Texto de Rodrigo Hipólito
Resumo: Este texto pensa a posição do espectador através de duas obras de Antonio Manuel, “Urnas-quentes” (1969) e “O Corpo é A Obra” (1970). No entendimento de que são dois casos antagônicos, demonstra-se a participação ativa do público, no primeiro caso, e passiva, no segundo. Tal raciocínio é conduzido pelo contexto de abertura conceitual e inserção do espectador, próprios da arte produzida no Brasil dos anos 1960, para a qual os escritos e declarações de artistas, como Hélio Oiticica e o próprio Antonio Manuel, e de críticos próximos, como Frederico Morais, nos dão acesso. As duas obras, aqui privilegiadas, são equacionadas com uso do público como ponto de apoio e exemplificam a problemática da recepção crítica das obras de arte.
As décadas de 1960 e 1970 são reconhecidas, no Brasil, como período de grande opressão político-social e de uma geração de artistas de capacidade construtiva[1] capaz de estabelecer diretrizes internas inovadoras para suas obras e, ao mesmo tempo, possibilitar diálogos e aberturas para o público. Essas são características de uma arte que reverbera até nossa contemporaneidade. Podemos perceber essa lucrativa dubiedade nas produções encontradas em nomes emblemáticos como Hélio Oiticica, Lygia Clarck, Lygia Pape, Cildo Meireles, Mira Schendel, Nelson Leirner, Wesley Duke Lee, Rogério Duarte e tantos outros. O nome aqui escolhido para tratar da manifestação artística do período citado como sendo uma “arte de resposta”, de choque e uma proposição ativa que expande o gesto criador é o de Antonio Manuel.
Este primeiro parágrafo já nos coloca algumas dúvidas que servirão de traçado para o desenvolvimento das idéias neste texto, como: onde podemos observar tal dubiedade? Por que a arte brasileira destas duas décadas se deu de tal maneira? Como isso afeta a recepção crítica e de fruição das obras deste período? Por que a escolha do nome de Antonio Manuel?
Justificar a escolha do nome já nos dá uma boa visão do nosso campo de trabalho. O conjunto da obra deste português brasileiro parece sempre esboçar um movimento de inserção e resistência “do” e “ao” espectador. É, certamente, uma arte de resposta,[2] que jamais mostra-se alheia às questões de seu tempo e possui a qualidade rara de reinventar-se a partir e através do modo como é recebida ou mesmo recusada. Podemos pensar em seus trabalhos envolvendo jornais, que tiveram a duração de um dia de informação, um dia de jornal. Ali, temos as primeiras interferências em manchetes, através das quais são transmitidas novas informações, com uso da mesma diagramação dos jornais.
Ao trabalhar diretamente com o maquinário da imprensa, o artista começa a fazer uso das matrizes descartadas, os flans, o que o leva a produzir seus próprios jornais, como o projeto “Clandestinas” (1973). Nesse trabalho, foram impressas dez peças com paginação semelhante à do jornal “O Dia”, da mesma data. Porém, com a introdução de fatos ligados à arte.
As “Clandestinas” eram colocadas nas bancas e poderiam ser compradas por engano, como se fossem o jornal “verdadeiro”. Mas, talvez o extremo dessa relação com a disseminação de uma informação como resposta ao próprio modo de produzir e disseminar informações tenha sido a “Exposição de Zero Às 24 Horas nas Brancas de Jornais” (1973). Após ter suas obras censuradas pelos próprios realizadores de uma exposição, que ocorreria no MAM-Rio, o artista se dirige ao “O Jornal” e consegue que as obras censuradas fossem apresentadas como um caderno dominical de seis páginas. Aqui, aparece muito daquilo que os trabalhos de Antonio Manuel apontam: a dificuldade, quando não impossibilidade, de veicular a arte produzida em ressonância com o seu tempo, e a dificuldade ainda maior de fazer com que o público pudesse aceitar a proposta e inserir-se nos questionamentos (em uma época em que a autocensura, resultado das conhecidas condições sociais impostas pela ditadura militar, era frequente).
