[resenha] Olhos de pixel, de Lucas Mota

Imagem de capa. Olhos de pixel. Lucas Mota. Henrique Morais. Resenha.

Detalhe da capa do livro Olhos de pixel, de Lucas Mota, com ilustração de Henrique Morais. Dois olhos vistos de frente, com círculo que remetem aos mecanismos de ajuste de uma lente de câmera em torno do olho da esquerda. Toda a imagem é composta em tons de magenta, rosa, violeta e roxo.

Texto de Rodrigo Hipólito

Olhos de pixel, Lucas Mota. Capa: Henrique Morais. Pontes Gestal, SP: Plutão Livros, 2021.

Se tem um subgênero da ficção científica que foi muito bem aproveitado no Brasil, é o cyberpunk. Não é exagero dizer que a literatura de ficção científica produzida no Brasil desenvolveu a sua própria longa tradição no cyberpunk.

Não, eu não vou retornar para Santa Clara Poltergeist, do Fausto Fawcett, e começar a uma lista que demonstre a variedade de trabalhos desse subgênero publicadas, originalmente, em português. Basta compreendermos que o cyberpunk, na literatura de ficção científica desenvolvida no Brasil, sempre foi bem mais ácido, satírico e politicamente mais objetivo que as suas contrapartes anglófonas. As consequências do imperialismo do Norte para as populações do Sul e a miséria sonhada pelo neoliberalismo não poderiam ficar de fora de nossas alucinações tecnológicas. Já que mencionei Santa Clara Poltergeist, a dissertação de Rodolfo Rorato Londero pode ser um ponto de partida para quem deseja pensar A recepção do gênero cyberpunk na literatura brasileira.

Compreendidas essas características do modo como o cyberpunk foi explorado no Brasil, seria fácil dizer que Olhos de pixel, de Lucas Mota, realiza uma espécie de homenagem ao gênero. Mas, não é apenas isso. Antes que a coisa pareça complicada demais: você não precisa ter caminhado por essa tradição para aproveitar esse livro, pode respirar.

Ainda assim, é provável que a maioria das pessoas que se interessem por essa leitura, gostem de ficção científica e tenham referências cinematográficas. Essa última afirmação também pode deslizar mais um pouco. Ocorre que a influência do cyberpunk é muito extensa e profunda, dentro e fora das produções que se assumem como de ficção científica.

Você pode não ser fã de filmes do gênero, mas considere os painéis de controle dos carros do ano, os outdoors de LED espalhados pelas ruas das capitais, os padrões de cores do seu smartphone, o cenário do último game show da TV aberta, a insistência da sua tia carente em fazer vídeo chamada pelo zap, o GIF 3D de Jesus furta-cor que você recebeu de bom-dia, o vídeo divertido de pessoas dançando no escuro com luz neon, as roupas de ginástica coloridas do pessoal da academia… eu preciso continuar?

Você pode dizer que não gosta de ficção científica, mas ela faz parte do seu quotidiano. Desculpe, vou ter que refazer essa frase. Você pode dizer que não gosta de ficção científica, mas, não é bom se autoenganar.

Lucas Mota sabe que boa parte daqueles elementos futuristas inocentes do cyberpunk dos anos 1980 tornaram-se quase inofensivos. O quase é o ponto que faz toda a diferença em Olhos de pixel. Você se acostumou com presenças variadas na sua intimidade, no seu lar, na sua cama, na sua mente. Essas presenças parecem quase inofensivas, até que te controlam e te machucam.

Parece exagero? Não deveria parecer. Você leva para cama todas as pessoas dos grupos da igreja, do trabalho, da academia, do grupo #BrasilVerdadeFato ou #RevoluçãoVerdeOliva. Essas pessoas e as instituições por trás delas estão com você quando você come, quando você caga, quando você pega o ônibus, quando você briga, chora, ri, odeia ou só quer vender a sua geladeira velha. O cerco se fechou sobre a sua rotina e você pensa como deveria pensar pelas regras do grupo, mesmo quando fecha os olhos ou desliga o leitor de tela.

Eis a metáfora realística do título do livro. Você acredita que desligou alguma coisa. Mas, o controle continua ali. É assim que você pensa ou esse é o seu desejo de nivelamento social gritando para você não ouvir sua própria opinião? Você já teve uma ideia e ficou em dúvida se aquilo seria aprovado no seu grupo de conversas? Você já abafou essa ideia até se esquecer de que ele existiu? Digitou e desistiu de enviar? Arrependeu-se de ter feito o tuíte? Xingou os algoritmos, deletou suas redes sociais e voltou com todas elas meses depois?

O que acontece no seu smartphone, também acontece dentro da sua cabeça. A tela são seus olhos e ouvidos. O grupo continua a te controlar mesmo quando você dorme. Os seus desejos nem se arriscam a se manifestar, pois sabem que é proibido. Por quem? Pelo grupo? Por algumas pessoas do grupo? Por aquilo que o grupo representa? Pelas autoridades defendidas pelo grupo? Pelo poder representado por essas autoridades? Pela instituição que dá corpo a esse poder?

Se você consegue responder a essas perguntas em sequência, talvez você já tenha notado que é assim que uma instituição religiosa se organiza. É dessa maneira que nós podemos ser controlados e passarmos a acreditar que é nossa escolha considerar que tal e tal atitude simples possam ser um grande pecado e um profundo erro moral.

Quais atitudes simples? Comer um alimento específico, usar um tipo de roupa, beijar alguém, xingar, roubar para não morrer de fome, dar calote no banco, rebolar a raba até o chão, não se casar, odiar o trabalho, amar o ócio, não acreditar no sobrenatural, dar o cu, amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo, não sustentar a igreja, sentir prazer.

Qualquer coisa pode se tornar pecado e as tecnologias de comunicação têm sido cada vez mais utilizadas para criar e manipular culpa. Fazer com que a gente sinta culpa, medo e nojo são formas eficientes de controlar nossas ações e fazer com que trabalhemos para o lucro e o prazer de quem detém o poder. Mas, receber um GIF de bom dia é quase inofensivo.

A história se passam em uma Curitiba futurista. As pessoas possuem implantes que lhes permite uma comunicação acelerada. Porém, tudo caminha para ser controlado pela Santa Igreja de Salomão. Ser uma pessoa cidadã significa aceitar esse controle, o bombardeio das propagandas e seguir os rituais de uma tecnofé que explora bem mais do que seus últimos centavos.

Você poderia se tornar uma root, mas isso te deixaria à margem da legalidade e te exporia a riscos para os quais nem todo mundo está treinado. Nina está nessa posição e, junto de Tera e Iza, acreditam que é possível existir fora dos padrões de dominação da Santa Igreja. Lídia é uma policial e acredita que é possível modificar o sistema por dentro. E Kalango. Bom, melhor não falar nada sobre Kalango.

Não vou te contar muito mais do que isso para te convencer a ler Olhos de pixel. Não se trata de evitar a maldição do spoiler. O motivo de não querer te contar muitos detalhes é porque não sei até onde isso importa. A narrativa é fluida. As personagens são interessantes e cativantes. A história é repleta de ação e não gasta texto com filosofia barata.

Vou me dar a liberdade de afirmar que o autor está mais interessado em fazer com que você sinta raiva do que em enobrecer seu espírito. Não há meios-termos em Olhos de pixel. Isso não quer dizer que as situações e dilemas das personagens sejam simples. Mas, não há conciliação quando um lado escraviza e o outro liberta.

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2 pensamentos sobre “[resenha] Olhos de pixel, de Lucas Mota

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