
Coisas estranhas no deserto 02. Rodrigo Hipólito. Fotografia e impressão a jato de tinta com intervenção manuscrita, 2014. Imagem em verde e branco desbotada, com silhueta de pessoa à direita, linha do horizonte escura ao fundo e manchas que lembram pedras na área da praia à esquerda, com frases e setas manuscritas em vermelho escuro.
Texto de Rodrigo Hipólito
Outro dia acompanhei uma discussão sobre como cada pessoa “se apaixonou” pela escrita de ficção. A conversa aconteceu a partir de um tipo bem comum de publicação no Twitter. Alguém escreve uma pergunta com pressupostos dos quais a maioria tenderá a discordar e isso gerará engajamento. Sempre funciona.
Nesse caso, a pergunta direta era “quando foi que você se apaixonou pela escrita?”. As repercussões e comentários mais chamativos dividiam-se em dois grupos. O primeiro era composto de respostas piegas e infantis, de pessoas que idealizam o trabalho com a escrita e qualquer outro tipo de arte. O segundo grupo era formado de respostas de pessoas que afirmavam não serem apaixonadas pela escrita, mas terem a necessidade de exercê-la.
Apesar de me identificar mais como o segundo grupo, não posso negar que sou apaixonado. A paixão que tenho pela escrita envolve muita raiva, talvez ódio, frustração, desassossego, inveja, desejo, satisfação e êxtase. Tudo isso vem acompanhado de muito cansaço. Escrever me dá nos nervos.
A maioria das formas de arte que eu produzo ou já produzi tem esse efeito sobre mim. Perco o sono, fico irritadiço, tenho ímpetos violentos contra imagens digitais e bichinhos de pelúcia. Em resumo: não é agradável.
Acontece que eu detesto fazer exercícios. Dizem que quanto mais você se exercita, mais fácil a coisa fica. Isso nunca funcionou comigo. Depois dos trinta, fui obrigado a admitir que o sedentarismo é um caminho burro. Depois de anos, ainda sinto vontade de desistir de tudo quando chega a hora de fazer flexões e agachamentos. A tristeza me invade antes, durante e depois dos exercícios. Detesto fazer exercícios.
Produzir arte é fazer exercícios. Talvez devêssemos falar mais sobre os exercícios da escrita. No meu caso, escrever continua a ser uma atividade cansativa e, quase sempre, desagradável, ainda que haja prazer envolvido. O resultado tem suas compensações, mas, pra mim, ainda é trabalhoso colocar palavra após palavra. Minha escrita nunca flui, nunca vai no automático.
Não escrevo para o meu relaxamento ou como distração. Nem mesmo consigo imaginar como seria dar formas artísticas para ideias e emoções como distração. Queria muito conseguir parar de pensar no apocalipse a minha volta enquanto tento organizar o ritmo da prosa e a sequência dos acontecimentos narrados. Tudo bem, dar o texto por concluído gera satisfação e reafirma que faço algo da minha vida além de correr atrás de dinheiro para sobreviver. Não quero perder isso. Mas, espero conseguir deixar minhas ilusões dentro da ficção.
Quando eu preciso realizar encomendas, falar sobre temas que não me interessam ou redigir relatórios de trabalho, não há prazer. É como se eu levantasse pesos. É como carregar as compras do mercado. No meio do caminho, com os braços cansados, decido deixar que os músculos aguentem, pois já estou quase em casa. Finalizar o trabalho é chegar em casa e largar o peso.
Quando há prazer, ainda assim, eu preferia que houvesse um modo mais simples. Minha intenção é comunicar ideias. Eu gosto de ter ideias, imaginar cenas, acontecimentos, personagens, diálogos e construir narrativas. Já fiz isso com desenho, performance, vídeo, fotografia, pintura, instalações, ambientações, audiodramas, esculturas, objetos e mais um monte de formas que não têm categoria. Dar forma para as ideias sempre envolve exercício. Não há outro caminho. Resumo da ladainha: paixão dói.
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