Antonio Manuel faz parte de uma intelectualidade oprimida, que possui uma criatividade necessária, típica das comunidades marginalizadas, para as quais esses artistas sempre tiveram atenção. Entende-se que dizer “seja marginal seja herói”, por parte de Hélio Oiticica, indica tantas questões quanto é possível perceber no choque entre uma arte que foge dos salões, por não querer ser elitista, e encontra um público que é, curiosamente, aproximado por ser também marginalizado. Mas, para o qual a arte ainda não é uma necessidade, como é a criatividade.
Esse estado de “ser marginal”, da arte feita por Antonio Manuel (Oiticica, Clark, Barrio) fazer parte de uma intelectualidade acuada, o que é demonstrado com bastante clareza em “Loucura e Cultura” (1973).[3] Neste filme, do qual participam, além dos nomes citados acima, Rogério Duarte, Luís Saldanha e Caetano Veloso, a construção é feita com tomadas quase estáticas, nas quais os artistas parecem posar para as fotografias de uma ficha policial. No áudio, está a origem da ideia. Trata-se de frases de um debate a respeito de “loucura e cultura”, ocorrido no MAM-Rio, em 1968. “’Atenção. Atenção. Eu preciso falar. Atenção. Eu quero falar’ é a primeira frase do debate selecionada para o filme. Fala-se da ‘grande farsa que é a cultura brasileira’, a ‘loucura para mim significa um sentido de liberdade, de criação’”.[4]
Quando aparece a fala vinda da platéia, de que toda aquela discussão não passaria de “masturbação intelectual”,[5] é que se entende a localização da discussão eda produção de arte no dado período. Junta-se a isso a utilização da Marselhesa orquestrada. A música, que por muito tempo foi sinônimo de liberdade, surge, em “Loucura e Cultura”, como uma fina ironia e um pedido por alguma espécie de liberdade muito mais ampla que aquela limitada pela censura aos jornais e exposições da época.
O pedido de liberdade desses artistas talvez sempre tenha sido o da liberdade como experiência. É por essa concepção de liberdade que pensaremos, especificamente, duas obras de Antonio Manuel: as “Urnas-quentes”, em seu primeiro momento, 1968, e a ação performática de “O Corpo é a Obra”, de 1970.
“Urnas-quentes” surgiu numa manifestação inserida no evento Arte no Aterro, chamada Apocalipopótese (manifestação idealizada por Rogério Duarte e Hélio Oiticica). Todo esse evento inseria-se no contexto de questionamento do sistema legitimador das obras de arte.[6] No caso das “Urnas-quentes”, a proposta era bastante direta e pensada para o local público, como mostram as palavras do próprio Antonio Manuel:
Essa idéia coletiva, grupal, de arte no Aterro, foi um dos primeiros movimentos realizados na rua, em praça pública. Cada artista criava um trabalho para o Apocalipopótese. Meu trabalho eram as urnas-quentes: uma média de vinte caixas de madeira, hermeticamente fechadas, que dentro continham coisas variadas (poemas, textos, fotos, iconografias, objetos, etc.). As pessoas recebiam martelos e pedras e essas caixas eram violentadas, eram arrebentadas a porretadas e você descobria então o código de cada uma delas. É essa a idéia original da urna-quente. Uma idéia radical, de você tentar usar também de violência para descobrir a coisa em si. (MANUEL, 1984, p. 44)
“Urnas-quentes” exige que o espectador esteja numa posição ativa e, por isso, depende da boa disposição desse participador. Aparentemente, “O Corpo é a Obra”, de 1970, pediria uma descrição diametralmente oposta. Porém, ainda será possível uma confluência, que é a própria especificidade do espectador, exigida em ambas as obras, para a qual nos voltaremos mais adiante.
“O Corpo é a Obra” pode ser encarada como uma ação performática, tendo em vista a existência de uma anterioridade ao fato a partir do qual é constituída a obra.[7] Antonio Manuel havia inscrito a si mesmo como obra no XIX Salão de Arte Moderna, no MAM-Rio, com suas medidas e demais informações de descrição. Somente após ter sido recusado no salão, é que a idéia da ação da obra pode surgir. Antonio Manuel exibiu seu próprio corpo nu como obra.
