
Ator Demenson D’Alvaro interpretando Exú, na comissão de frente da escola de samba Grande Rio, no desfile do carnaval de 2022. Homem preto, magro, musculoso, com colares de contas cruzados no peito, visto de lado, gargalhando e com os braços abertos e mãos tensionadas. Ao fundo, partes de carro alegórico. A fotografia de Guto Moreto foi editada em alto-contraste de azul, preto e verde.
Transcrição do podcast Não Pod Chorar 37: Como não queimar raízes
Texto de Rodrigo Hipólito
Apresentação
E aí, gente perdida? Tá começando mais um Não Pod Chorar. Eu sou Rodrigo Hipólito e este é um derivado do Não Pod Tocar. Aqui, nós contamos algumas desventuras da vida e tentamos pensar em modos criativos de lidar com elas.
Se você chegou aqui agora e não conhecia o Não Pod Tocar, este é um podcast sobre teoria, história, crítica de arte e temas afins. No nosso feed, você encontra, além dos episódios do Não Pod Chorar, os nossos programas de temporada, com ensaios, entrevistas e bate-papo, e o Pataquadas, no qual a Alana de Oliveira repercute as principais notícias do mundinho da arte.
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Dados esses recados iniciais, neste episódio, você vai me ouvir falar um pouco sobre racismo religioso e algumas memórias desenterradas depois desse último carnaval. Eu vou tentar não fazer um episódio muito longo, nem muito chato. Mas, tem algumas informações e discussões que eu pretendo apresentar que não cairiam bem apenas nas minhas palavras. Então, prepare-se pra referências e citações!
Agora sem mais recados iniciais, vamos lá pro episódio, no qual eu te conto Como não queimar raízes.
***
Quando criança, aprendi a acreditar em um Brasil que nunca existiu.
Por muito tempo, eu me esqueci desse universo de fantasia que ocupou um pequeno espaço na minha cabeça. É até difícil de dar detalhes de como era essa paisagem, apesar de já ter me acostumado a criticar essa ideia.
Já fiz essa crítica em alguns episódios do Não Pod Chorar, principalmente, no “NPC19: como escapar do nacionalismo mestiço”.
Acontece que essa crítica costuma falar de modo amplo sobre como a democracia racial sempre foi uma mentira. Eu faço essa crítica, mas tenho dificuldades com ela. Não porque exista algum erro nisso, mas porque ela pode soar bem superficial e quase sem sentido pra quem ainda habita aquele Brasil que nunca existiu, aquele Brasil em que me ensinaram a acreditar, quando eu era criança.
Eu imagino que você, que me escuta, não habite esse universo de fantasia e, por isso, é fácil de compreender as afirmações de que o racismo está em cada tijolo das nossas cidades, em cada porta de condomínio, rua esburacada, grama de asfalto, crucifixo pendurado em câmara de vereadores, vitrine de loja de departamento, quarto de empregada, milhares de pessoas ainda escravizadas, em pleno 2022.
Mas, é bem provável que a maioria das pessoas pelas quais você passa, todos os dias, não se considere racista. Isso também parece meio óbvio, né? Afinal, se fosse o contrário, a gente não teria esse problema.
O que nem sempre é óbvio, é o tipo de mundo em que essas pessoas acreditam que vivem. Para você se surpreender com o fato de que a escravidão nunca deixou de existir, por exemplo, é necessário que você, no mínimo, pressuponha que ela deixou de existir. Mais do que isso, você precisaria pressupor que ela deixou de existir há muito tempo. A distância temporal é fundamental, caso você queira manter fora da cabeça das pessoas a compreensão de que as famílias ricas de hoje são herdeiras, direta ou indiretamente, das famílias que fizeram fortuna no auge do trabalho escravo como base da economia brasileira.
Se a pessoa seguir nesse caminho, quem sabe, ela chegue ao ponto de compreender que a reparação histórica precisaria ser feita ainda por centenas de anos e não apenas por duas ou três gerações. Isso seria, ainda, apenas um passo para compreender que a culpa por esse crime civilizacional vai permanecer com essa civilização pra sempre (ou, ao menos, até que ela desapareça).
Quer dizer, isso é uma mudança muito grande de percepção da realidade. Se a pessoa não tiver incentivo constante pra sair daquele buraco fantasioso, será impossível deixar de acreditar na mentira. Esse tipo de incentivo significa conviver com a consciência do crime e do horror todos os dias. Isso é um martírio mental e pouca gente está disposta a isso.
Se já não bastasse essa dificuldade, o discurso hegemônico tende a ir no sentido de apaziguar o conflito. É um eterno “deixa disso” que me dá nos nervos. Eu detesto esse papo paz e amor, calmaria, harmonia, águas passadas, vamos todos ser felizes como a grande irmandade de pessoas iguais. Eu detesto essa coisa de aceitar pedido de perdão e colocar uma pedra sobre o assunto.
