
Fotografia de escultura “Mask 2”, de Ron Mueck, de 2001. Escultura hiper-realista da cabeça do artista dormindo. A cabeça está deitada, como se dormisse sobre o chão duro. Tem cerca de 116 cm de comprimento e 75 cm de altura.
Texto de Rodrigo Hipólito
De vez em quando, retorno a algum texto que escrevi há anos. Quase sempre, é uma experiência que mescla um pouco de constrangimento, percepção das mudanças pelas quais minha escrita passou e a expectativa de encontrar alguma potência perdida. Essa última parte não diz respeito aos textos já publicados em periódicos, catálogos, jornais ou aqui, no Nota. Nesses casos, ou os textos passaram por edição ou eram notas de pesquisa, e assim se apresentavam.
Encontrar um texto perdido nas pastas de um HD externo, em um e-mail que não teve resposta ou em um blog antigo atiça minha vontade de fazer com que aquilo seja publicado ou republicado. Esse é caso do texto a seguir.
Quando escrevi esse texto, em setembro de 2009, deixei uma série de anotações que indicavam a vontade de transformá-lo em um artigo. Cheguei a enviá-lo, como comentário crítico, para um simpósio do Paço das Artes, mas, foi recusado. Hoje, percebo que deveria tê-lo aceitado como uma crônica que retrata a insatisfação de um aluno de graduação.
Eu estava insatisfeito com a postura de professores e professoras, mas, também, de autoras e autores que assisti em congressos. O que eu lia em seus artigos não parecia refletir o que diziam em suas aulas, comunicações e conversas de corredor. Enquanto os textos publicados pisavam em ovos e evitavam quaisquer tipos de afirmações incisivas sobre os trabalhos de arte analisados e criticados ou sobre as referências utilizadas, suas falas presenciais, demonstravam tanta certeza.
Isso é algo que ainda me incomoda. Mas, consigo entender as pressões que levam a esse tipo de comportamento nem sempre consciente. Com a impaciência da época, joguei tudo na caixinha de “academias da arte contemporânea”. Ao reler essa crônica da insatisfação, acho que essa expressão sarcástica me diverte ainda mais. Espero que também seja divertido para você.
A arte e um duplo mercado
Resumo: Este artigo trata da localização conceitual de itens estéticos entre os campos da arte e do design, produzidos no ambiente contemporâneo; inicia uma reflexão sobre os pontos de diferenciação e conexão entre itens de arte e itens de design; videncia possíveis equívocos acadêmicos de posicionamento conceitual sobre as produções do campo da arte e do campo do design e seus respectivos mercados, na tentativa de um esclarecimento. Ao expor tais equívocos, procura-se desmistificar a possibilidade de enfoque qualitativo negativo sobre itens artísticos. Propõe-se, também, o reconhecimento de um item de design que funcione como ícone autorreferencial. Por fim, utiliza-se de pontos simples do conhecimento dos campos da arte e do design para a compreensão dessa proposição tipológica de item de design.
Palavras-chave: campo da arte. campo do design. estética. ícone.
É curioso observar que, principalmente dentro das “academias de arte contemporânea”, propaga-se uma improvável ideia de arte-pura x arte-vendida. Essa oposição ganha um tom ofensivamente inocente, quando posta nas palavras arte-boa e arte-ruim. Pensar uma arte-ruim é algo que se dá quando ocorre o julgamento de um item através de parâmetros pertencentes a outro campo de ideias.
Num sentido geral, se é arte, é bom. Certamente, um item artístico[1] pode destacar-se qualitativamente em detrimento de outros, quando apresenta questionamentos válidos, largamente reconhecidos para um momento social, de maneira obtusa ou aguda. Questionamentos esses, que sejam reconhecidos por serem eficientes em sua abrangência ou em sua incisividade para um horizonte sociocultural. Nesse sentido, um item pode ser considerado (e assim é) fundamental, posto à margem, ou sequer incluído na conta.
Essa possibilidade, no entanto, não justifica o emprego de arte-ruim. O fato de um item artístico não possuir largo reconhecimento de seus questionamentos, ou que esses questionamentos não sejam fundamentais para a compreensão de sua época, pode, até mesmo, colocá-lo no último dos planos de estudo, mas não o torna arte-ruim.
Numa das inumeráveis definições de arte, pode-se entender trabalhos de arte como dispositivos que levam ao questionamento subjetivo de uma realidade; ou seja, falamos de objetos, situações e ações cuja função é evidenciar aspetos da existência nada práticos. Como acontece com todas as outras definições, essa afirmação não contempla diversas possibilidades de entendimento de trabalhos de arte. Ainda assim, de tal definição, podemos retirar alguns pontos de interesse.
Não é papel da arte dar respostas, mas gerar perguntas, embates, indecisões e incômodos. Um item que não gere questões subjetivas não é artístico (?). Inicialmente, uma pedra não é um item artístico, mas, o ato de gerar questões subjetivas através dessa pedra, é. Assim, uma pedra passa a existir para o campo da arte, da mesma maneira como faz parte de tantos outros campos. O pecado das “academias de arte contemporânea”, muitas vezes, está em ignorar esses tantos outros campos.