O artista passeou pelo espaço durante a abertura da mostra, fez poses,[8] subiu e desceu a escadaria, foi recebido com sorrisos, cumprimentos e rostos receosos, como mostram as fotografias da época, até dar por finalizada a sua ação. Depois, o artista foi proibido de expor em salões oficiais por dois anos.[9] Para o modo como pensamos essa obra hoje, não podemos deixar que sejam desvinculados esses três momentos: (i) a inscrição do corpo como obra e a recusa pela comissão do XIX Salão de Arte Moderna, (ii) a decisão do artista de dar uma resposta a essa recusa, que é o próprio ato tido como a obra; e, por último, (iii) a condenação da Comissão Nacional de Belas Artes, pelo Ministério da Educação e da Cultura, que define a não aceitação de “O Corpo é a Obra” no universo das Belas Artes no Brasil da época.
Em ambos os casos, percebemos obras que são reações, ou respostas, à certas condições institucionais da época. Essa resposta destina-se, especificamente, ao sistema de arte que não havia conseguido (e ainda não consegue) digerir com facilidade obras de arte como propostas em campo alargado, tanto no sentido formal quanto conceptual. Uma das principais razões da dificuldade de assimilação institucional (e pode-se mesmo dizer da dificuldade de recepção crítica) é a desconfortável sobreposição das figuras do autor, do espectador e da proposta.
Muitas vezes, a identificação de “onde” encontra-se “a obra”, na proposição lançada pelo artista, é aparentemente fácil. A obra de arte estaria na (e seria a) própria experienciação da proposição do autor. Porém, quando é necessário pensar institucionalmente estas obras, o que já pressupõe uma recepção crítica judicativa, ou seja, uma recepção de discernimento das propriedades intrínsecas e fundamentais da obra, dúvidas difíceis aparecem. Como seria possível aproximar-se, cautelosamente, de uma obra que é ativada pelo espectador e constrói sua origem e morte no próprio tempo de vivência do sujeito com a proposição lançada pelo artista? Se o espectador abandona sua posição e passa a integrar a obra, passa a ser obra, então, para quem é essa obra, já que o próprio espectador da obra, aparentemente, transforma-se obra, no momento em que esta é disparada pela sua ação? Como conceber uma recepção crítica para uma obra que apenas pode ser percebida “após” e “na” anulação da distância necessária para a exterioridade do espectador?
Espectador e obra dividirem o contexto parece algo fundamental para que haja experienciação. Da mesma maneira, para que possa haver uma recepção crítica, parece indispensável uma distância entre espectador e obra, que dê margem para uma melhor definição da obra como “objeto” de alguma espécie de estudo.[10] No caso de “Urnas-Quentes” e “O Corpo é a Obra” temos, de imediato, duas obras com características divergentes com relação ao espectador. De maneira mais rasa, percebemos a dicotomia ativo/passivo na apresentação de um trabalho.
“Urnas-quentes”, evidentemente, exige do espectador que este se insira na obra como agente ativador. As caixas fechadas são um momento de estaticidade, um momento em que a obra se apresenta como possibilidade. As caixas fechadas são o indicativo de uma obra de arte que pode ou não acontecer, ou revelar-se, na dependência de uma atividade externa. Essa é a atividade de violação, ou de vontade de revelar uma verdade, que se espera sempre do espectador.
O momento da atitude e efetivação da vontade de violação pode ser tido como o próprio aparecer da obra, nesse caso. Temos o posterior, um terceiro momento da obra, no qual um terceiro olhar terá acesso as informações até então lacradas. O que percebemos é que este outro olhar trava conhecimento com algo diverso da obra, quando em seu aparecer. O terceiro momento da obra não é o da vivência de uma atividade. Aquele que observa as urnas abertas não é o sujeito ativo e não tem acesso a integridade da proposição do artista.
Dizer que reconhecemos a existência da obra apenas no momento da revelação das informações veladas, ou, no ato de empunhar o martelo e quebrar as trancas, seria bastante reducionista. A obra se apresenta de modo fragmentado. É possível captar parcelas significativas da proposição do artista ainda com as urnas fechadas.
Talvez o sentido de impulso de atuar numa revelação em seu instante de premência, ainda que não seja realizada, possuiria o mesmo peso de compreensão da proposta existente naquele espectador/participador/coautor que arranca a tampa de madeira a marteladas. Porém, há níveis de inserção na obra e, nesse caso, entende-se que a participação do espectador que compartilha da vontade de revelação da verdade com aquele ser ativo que viola a obra e, mesmo quando ambos podem ter acesso a informação desvelada, é uma participação relativa ao olhar.