Pedido de perdão é o cacete! Quer pedir perdão, fazer justiça histórica? Pois isso é o mínimo. A partir daí, vai ser conviver com a mágoa. E por conviver com a mágoa eu quero dizer jogar na cara todos os dias. Com conviver com a mágoa eu quero dizer que, mesmo depois que as feridas forem curadas (se forem curadas, algum dia), os dedos vão continuar apontados.
Acontece que, se você abaixar o dedo e virar as costas, vão te prender no tronco de novo.
Nessa semana, a gente assistiu ao filme “Medida provisória”. É o primeiro longa dirigido pelo Lázaro Ramos e é uma adaptação da peça “Namíbia, Não!”, de 2011, escrita por Aldri Anunciação e dirigida pelo mesmo Lázaro Ramos.
Não. Eu não vou fazer uma crítica ao filme. É melhor você assistir e ter a sua própria experiência. Como a maioria dos trabalhos de arte, “Medida provisória” tem pontos ruins e pontos bons.
Na narrativa, a compensação histórica para os povos pretos é negada pelo governo brasileiro e, no lugar disso, surge a decisão de enviar toda a população com, entre aspas, “aparência de preto”, de volta pra países africanos.
Daí você pode, como muita gente, imaginar que essa é uma situação absurda e que só poderia acontecer em uma ficção distópica. Pois é… mas, isso já aconteceu e foi em larga escala. Isso aconteceu de um modo tão extenso que é meio difícil não aceitar que o pensamento que diz “manda os preto pra longe do bairro branco” não tem, em parte, esse fundo.
Primeiro, vamos lembrar o que aconteceu nos Estados Unidos da América. Nas palavras de Vitor Izecksohn, no artigo “Deportação ou integração. Os dilemas negros de Lincoln”, publicado na revista Topoi, em 2010:
Aos negros restaria o retorno à África, possibilidade fortalecida pela criação da Sociedade Colonizadora Americana, em 1816. Esta organização surgiu dos esforços do pastor Robert Finley e de políticos de expressão a ele relacionados, incluindo o futuro secretário de Estado Henry Clay, que chegaria à presidência da organização, anos mais tarde. Ela levou à invenção da República da Libéria, um enclave criado no noroeste africano durante o governo do presidente James Monroe, com o objetivo de receber ex-escravos e negros livres. A Libéria tornar-se-ia um país independente em 1842, mas nunca conseguiu se constituir como uma opção efetiva para o projeto de colonização de alguns abolicionistas. Sua criação foi constantemente criticada pelas lideranças negras e por setores abolicionistas não comprometidos com a deportação dos libertos. Uma década depois da independência liberiana, um negro livre de Illinois, expressou o repúdio em relação à viabilidade da volta à África, declarando a seu interlocutor que “Prefer[ia] ser oprimido que me tornar o opressor”.
A despeito do fracasso da aventura liberiana, o pensamento emigracionista persistiu, com pequenas mudanças de destino, tornando-se a opção mais comum da maioria das forças políticas que resistiram à expansão da escravidão para o Oeste americano. O Haiti, o Panamá, a Nicarágua e o próprio Texas foram aventados como possíveis destinos para os negros livres. Os indivíduos que se opunham à escravidão por princípio tendiam, como o próprio Jefferson, a guardar sérias dúvidas de que o preconceito racial prevalecente em todos os estados da federação pudesse um dia ser superado. Lincoln compartilhou durante boa parte de sua vida dessa mesma suspeição (IZECKSOHN, 2010, p. 57).
Se você acha que isso aconteceu apenas nos Estados Unidos, sinto lhe informar que esse foi um movimento generalizado. Depois da exploração dos povos pretos e, quando ficou nítido que a escravidão seria considerada crime pelos estados liberais em poucas décadas, os movimentos de retorno começaram a ser incentivados por diversas organizações. Era uma espécie de deportação, mas com vários outros nomes e, principalmente, encoberta pela ideia de que a própria população preta liberta preferia voltar para o continente africano, mesmo que as pessoas fossem nascidas e criadas no Brasil.
