
Detalhe da capade Dante Luiz para a noveleta Não pague pela boa morte, com ilustração de Palloma Barreto. À esquerda, logo da Mafagafo Revista, temporada 04, outubro de 2021. Título da revista e título da noveleta ao centro, sobre busto e mão branca sendo agarrados por mãos vermelhas. Toda a ilustração é feita em preto, vermelho e branco.
Texto de Rodrigo Hipólito
Não pague pela boa morte. Edição: Jana Bianchi e João Pedro “PJ” Lima. Preparação: Fernanda Castro. Revisão: Lorrane Fortunato. Ilustração: Palloma Barreto. Direção de arte: Dante Luiz. Mafagafo Revista, out. 2021.
Quando comentei com Fabiana que minha noveleta, “Não pague pela boa morte”, havia sido aceita para publicação na Mafagafo, o primeiro comentário foi de curiosidade pelos processos editoriais da revista. Isso é mais que justificado. Para quem acompanha, se interessa, lê e quer publicar em algumas das revistas literárias que surgiram no cenário brasileiro nos últimos anos, a Mafagafo se tornou uma referência de qualidade.
De certo modo publicar na Mafagafo é o atestado de que a ficção que você escreve merece atenção. Sim, isso também é um autoelogio. Mas, está além da enorme alegria que essa realização pessoal me deu. O fato de a revista atingir o patamar de “selo de qualidade” está diretamente relacionado com a profissionalização, experiência e constante formação das pessoas que a compõem. Nós notamos essas diferenças, na medida em que lemos narrativas curtas de diversas revistas para compor as pautas do Pindorama.
Isso não significa que devamos desprezar o amadorismo. Seria uma atitude estúpida. É no amadorismo que nós encontramos o que há de mais arrojado e experimental. Identificar precariedade com falta de conteúdo e qualidade pode abrir a porta para que a gente perca a capacidade de avaliar nossos próprios gostos. Além disso, quando se apaga todos os elementos de origem alternativa dos processos de construção e exibição de obras de arte, como são a edição e publicação literárias, o atestado de qualidade pode se tornar apenas um carimbo na embalagem de um enlatado. É isso que acontece com galerias renomadas, em grandes feiras de arte ou nos maiores jornais em circulação. Nesse último caso, a situação é mais evidente. A pessoa contratada para assumir uma coluna de opinião poderá usufruir do selo do jornal, mesmo que suas opiniões continuem a ser uma merda.
No caso da Mafagafo, considere esses pontos e acrescente a gratuidade da revista. Isso significa que essa publicação não apenas se mantém como um veículo alternativo, mas atua de modo independente. O suporte financeiro é dado pelas pessoas que leem, acreditam e compreendem o valor desse tipo de publicação. Profissionalismo, experiência, formação e independência formam um confiável círculo de segurança. Saber disso me deixou confortável para enviar meu trabalho para a revista.
Sempre há nervosismo quando temos carinho por um trabalho e o enviamos para ser avaliado. Parte desse nervosismo vai para o lado do medo da recusa. Esse costuma ser amenizado depois que você recebe alguns “nãos”. Você vai continuar a ficar triste com cada “não” recebido. Mas, se você não for cabeça-dura e aceitar os motivos da recusa, nas próximas, o resultado pode ser diferente.
Outra parte desse nervosismo vai para o lado do aceite. Se o seu trabalho querido for aceito, ele será ainda mais analisado e criticado. Seu trabalho será modelado, modificado, cortado, reescrito. Aquela percepção de que o trabalho e você são a mesma coisa, precisará morrer.
A versão de “Não pague pela boa morte” que foi aceita pela Mafagafo já havia passado por recusas antes. O texto original era mais curto e estava amarrado demais ao conjunto de histórias do qual faz parte. Uma narrativa não precisa ser desgarrada e tampouco explicar tudo o que acontece em seus parágrafos. A balela do “a obra de arte deve falar por si” caiu por terra, derreteu e secou há meio século, pelo menos. Mas, uma narrativa curta precisa funcionar e existem erros que podem ser cometido e corrigidos.