Lembremos da distinção feita por Brian O’Doherty a respeito do olho e do espectador.[11] O espectador certamente observa, mas possui uma consciência de sua presença na mesma realidade da obra, inclusive por estar sob e na revelação da presença dada pela obra. Já o olhar é analítico, distintivo e próprio do distanciamento exigido pela recepção crítica.
A posição ocupada pelo olhar é mais clarificada quando pensamos na ação performática de “O Corpo é a Obra”. Antonio Manuel caminha nu pelos espaços do MAM-Rio. Essa situação somente pode ser captada de duas maneiras, ambas dependentes das informações “possuídas” pelo olhar. Na primeira, podemos aceitar um olhar que não esteja afeito aos questionamentos que ocorriam na arte da década de 1960 e, talvez, fosse alguém distante do universo da arte que, por acaso, estivesse presente na abertura do XIX Salão de Arte Moderna.
Para esse olhar haveria um homem caminhando nu pelo espaço e recepção crítica da obra estaria no âmbito de uma ética externa ao sistema de arte. Em suma, seria apenas um homem caminhando nu por um espaço público. Já na segunda maneira, a atitude carreia uma série de questões que a tornam significativa no contexto do XIX Salão de Arte Moderna e, de forma mais extensa, da validação institucional da arte, posta a prova naquele período histórico.
Ainda assim, mesmo este olhar inserido no “mundo da arte” necessitaria de uma contextualização da atitude do artista já que, pelo modo como se deu a realização de “O Corpo é a Obra”, os olhares “presentes” não poderiam ter, em sua maioria, acesso as especificidades da atitude de Antonio Manuel como uma obra de arte. Isso porque, a atitude foi notada por ser notável, isto é, por possuir uma carga de discrepância com relação a todas as atitudes a volta e mesmo com relação ao ambiente do modo como foi concebido.
A atitude de Antonio Manuel foi uma manifestação e manifestações têm múltiplas intenções. Um caso análogo, e que pode muito bem nos dar uma compreensão mais abrangente do acontecimento, é o já quase desgastado mictório de Duchamp. A obra, proposta para a American Society of Independente Artist, sequer chegou a ser exibida, mas causou incômodo. Porém, a percepção da obra por parte dos olhares afeitos ao sistema de arte não condiz com o caráter indexado à “Fonte” e que é o modo como a obra é reconhecida e desdobra-se em questionamentos. A “Fonte” é uma obra de arte inevitavelmente posterior ao momento de sua proposição e efetivação formal.[12] Algo similar ocorreu com “O Corpo é a Obra”. Os fatos posteriores à ação performática de Antonio Manuel reestruturaram a visão sobre a obra e, caso seja isso possível, reconstruíram a manifestação primeira. Isso conferiu novas possibilidades de recepção crítica.
Além de ter circulado nos noticiários do quotidiano, “O Corpo é a Obra”, que talvez nem possuísse um título público acessível, torna-se tema de uma das “Clandestinas”, isto é, a ação continua a ser trabalhada pelo autor tanto como veículo de informação quanto como informação a ser vinculada. O passeio do homem nu pelo MAM-Rio, em 1970, passa a ser mais que uma manifestação, torna-se um tipo de memória que, talvez, possamos chamar de emblema.
E podemos entender melhor tal emblema, ao pensarmos no desdobramento que é “Corpobra”.[13] O que temos, então, é uma caixa vertical, com laterais de madeira e vidro na parte da frente, com serragem no fundo, cobrindo-a até metade do espaço interno. No fundo da caixa, há uma fotografia móvel de Antonio Manuel. A fotografia mostra o artista posando nu sobre a escadaria do MAM-Rio, durante a ação performática de “O Corpo é a Obra”, e uma tarja lhe cobre o pênis, como as tarjas de censura. Mas, ao invés de “censurado”, lemos “corpobra”. Essa imagem pode ser movida por uma alavanca e deixar a mostra uma segunda foto, idêntica a primeira, porém, sem a censura da tarja. A possibilidade de existência e eficiência de “Corpobra” demonstra que “O Corpo é a Obra” foi retrabalhada ao ponto de tornar-se uma memória emblemática, que já poderia aparecer como referência, suporte e até tema para outras proposições.

Três fotografias do trabalho “Corpobra”, de Antonio Manuel, de 1970, descrito no parágrafo anterior.
