
Recorte da capa do Jornal Jamburana Literária. Ao centro, montagem com moldura de folhas entalhadas em madeira, dentro da moldura, busto de mulher preta com lua como auréola e céu estrelado. Na parte de baixo, recorte de foto de manifestação de indígenas com um homem erguendo a constituição brasileira em destaque.
Sobre o processo de escrita do conto “Circular mares e morros”. Jamburana. Tremor literário. Ano 04, nº 08, mar. 2022.
Texto de Rodrigo Hipólito
“Circular mares e morros” é o primeiro conto que publico em 2022. Os textos do jornal literário “Jamburana, tremor literário”, são editados por Daniel Prestes da Silva, com revisão de Carla C. Leão Pimentel e capa de Paola da Silva. Além do meu conto, essa edição conta com o ensaio “A invenção da viagem da mochila”, de Ester Paixão Corrêa, o conto “Convite”, de Lucas Garofalo Lopes, a crônica “Furo d’água”, de Raphael Carmesin, e a resenha “Nem Brasil profundo e nem regional: o gótico nordestino de Cristhiano Aguiar”, de Daniel Prestes da Silva.
Essa resenha me faz lembrar do episódio S05E03 do Não Pod Tocar, no qual eu conversei com o Moacir Filho sobre “Decolonialidade no novo horror gótico latino-americano”. O livro de Cristhiano Aguiar foi um dos citados no episódio.
Acredito que eu estou um pouco (muito) influenciado pela conversa com Moacir, pois passei a perceber algumas das características desse novo horror gótico no meu “Circular mares e morros”. Elementos do horror e da ficção absurda, certamente, estão presentes. O weird e o new weird são duas das minhas maiores influências para a escrita de ficção. Mas, não consigo deixar de pensar no peso do corpo-território e da digestão da história de opressão latino-americana através da ficção de horror. Um pouco disso está ali.
Outros aspectos que percebo, enquanto penso sobre esse conto, são a relação conflitante com a terra-natureza e a paisagem como patrimônio, as marcas do conservadorismo e da religiosidade (mais pressupostas do que ditas) e a experiência violenta com a urbanização.
Viviane nunca acreditou que passaria pelo drama de perder tudo e rastejar para a sua cidade natal. Sua cidade. Expressão sem sentido. Aquele lugar não a pertencia e ela jamais se deixou possuir por sua miséria poeirenta. Pegar o trem de volta era uma humilhação sem tamanho. Não sabia se sobreviveria ao peso do fracasso. Por isso, uma pressão esperançosa apertou se coração, quando os freios chiaram e os vagões pararam no meio da noite.
O título é um explícito trocadilho com mares de morros. Eu nasci nessa paisagem e, ainda que viva no litoral, o Espírito Santo é um estado que afirma uma grande intimidade entre o mar e as montanhas. Em poucos minutos, saímos das praias para as curvas estonteantes das montanhas verdes do interior do estado.
Essas curvas e a sensação de embrenhar-se entre as montanhas são algo presente em “Circular mares e morros”. Seja pelos trilhos do trem ou pelas estradas sinuosas, a experiência de ir e voltar de Minas para Vitória marcou, profundamente, as minhas percepções de tempo, da paisagem e do que esperar da vida.
Da minha cidade natal até a capital capixaba, gastava-se em torno de 3 horas de ônibus. Sair de manhãzinha, com o raiar do dia, e chegar no litoral com o estômago vazio, na hora do almoço, era algo que se repetia com certa frequência, até minha vida adulta.
As poucas paradas do ônibus, quinze, vinte anos atrás, eram quase um momento de aventura. O que poderia acontecer? Com quem eu poderia conversar? Quem eu encontraria? O que havia para ser descoberto naqueles postos de rodovia e entre aquelas montanhas, caso eu decidisse não retornar para o ônibus?
Talvez ela até preferisse não se comparar com uma planta. Preferia o ciclo da água. Evaporar. Chover sobre a Mata Atlântica e escorrer pela terra. Seguir para o encontro com suas memórias de infância nunca deveria ter sido uma opção. Mas, depois que as rodas de metal giraram sobre os trilhos, dar meia-volta para o litoral também seria uma espécie de retorno.
Depois de adulto, e de me instalar em Vitória, posso contar nos dedos as vezes em que voltei para Minas. Os motivos são os mais variados e não cabem neste curto texto de processo. Mas, podem ser imaginados pelo conteúdo deste e de outros contos. Em última análise, posso resumi-los em “não volto porque não quero”. Como o conto deixa nítido, retornar nem sempre é a solução.
Isso não significa que a paisagem que dá nome ao conto não tenha um sentido todo mágico e positivo em minhas memórias. Desde criança, a expressão “mares de morros” me soava (e ainda me soa) fantástica e instigante. Eu via, passava por elas e imaginava aquelas montanhas sem fim. Isso, muitas vezes, era o suficiente para que histórias absurdas brotassem em minha mente.
Nos mares de morros, todos os tipos de mistérios e surpresas pareciam possíveis. As noites daquelas matas cavernosas eram assustadoras e frias, mas tão convidativas! Isso não quer dizer que o desejo infanto-juvenil de fuga da realidade aterradora tenha se mantido por todo esse tempo. Talvez, esse seja o ponto que desencadeou a escrita de “Circular mares e morros”. Abrir portas para outros mundos, que podem ou não ser cheios de aventuras, é algo muito diferente de sair por aí em fuga desvairada, consumida pelo desejo de encontrar uma porta já aberta.
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