As definições incertas da arte indicam uma capacidade dos itens artísticos de “originarem-se de”, “manterem pontos de apoio em” e “direcionarem-se, simultaneamente, para” vários desses tantos campos; e, especificamente, nos campos que tangem, de modo relevante, a estética, um pandemônio de equívocos é a constante.
A “desnecessária necessidade” de instaurar limites nítidos entre arte e design tem causado escorregões constrangedores, atalhos suspeitos e injustiças sequenciais, em ambas as academias. Os escorregões promovem um estado de desconfiança para estudantes e mestres. Os atalhos, tomados por sujeitos desconfiados formam, uma elite intelectual capenga e fadada a cometer injustiças que nos guiam para terras inférteis.
A inocência ofensiva das “academias de arte contemporânea” considera como arte certos itens e, por não encontrar neles atributos de sua arte-pura, despejam esses itens num saco de pancadas com a estampa arte-ruim. Tal processo, cheio de degraus saltados, acaba por reproduzir-se na produção da elite intelectual formada por essas academias.
Itens como as imagens coloridas de Romero Britto, que pululam o mercado estético, são ridicularizados pelas “academias de arte contemporânea” e ignorados pelas demais academias. São imagens “acusadas” de decorativas e de fortalecer o mercado da arte-ruim. Pois, seriam variações sobre o mesmo tema, feitas, exclusivamente, para comercializar, e de sinceridade questionável. Diz-se que não possuiriam atributos de geradores de questionamentos subjetivos. Dizeres certamente vagos, mas que, aceitos e compreendidos, invalidam-se a si próprios.
Se deixarmos as imagens coloridas de Romero Britto como feitas, exclusivamente, para venda, como imagens que são, sem gerar questionamentos subjetivos, como poderíamos considerá-las arte-ruim? A academia julga esse tipo de item por parâmetros artísticos, mas destitui-lhe das características necessárias para ser considerado arte.[2]
A academia de arte acaba por esquecer-se de que não é detentora do domínio absoluto da compreensão estética. Não há pecado em não considerar as imagens como as feitas por Romero Britto como arte. O erro é analisá-las sob uma visão que não lhes abarca. Podemos considerar que um item estético não seja arte e ele não está desvalorizado por isso.
Esses itens, erroneamente julgados e ignorados, rodam pelos campos do conhecimento como “imigrantes ilegais”, até encontrarem anistia em terras que falem sua língua. No exemplo das imagens de Romero Britto, temos um item estético feito para atender às demandas de um mercado que consome o objeto-imagem. Temos um item estético que é um produto bem elaborado, com utilidade definida. E não se trata, simplesmente, de decoração. Pois, aqui, o produto adquire status de entidade reconhecida no espaço onde atua; é um ícone que representa um comportamento, uma tomada de posição do consumidor, representa a si próprio. Temos um item de design elaborado para ser útil como item estético.
Nesse mesmo campo do design, é possível enquadrar as criações, ou a criação mais conhecida de Vick Muniz. Porém, como pássaros numa mesma gaiola de porta aberta. Essas imagens conhecidas de Vick Muniz sofrem da mesma desvalorização paradoxal, por parte das “academias de arte contemporânea”, e do mesmo abandono, por parte das academias de design. Tais imagens possuem um nível estético reconhecido e elogiado, porém, o teor dos questionamentos subjetivos, dispostos em seu rodapé, já foi por demais mastigado, até chegarmos à atualidade.
Vick Muniz produz itens de design que são úteis como ícones de si próprios. Julgar esses itens como arte e esse mercado como mercado de arte é um escorregão constrangedor. Os dois campos possuem uma relação de mar e água, porém, são evidentemente distintos. Vemos que muitos indivíduos dispõem de uma produção para esse mercado de design e uma produção considerável para o mercado de arte.

Montagem com vinte fotografias da mesma mulher, de pé, de corpo inteiro, alternando variações da mesma roupa. Uniform Project, de Sheena Matheiken, disponível em: https://theuniformproject.com/
E em verdade nem sempre é possível esterilizar os dois campos, assim como seus mercados. Difícil dizer onde pisam os pés do hiper-realismo escultórico desproporcional, de Ron Mueck, ou o jogo de “fama do anonimato”, de Banksy, que transforma seus graffiti em ícones de críticas sociais amenas. E nem é necessário saber que etiqueta formal exibe o Uniform Project, de Sheena Matheiken, proposta em que a idealizadora usa uma mesma peça de roupa durante um ano e, a cada dia, retira da peça uma nova variação estilística. Apesar do campo da moda já haver abraçado o Uniform Project, nada impede o interesse estético de refletir sobre as questões geradas por essa performance (?) para a arte, o design e além.
Os campos que tratam da estética seguem numa movimentação que entrincheira um no outro. É necessário reconhecer, por parte das academias, que todas as intenções são válidas para estudo e que não há lucro com a danação ou abandono de um item. A compreensão de que itens que não trazem questionamentos específicos para o campo da arte não são especificamente itens artísticos pode libertar estes itens para que sejam valorizados corretamente e sirvam, positivamente, como geradores de questões para outros campos.
[1] Item artístico refere-se a qualquer tipo de obra, ao artista, ao texto, assim como toda a estrutura que possa ser delimitada para estudo no campo da arte. Tal explicação é válida também para itens referentes a outros campos do conhecimento.
[2] Os nomes aqui citados servem ao texto apenas como exemplos vagos para estruturação de um raciocínio.
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