Percebemos que estas duas obras de Antonio Manuel, aqui privilegiadas, mesmo em suas descrições antagônicas, confluem em uma generalização que pede a especificidade do espectador. Poderia ser difícil, para a maioria dos espectadores, posicionar-se como ser ativo e corromper o lacre da urna com a violência necessária para libertar o código velado. Mas, ainda que não fosse essa a dificuldade, seria difícil que qualquer espectador ativo tivesse um acesso crítico e construtivo ao material guardado como código no interior da urna:
“(…) URNA QUENTE:
calor antes mesmo que depois
q depois do martelar-poema sem
RESULTADO .
(…)”
OITICICA, 1968, apud MANUEL, 1984, p. 15.
“Urnas-quentes” pede um espectador específico, que possa ser um ser ativo inserido como coautor e impulsionador da revelação da obra e, ao mesmo tempo, com a capacidade de distanciamento mínima para ter acesso crítico construtivo ao código velado pela urna, para perceber que as informações ali contidas devam ser “quentes”. “O Corpo é a Obra” atua, imediatamente, no âmbito do “olhar” e, desde sua aparição, já exige que este “olhar” esteja em posse, ou melhor, domine os termos específicos que fazem com que aquela atitude possa ser recebida criticamente como uma obra de arte. Essa recepção crítica é posta em crise pelo fato de os indivíduos ali presentes tomarem consciência de dividirem o mesmo espaço com a atitude do homem nu e, nesse caso, é cobrado que estejam inseridos no contexto do sistema de arte, que possibilita uma arte de resposta daquele gênero.[14]
Estes são apontamentos de uma problemática bastante atual e que, talvez, permaneça por um bom tempo, a saber: para quem são feitas obras de arte que, aparentemente, só podem existir quando engolem e digerem seus aspirantes a espectador?
Referências
ARAUJO, Virgínia Gil. Antonio Manuel – a resposta política da arte contemporânea no Brasil. 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas – Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais. Florianópolis. ANPAP, 2007.
Antonio Manuel; textos de Antonio Manuel, Frederico Morais, Hélio Oiticica, Jean-Claude Bernadet, Mário Pedrosa e Ronaldo Brito – Rio de Janeiro: FUNARTE/Instituto de Artes Plásticas, 1984 (Arte Brasileira Contemporânea).
CANEJO, Cynthia Marie. Gestos Efêmeros e Obras Tangíveis: A Trajetória de Antonio Manuel, In: Novos Estudos CEBRAP Nº 76. Novembro de 2006.
GOMES, Helder. Relativismo Axiológico e Arte Contemporânea: De Marcel Duchamp a Arthur C. Danto – Critérios de Recepção Crítica das Obras de Arte. Porto: Edições Afrontamento, 2004.
INSTITUTO TOMIE OHTAKE. Arte como questão. Anos 70 – Meio século de arte brasileira, Volume 2. Curadoria Gloria Ferreira. São Paulo, 2009.
Loucura e Cultura. Filme 35 mm, preto e branco, 10min. 1973. Fotografia: Antonio Luiz e Júlio Romiti. Montagem: Ricardo Miranda.
REZENDE, Renato. Coletivos. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2010.
RIBEIRO, Alessandra Monachesi. Antonio Manuel – Corpo, Memória e Morte, 2007.
OITICICA, Hélio. “A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido da construtividade”, In: Glória Ferreira e Cecília Cotrim [Orgs.]. Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 32-95.
O‟DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[1]“Considero, pois construtivos os artistas que fundam novas relações estruturais, na pintura (cor) e na escultura, e abrem novos sentidos de espaço e tempo. São construtores, construtores da estrutura, da cor, do espaço e do tempo, os que acrescentam novas visões e modificam a maneira de ver e sentir, portanto, os que abrem novos rumos na sensibilidade contemporânea, os que aspiram a uma hierarquia espiritual da construtividade da arte.” OITICICA, Hélio. “A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido da construtividade”. In: FERREIRA, Ferreira; COTRIM, Cecília Cotrim [Orgs.]. Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 38.
