
Imagem de capa. América Invertida, Joaquín Torres García, 1943. Caneta sobre papel. Museo Juan Manuel Blanes, Montevideo. Desenho simples do mapa da América Latina, com seu contorno em preto sobre fundo branco, na posição contrária a que comumente aprece no mapa mundi, com o Sul no lugar do Norte. Um desenho de sol à esquerda, estrelas, peixe e ondas do mar à direita.
Texto de Rodrigo Hipólito
Ano passado, li o Manifesto anti-futurista indígena e isso me fez repensar uma série de máximas e regras não ditas sobre a escrita criativa e a escrita de ficção científica de modo específico. Ainda não digeri a maioria desses pontos, mas tenho tentado prestar atenção em alguns enquanto escrevo.
Os modos como imaginamos e desejamos os futuros é um desses pontos. É como que o que concebemos como futuro seja baseado, quase exclusivamente, nos possíveis desenvolvimentos da sociedade pós-industrial, capitalista e imperialista. Isso não significa apenas o futuro tecnológico e que exagera os pontos que observamos na nossa vida urbana e europeizada. Mesmo a concepção de uma distopia ou de um pós-apocalipse, tende a se basear nas consequências do “Império Europeu”.
A desculpa de que “nossa! Mas isso é apenas pensar no que é mais provável” não cola. A ficção é o domínio mais livre para escapar do provável. Se uma pessoa que escreve ficção científica e fantasia não estiver disposta a escapar do provável, isso será, no mínimo, triste.
Tudo é possível ao se imaginar futuros. A explicação para que esses futuros sejam tão comumente construídos com a exclusão de formas de pensar não-europeias é simples: a colonização epistêmica.
Um exemplo dessa colonização, que comentei na resenha de Solaris, de Stanislaw Lem, é a dificuldade de imaginarmos o desenvolvimento e a evolução humana desgarrados do que compreendemos como avanço tecnológico. As tecnologias industriais e pós-industriais dominam o nosso imaginário de modo que a única maneira como concebemos a evolução é através desse termômetro: a sociedade descrita é capaz de explorar e moldar a natureza ao seu bel prazer?
Esse tipo de pensamento aponta para as sociedades que não se desenvolveram no mesmo sentido que a europeia como se fossem primitivas. Sequer chamamos as práticas mais eficientes, aplicadas por povos originários, de tecnologia. Ensinamos, em nossas escolas, que a agricultura de exploração é A agricultura e, assim, ignoramos outros modos de fazer agricultura.
Nesse caminho, nos tornamos incapazes de imaginar inteligência e, por consequência, vida inteligente, fora dos parâmetros iluministas. Em um caminho paralelo a esse, colocamos o ser humano no topo da natureza e estabelecemos um parâmetro para o que concebemos como “humano” que somente pode ser aquele baseado na inteligência tecnológica e exploradora.
Muitas das narrativas mais tradicionais de ficção científica apenas esticam o colonialismo para dentro das possibilidades de futuro. Esse é um mecanismo muito eficiente para nos impedir de quebrar o ciclo de dominação.
Outro ponto, mais delicado, me faz ter receio de errar ao escrever as próximas linhas.
Faz alguns anos que comecei a ouvir a defesa de que todas as pessoas têm direito de consumir os clichês que lhes foram negados. Isso significa algo que deveria ser nítida, mas que é bom ser dito de modo mais didático.
As produções de ficção e de cultura pop construíram, alimentaram e alimentam representações excludentes. Quando você faz parte de um grupo mal representado ou excluído das produções populares, é provável que você tenha consumido filmes, músicas, livros e produtos de cultura pop que pouca ou nenhuma relação têm com o modo como você se percebe no mundo.
Isso se tornou o normal, mas nunca deixou de ser um incômodo. Todos os personagens heroicos eram homens brancos, héteros e de corpo atlético. A maioria dos protagonistas do cinema e da literatura pouco fugiria dessas características.
Isso significa que os jovens não brancos, gordos, deficientes, LGBTQIA+, não estadunidenses e não europeus das últimas seis décadas foram expostos à uma quantidade gigantesca de produtos culturais que os forçou a se identificarem com aquilo que não são. Isso é cruel. Isso ainda é a norma.
Em reação a esse cenário, quando as minorias representativas alcançam o poder de produzir, representar e expor suas narrativas, é comum e justo o desejo de não serem apenas exemplares de como a opressão opera. A presença de uma mulher em uma narrativa não deve ser apenas para expor o machismo. A presença de uma pessoa deficiente em uma narrativa não deve ser apenas para expor o capacitismo. Isso é válido com relação aos demais grupos oprimidos pela norma.
Essa justa requisição pode resultar na defesa de que pessoas fora da norma sejam representadas dentro dos mesmos clichês que sempre significaram sua opressão. É difícil escapar desse desejo. Dizer que se quer realizar o sonho de consumir clichês opressores com pessoas historicamente oprimidas no papel de “normais” soa até libertador.
Isso pode funcionar em alguns casos, mas não deve ser uma máxima.
Há lugares-comuns que são perversos em sua estrutura e inserir personagens até então mal representados no lugar daqueles que estabeleceram a normal não mudará essa perversão. Pelo contrário, pode alimentar uma ilusão ainda mais perversa.
Vou me dar a liberdade de não citar exemplos negativos ou positivos. Afinal, essa é uma reflexão sobre a qual ainda não tenha lá muita segurança. Por enquanto, encerro com a primeira anotação que fiz para esse texto: consuma drogas e conheça as drogas que você consome.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.