“Não pague pela boa morte” passou um ano em processo de escrita, o que inclui as recusas, até adquirir uma forma que pudesse ser reconhecida como uma narrativa publicável. Foi possível notar essa mudança quando consegui sintetizar os elementos da história em poucas frases e ficar feliz com o resultado. Esse foi o resumo enviado para Mafagafo:
Por se recusar a pagar o Plano Pós-vivência, Terezinha precisa da ajuda da irmã para se livrar do fantasma do pai, que a atormenta há semanas. O Setor de Pactuação a insere na ordem restritiva que a irmã já possuía, o que afasta o fantasma do pai. Mas, o cunhado de Terezinha descobre o motivo criminoso pelo qual ela era atormentada e a denuncia. Com o coração pulsando em um pote de vidro e a ajuda de um membro do Movimento Revolucionário Resistência Antimetafísica, Terezinha foge da Vigília, até descobrir que corre perigo nas mãos daquele amigo.

Detalhe da capa de Dante Luiz para a noveleta Não pague pela boa morte, com ilustração de Palloma Barreto. Dedos de uma mão branca seguram um pote de vidro com um coração muito vermelho e mãos vermelhas sobre fundo preto agarram o pote.
Escrever um resumo que cause uma impressão interessante sobre a história é algo difícil. Se você ainda estiver apaixonade pela sua história, há grandes riscos de que você não consiga transmitir toda essa paixão em poucas linhas. Não dá pra confiar na paixão. Depois que você estiver morrendo de amores por outra narrativa, a cabeça vai funcionar melhor. De quebra, você pode descobrir que tem bastante espaço no coração.
Isso também te ajuda a compreender a narrativa que você escreveu como um ser com vida própria e que quer ganhar o mundo. Muita gente pode ler o seu trabalho e você não estará presente em todas essas leituras. Seu texto precisa aprender a se virar fora de casa. Esse é o trabalho de edição.
Pouco antes de publicar a noveleta, pediram que eu escrevesse um curto texto de processo para acompanhar o lançamento. Esse comentário resume algumas das influências e dos disparadores para a criação, além de demonstrar o tom do processo de edição:
Essa história é um apanhado de micro memórias, referências e inspirações. Será que todas as histórias de ficção são assim? As peças espalhadas juntam-se com esforço, em torno de um ímã inesperado.
Eu vi Terezinha por um minuto e apenas uma vez. Era uma madrugada chuvosa em Jardim da Penha, bairro onde moro. Ela ainda não tinha nome. Enquanto lia A cidade e a cidade, de China Miéville, eu tentava observar as pessoas e as situações das quais aprendi a desviar por instinto. Os desastres políticos me faziam pensar se a alucinação neoliberal nos dominaria até depois da morte. A coletânea Cantigas no escuro (organizada por Laura Poh, com contos de Jana Bianchi, Iris Figueiredo, Solaine Chioro, Gabriela Martins e Emily de Moura) acendeu memórias da infância e a fumaça das lembranças envolveu um cenário que mal existia.
Quando todos os elementos estavam ali, precisei estruturá-los. Essa é uma das partes mais difíceis: dispensar todas as cenas que poderiam ser parte da história, mas ainda preferem não se encaixar tão bem. Eu preciso disso para escrever ficção. Se as cenas não estiverem montadas do começo ao fim, eu me perco antes de terminar o primeiro parágrafo.
Como dá pra perceber pelo início deste texto, Não pague pela boa morte começou a existir de um jeito bem emotivo e quase abstrato. O que veio depois não tem muito disso. Antes de ser aceito pela Mafagafo e ser lapidada carinhosamente por esse ninho superprofissional, essa narrativa foi cortada e recortada, relida, analisada e recusada mais de uma vez. Cada uma dessas etapas foi fundamental para que o texto parasse de pingar incerteza e ganhasse um corpo, ainda que seja um corpo fantasma.

Detalhe da capa de Dante Luiz para a noveleta Não pague pela boa morte, com ilustração de Palloma Barreto. Parte de baixo da ilustração anteriormente descrita, com detalhe do coração no pote e das mãos vermelhas que tentam agarrá-lo.