[2] “Quando se lê o que escrevem críticos e curadores a respeito de sua obra e trajetória artística, um consenso parece haver em relação ao quanto as produções de Antonio Manuel são profundamente antenadas, sensíveis e reativas aos tempos em que são feitas e às circunstâncias circundantes que lhes provocam. Uma obra-resposta, obra-reação ao mundo em que vivemos, aos tempos, aos dilemas de cada época.” RIBEIRO, Alessandra Monachesi. Antonio Manuel – Corpo, Memória e Morte, 2007, p. 4.
[3]Loucura e Cultura. Filme 35 mm, preto e branco, 10min. 1973. Fotografia: Antonio Luiz e Júlio Romiti. Montagem: Ricardo Miranda.
[4]BERNADET, Jean-Claude. A Antropologia de nós mesmos – Anos 70 – Cinema (n. 4) Editora Europa, 1979/1980. Pesquisa promovida pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Funarte. Citado em Antonio Manuel, Funarte, 1984, p. 47.
[5]Idem.
[6]“Além de explorarem novas mídias, como o Super-8 e o vídeo, esses artistas foram os primeiros a lidar diretamente com as instituições de arte, organizando e montando exposições, escolhendo artistas e escrevendo textos para catálogos. Esse foi o caso das exposições Propostas 65 e Propostas 66, ambas realizadas na Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, em São Paulo, e também da Nova Objetividade Brasileira, montada em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, críticos, especialmente Frederico Morais (que também atua como artista), aliaram-se a esses artistas para montar exposições alternativas, como a Arte no Aterro (1968), Salão da Bússola (1969) e Do Corpo à Terra” (1970).” REZENDE, Renato. Coletivos. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2010, p. 7. Na nota de rodapé número 5, indicada no final do parágrafo citado acima: “Arte no Aterro consistiu-se em um mês inteiro de atividades e arte pública na esplanada do MAM, no aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, em 1968. Num dos fins de semana ocorreu o evento “Apocalipopótese”, no qual Lygia Pape mostrou os Ovos, Antonio Manuel fez o trabalho Urnas quentes e Rogério Duarte apresentou Cães amestrados. O Salão da Bússola, considerado como a primeira exposição de arte conceitual no país, para o qual Morais redige o “Quase-manifesto”, foi montado no MAM/RJ. Do Corpo à Terra aconteceu em 1970, em Belo Horizonte; Barrio espalhou suas trouxas pela cidade e Cildo queimou galinhas vivas em Tiradentes: Totem-monumento ao preso político.”
[7]“Comecei a perceber a temática do corpo. Afinal era ele que estava na rua, sujeito a levar um tiro, receber uma pedrada, uma cacetada na cabeça, então imaginei usar meu próprio corpo como obra. Decidi inscrevê-lo ao Salão Nacional de Arte Moderna de 1970. Na ficha de inscrição escrevi como titulo o meu nome, as dimensões eram as do meu corpo, etc. Fui cortado. Ao mesmo tempo soube que Colares (Ray Colares – Raimundo Felicíssimo Colares) havia sido preso por ter quebrado o vidro do MAM com uma pedrada. Peguei uns recortes sobre ele, inclusive uma foto saída nos jornais, em que se via o Embaixador norte-americano Elbrick – Charles Burke Elbrick – entregando-lhe o premio IBEU de 1969, e fui a policia. Fiquei uma hora ouvindo um sermão do delegado de plantão, situação que me humilhou muito. Encontrei Colares em uma cela comum com 20 presos num cantinho, todo sujo. O delegado acabou liberando-o e ele foi para sua casa em Santa Teresa. Eu me dirigi ao MAM e lá cheguei uma hora antes da inauguração. Aí, me veio a idéia de ficar nu. Nada foi programado, a idéia surgiu como fruto de um sentimento de asco e de repulsa. As pessoas no vernissage ficaram atônitas, mas naquela hora eu me senti com uma força muito grande. Terminando o ritual, fui para casa de Jackson Ribeiro, onde recebi um telefonema do Mario Pedrosa. Fui até a sua casa e fizemos uma entrevista na qual ele defendeu meu gesto. Tive de sumir uma semana. Fui proibido de participar durante dois anos de Salões Oficiais”. Depoimento à equipe da Galeria de arte BANERJ, prestado em 17/04/1968. “Depoimento de uma geração 1969 – 1970. Rio de Janeiro: Galeria de Arte BANERJ, 1986 apud Instituto Tomie Ohtake. Arte como questão. Anos 70 – Meio século de arte brasileira, Volume 2. Curadoria Gloria Ferreira. São Paulo, 2009, p. 55.
