesmo tempo em que eu vivi, podem nunca ter ouvido essa palavra.
Eu herdei o zinabre do vocabulário de meu pai.
Além de ter sido criado fora do ambiente urbano, ele era mais velho do que os pais dos meus colegas de geração. Meus pais são em torno de 15 a 20 anos mais velhos do que a maioria dos pais das pessoas da minha idade. Essa não é uma experiência incomum e é necessário juntar essa camada com outras, quando penso na formação do meu vocabulário. Aquele interior, naquela época, com aquela família, naquela situação.
Em muitas das casas em que morávamos, havia objetos velhos, acumulados nos fundos do quintal, sobre as vigas do teto, embaixo do tanque de lavar roupas, nos cantos das varandas ou escondidos em uma valise. Os móveis e utensílios domésticos tinham passado por muitas mãos e germinado o zinabre do tempo.
Brincar pelo quintal, sobre a montanha de peças quebradas de uma pequena oficina mecânica, atravessar cercas de arame farpado que estavam lá antes de eu existir, desentortar pregos resgatados de móveis quebrados, carregar areia no carrinho-de-mão com a caçamba rachada, carregar o carrinho-de-mão na mudança. Tudo envolvia o maldito zinabre e o medo do tétano.
Essa volta toda é para dizer que vocabulários não são apenas regionais. As palavras que formam o seu mundo dependem das experiências que você tem com os outros mundos. E isso é desde muito cedo.
Isso significa que, apesar do vasto acervo de palavras e expressões que nós acumulamos durante a vida, algumas são mais significativas. Esse grupo de palavras protagonistas ainda é bem grande e pode variar com as trocas de ambientes. Elas acontecem, por mais ranzinza e maniento que você seja!
Quando pego textos que escrevi anos atrás, percebo que deixei de usar diversas palavras. Se eu tentar me lembrar dos motivos pelos quais utilizava essa ou aquela palavra que, hoje, me é estranha, encontrarei as influências. Nem sempre isso é interessante. Algumas vezes, eu prefiro nem fazer ideia de onde veio uma expressão abandonada e esquecida.
Eu termino este texto com uma proposta de exercício quotidiano.
Demorei para compreender os motivos pelos quais muitas pessoas se incomodam quando precisam conversar com alguém com vocabulário diverso do delas. Dois desses motivos são bem comuns:
– acreditar que a pessoa fala errado, pois a considera inferior;
– acreditar que a pessoa fala difícil, pois se considera inferior.
O exercício é simples, basta evitar essa postura.
Somente é possível executar esse exercício em conversa com outras pessoas. Quanto mais distantes os contextos, melhor. Talvez você pense que a ideia seja reparar nas palavras que você não conhece e tentar não se incomodar com isso. Não. A ideia é o contrário.
Tente reparar nas palavras que você usa e que não pertencem ao vocabulário de quem conversa com você. Essa não apenas é uma maneira de se conhecer e dar atenção para o modo como você se comunica. Através da sua estranheza, refletida pelo outro, pode ser que você conheça melhor o mundo que você construiu.
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