As etapas editoriais da Mafagafo são públicas e conhecidas. Por isso, não vou repassá-las aqui. No perfil de Instagram da revista, todas as etapas pelas quais os originais caminham já foram comentadas e detalhadas, desde a leitura atenta do edital, passando pela edição, até a finalização e lançamento. Há, também, dicas sobre como aceitar ou recusar sugestões de edição. Mas, o que me pareceu mais relevante na perspectiva de quem foi editado?
Desde o primeiro contato, a comunicação foi feita de maneira tão atenciosa e leve, que me deixou bastante tranquilo para que eu me posicionasse em qualquer momento do processo. Eu sei que nem sempre esse contato acontece da melhor maneira e, muitas vezes, tudo parece rápido demais. Há publicações e editoras que trabalham de modo bastante impessoal.
Eu prefiro sentir que a narrativa a ser lançada não é apenas um produto frio. Isso não significa que não seja um produto. O texto é resultado desse trabalho, ou seja, sua finalização é a entrega de um produto para quem o lerá. Um pouco sobre isso, eu conversei com o Moacir Fio e a Mayara Barros, editores de duas revistas na quais eu publiquei contos (Escambanáutica e Avessa). Essa conversa gerou dois episódios do Não Pod Tocar: NPT S04E07: Processos de edição (criativos e acadêmicos) Parte 1 e Parte 2. O segundo número da Escambanáutica contém “Segue o baile” e o número 25 da Avessa contém “O Coice”.
Os processos editoriais de cada uma dessas revistas possuem similaridades e diferenças. Algo comum é o cuidado para que a pessoa autora possa acompanhar tudo o que é sugerido e modificado no texto. Nada foi cortado ou alterado sem que eu aprovasse. Mais do que isso, cada modificação sugerida foi justificada pela pessoa editora.
Do mesmo modo, caso eu recusasse alguma das sugestões, seria de bom tom que eu justificasse a minha escolha. Penso que isso vale para qualquer edição. A narrativa é sua, mas o produto que as pessoas lerão na publicação é o resultado de um esforço coletivo. Explique-se para a pessoa que te edita. Afinal, essa pessoa é alguém que leu o seu trabalho com todo o interesse e quer compreender melhor o que você deseja para a experiência de leitura do público.
Após duas rodadas de edição, na quais Jana Bianchi e JP Lima me ajudaram a compreender e reescrever partes do texto que, até então, eu não havia percebido como soavam confusas, a preparação de texto foi anunciada. O trabalho de Fernanda Castro é primoroso. Cada frase de “Não pague pela boa morte” precisava passar por correções, remendos e arte final. Se tem uma etapa de publicação que é tão fundamental quanto pouco valorizada, é a preparação de texto. Fiquei impressionado com a eficiência e agilidade do trabalho de Fernanda. Isso faz uma diferença danada!
Datas são importantes e cumprir os prazos, ou se antecipar a eles, torna o trabalho de todo mundo mais confortável. Desde o primeiro contato, após a aprovação da minha noveleta, as pessoas moradoras do ninho mafagáfico foram explícitas com relação às datas. Ainda assim, sempre houve maleabilidade sem exageros. Afinal, o tempo pode não correr, mas nunca fica parado.
Por fim, eu não poderia deixar de comentar a direção de arte de Dante Luiz. Um dos elementos da Mafagafo que chama atenção desde seus primeiros números são suas capas e ilustrações. Ao receber a ilustração de Palloma Barreto, eu fiquei vários minutos em contemplação. Receber uma capa especialmente pensada para a narrativa que você imaginou causa uma sensação de realização profunda. Na medida em que eu lia os elogios de outras pessoas para essa imagem, a felicidade e o orgulho pela publicação só cresciam.
Chegamos ao final de outubro, o mês do horror. Se você se interessa por narrativas que extrapolam o absurdo do nosso quotidiano e brincam com o sobrenatural, leia “Não pague pela boa morte”. Seja lá qual for a sua impressão sobre essa história, eu ficaria feliz de receber o seu comentário.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
Pingback: NPC 34: Como não perder ofertas de morte – NOTA manuscrita
Republicou isso em REBLOGADOR.