[8]“O corpo é a obra foi realizado em 1970, depois da promulgação do Ato Institucional 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968. Com o AI-5, o governo interditou todas as vias de comunicação artística. Antonio Manuel apresentou seu corpo como uma obra de arte (usando as medidas de seu corpo para definir as dimensões da obra), mas foi rejeitado pelo júri do XIX Salão Nacional de Arte Moderna.No dia da abertura do salão,percebendo que a concepção da proposta teria superado aquelas expostas nas paredes e no solo, Antonio Manuel se despiu e se colocou a fazer poses, como se fosse escultura, na sala de exposição.” CANEJO, Cynthia. “Gestos Efêmeros e Obras Tangíveis: A Trajetória de Antonio Manuel”. Novos Estudos CEBRAP Nº 76, nov. 2006, p. 270.
[9]“A sociedade de controle presente no MAM-Rio circunscreveu, igualmente, a paralisação das atividades de Antonio Manuel, depois de protestar inserindo naquele Museu sua proposta O corpo é a obra, na qual o artista circula pelo XIX Salão de Arte Moderna (1970) no MAM-Rio, expondo sua nudez não autorizada como resposta política às crises da arte, do mundo e do homem. O artista terminantemente proibido de participar em salões oficiais será afastado do sistema das artes plásticas durante dois anos por determinação da Comissão Nacional de Belas Artes junto ao Ministério da Educação e da Cultura, dirigido por Jarbas Passarinho. Antonio Manuel terá, ainda, grave problema com a censura em 1977, quando completar-se-iam dez anos de constantes pressões em sua biografia.” ARAÚJO, Virgínia Gil. Antonio Manuel – a resposta política da arte contemporânea no Brasil. 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas – Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais. Florianópolis. ANPAP, 2007, pp. 583-584.
[10]“A natureza da recepção crítica de uma obra não é, na uma estrutura lógica, intrinsecamente distinta da natureza da recepção crítica de qualquer outra realidade cultural. Ela exige em simultâneo uma relação de proximidade e de distância do sujeito face ao objeto – aceitamos sem problematizar essa dicotomia simplista –; proximidade, enquanto é exigível que o espectador esteja na posse de um conjunto mínimo de informações pertinentes relativas ao objeto, implicando a existência de um contexto mínimo comum ao espectador e a obra; distância, enquanto esta é condição de independência crítica do sujeito face aos valores implícitos à obra. Numa relação que apenas radicaliza um problema que é comum à toda a percepção crítica – e toda a percepção de fenômenos culturais é, em maior ou menor grau, crítica, pois implica a apropriação perspectivística e valorativa implícita ou explícita pelo sujeito de uma realidade que nunca é um dado objetivo, segundo valores e categorias que nunca coincidem com os implícitos ao objeto – a crítica de arte age, pois, no interior de uma relação ambígua de dependência e independência face a obra”. GOMES, Helder. Relativismo Axiológico e Arte Contemporânea: De Marcel Duchamp a Arthur C. Danto – Critérios de Recepção Crítica das Obras de Arte. Porto: Edições Afrontamento, 2004, p. 180.
[11] “A arte com que o Olho se relaciona quase exclusivamente é aquela que preserva a superfície pictórica – a linha dominante do modernismo. O Olho conserva o recinto contínuo da galeria, com paredes varridas por superfícies planas de tela. Todo o resto – tudo o que é impuro, a colagem inclusive – atende ao Espectador.” O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.41.
[12]“Como mostra Willian Camfild [“Marcel Duchamp’s Fountain: Aesthetic Object, Icon, or Anti-Art?”], toda a envolvência teórica, assim como a recepção mais imediata e documentada da obra Fonte nos círculos próximos de Duchamp, é de caráter estético e sublinha a riqueza formal descoberta num objeto não apenas do quotidiano, mas conotado com a carga associada às excreções. Somente após a sua recuperação crítica a partir da década de 50, em resposta às preocupações específicas quer de Duchamp, quer do contexto artístico desse período, é que a obra recebe de Duchamp uma explicação de índole conceptual. À época da não exposição de Fonte na American Society of Independent Artist, todas as referências à obra no círculo próximo do autor são de cariz estético. Admitindo que tais referências têm em conta as posições expressas pelo próprio autor – que pelo menos à época não as contradisse – , elas mostram que a obra foi apreendida como o resultado de um condicionamento da recepção capaz de colocar em evidência uma riqueza formal que a sua primitiva funcionalidade teria ocultado. Depois do relativo escândalo que rodeou a sua (não) apresentação, a obra permanecerá esquecida pela crítica nas quatro décadas seguintes. Esse esquecimento, que é correlativo ao desaparecimento da obra, permite que a sua recuperação se faça, em finais da década de 50 e na década seguinte, já sob um contexto teórico muito diferente do original. Face à profunda alteração do contexto artístico – dos anos gloriosos do primeiro Modernismo, tinha-se passado ao esgotamento de uma certa modernidade, com o Expressionismo Abstrato da Escola de Nova York – a obra teria de redefinir o seu enquadramento teórico para que mantivesse alguma pertinência e significação, numa deriva acompanhada pelo próprio autor, que, apesar do seu aparente afastamento, sempre se mantivera artisticamente ativo. De acordo com D. Chateau [“Duchamp et Duchamp”], só em finais dos anos 40 é que Duchamp começa a propor uma interpretação antiestética da sua produção anterior.” GOMES, Helder Gomes. Relativismo Axiológico e Arte Contemporânea: De Marcel Duchamp a Arthur C. Danto – Critérios de Recepção Crítica das Obras de Arte. Porto: Edições Afrontamento, 2004, p. 46-47.
[13] “Dessa obra temporária, desse gesto efêmero, teve origem uma obra de arte tangível chamada Corpobra. Esse objeto é uma caixa vertical de madeira, de dois metros de altura, com uma das faces em plexiglas. No interior, há a ampliação de uma foto em preto-e-branco do artista posando nu no MAM-RJ. O pênis está censurado por uma tarja preta e a palavra corpobra sobrepõe-se à tarja (no lugar onde estaria escrito censurado). A metade inferior é preenchida com serragem. Como as cabines, a obra foi projetada para interação com o espectador. Uma alavanca na parte de trás aciona um mecanismo que faz baixar uma segunda foto do artista, totalmente nu. Na referência à censura, a obra é uma crítica à repressão de idéias. Na forma, poderia ser considerada uma extensão de trabalhos construtivistas.” CANEJO, Cynthia Marie. “Gestos Efêmeros e Obras Tangíveis: A Trajetória de Antonio Manuel”. Novos Estudos CEBRAP Nº 76. Novembro de 2006, p. 270-271.
[14] “O Nu de Antonio Manuel expressa, singela e exemplarmente, esta contrariação. Só em nosso ambiente ele é inteligível, somente aqui detona a sua ambígua explosão, a sua forma inocente e dramática de exibição. A questão era assumir a destruição da interioridade da obra de arte e, ao mesmo tempo, utilizá-la como veículo de contestação política. Há a denúncia do idealismo – a rigor, fenomenologicamente, toda a obra é corpo, pelo menos corporeidade. Logo, o próprio corpo se torna obra, com sua beleza humana, por demais humana; isto é: mortal. Mas há junto, no contexto, o ato político – estão sendo diretamente atacados o Elitismo da Cultura e a Repressão do Sistema. Cabe à arte atuar, resumir-se até, a esse embate – viver no centro dele. Quer dizer: uma linguagem de dissolução, negativa, visa também afirmar-se positivamente. E não sei se é lícito falar aí em uma astúcia dialética. Talvez o caso seja mesmo trágico: o construtivismo social-democrata negado, virado ao avesso, acaba e só pode acabar numa espécie de terrorismo artístico.” BRITO, Ronaldo., “O Exemplo Nu”, julho de 1983. In: Antonio Manuel, Funarte, 1984, p. 8. Podemos perceber, nas palavras de Ronaldo Brito, a dificuldade de se pensar uma arte de resposta, quando está corre risco, por conta das contradições inerentes a sua recepção crítica, de transformar-se em algo outro; transformar-se em uma negativa, uma antiarte, uma não-arte, ou coisa que o valha, mas, ainda com o esforço reconhecível de tentar uma afirmativa, uma proposição que se apresente positivamente. Tais questões necessitam de um espaço apropriado para serem discutidas.
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