Nas palavras de Mônica Lima e Souza, na tese “Entre margens: o retorno à África de libertos no Brasil 1830-1870”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, em 2008:
No lado brasileiro, a pressão sobre os libertos africanos – tratados muitas vezes como indesejáveis a partir dos anos 1830 – esteve presente na historiografia mais recente como uma das razões determinantes para os movimentos de volta à África. Essa característica que dá aos movimentos de retorno um forte viés de contragosto encontra plena justificativa na atmosfera repressiva da segunda metade dos anos 1830 em diante. A volta à África se colocaria quase como uma forma de deportação não explícita, como um caminho indesejável de saída assumido por setores da população de cor, face às inúmeras restrições impostas. A análise sobre os discursos formulados desde essa década em diante em prol de uma devolução dos negros à África traz com nitidez o desejo de branqueamento da sociedade brasileira, embutido nas propostas de apoio a um processo de retorno de libertos ao seu lugar de origem. Essa linha de interpretação também se reforçaria ao constatarmos que a maioria das saídas em direção à África ocorreu a partir da Bahia, mais especificamente do porto de Salvador, onde, desde 1835 especialmente, se intensificaram as ações de controle e repressão sobre os libertos africanos.
[…]
Dentro desse mesmo período, em especial nos anos imediatamente seguintes ao fim do tráfico, se assistiu ao crescimento considerável da população negra, africana e crioula, nas cidades brasileiras. As cidades negras do Brasil dos oitocentos também se tornaram focos de agitação e de seguidas medidas em busca do controle sobre a temida parcela de seus habitantes de cor. Nesse contexto ocorreu a greve negra de 1858 em Salvador, as formações de quilombos na periferia da capital da Corte, e as muitas ações policiais em busca dos chamados “ajuntamentos de negros”, onde libertos e escravos estariam em estado de conspiração permanente. Os representantes e porta-vozes da boa sociedade clamavam para que fosse dada uma solução nas tensas relações raciais que não poucas vezes se traduziam em protestos e conflitos. Para muitos, a solução era o envio dos “indesejáveis” de volta para sua terra de origem – algo como uma forma de deportação para os não adaptados.
Nas Américas negras, aquele também foi um tempo agitado. Assim como no Brasil, o Caribe escravista foi cenário de rebeliões de cativos com a participação de libertos, como, por exemplo, as ocorridas nos engenhos açucareiros da província de Matanzas e a insurreição de La Escalera entre 1843 e 1844, ambas em Cuba, com centenas de envolvidos. A esses levantes se seguiu uma dura repressão e o fortalecimento do discurso indicando a deportação dos rebeldes – reais ou presumíveis – como uma saída para conter a “onda negra”. (SOUZA, 2008, pp. 19-23)
Quer dizer, a segregação parece ser o único caminho que o estado liberal burguês concebe pra lidar com a culpa histórica. É óbvio que isso é uma não-solução e resulta em novas formas de violência contra as pessoas descendentes de escravizados.
De que tipo de segregação eu tô falando? Não é difícil de imaginar. Eu falo de favelas como campos de concentração; de periferias como dormitórios de subempregados enfiados por quatro horas em ônibus lotados, depois de oito horas de trabalho intenso, pra aproveitar suas quatro horas de sono antes de pegar o ônibus de volta até o outro lado da cidade; da inexistência de canais de TV aberta com conteúdo voltado pra religiões de matriz africana; da função explícita da polícia como braço do extermínio da juventude preta; do recorte racial das nossas cidade.
Em qualquer lugar do país onde você cair, você vai perceber a mesma estrutura. De um lado, bairros de pessoas pretas afastados do centro da cidade, como resquícios dos povos escravizados e, depois, largados como se nada tivesse acontecido; do outro lado, bairros de pessoas não pretas, com toda a estrutura construída, por séculos, as custas do trabalho escravo.
De repente, você pode pensar que isso é coisa apenas de grandes metrópoles. Pois eu lhe digo que não. Passa por aí, por cidades do interior. Vai ser fácil você encontrar uma mesma estrutura que se repete: no chamado perímetro urbano da cidade pequena, você encontra o centro comercial, as residências tidas como mais antigas, as praças centrais, as igrejas centrais e toda a estrutura entendida como “cidade”. Mas, se você atravessar um dos morros que cercam essa “cidade”, você, provavelmente, vai encontrar um bairro mais afastado, pouco mencionado pelos “cidadãos de bem”, onde mora uma população mais pobre, talvez em miséria, que aceita qualquer emprego, esquecida pelo poder público, e que, não por coincidência, é herdeira de escravizados.
Noutro dia, a gente falou, lá no podcast Pindorama, sobre o conto “Ruínas”, de Luísa Montenegro, publicado na revista Escambanáutica. Esse conto é maravilhoso, por diversas razões.
Uma das coisas que me impactou, nesse conto, é que a cidade do interior, na qual se passa a história, é muito parecida com a cidade na qual eu nasci. É tão parecida que chega dar nervoso. Não apenas pelo clima ultraconservador de cidade do interior, mas pelo próprio cenário. Eu falo sobre isso no Pindorama e, aqui, eu queria ressaltar a existência desse bairro de pessoas pretas, afastado do centro da cidade e praticamente escondido.
Segue um trecho do conto “Ruínas”, da Luísa Montenegro, que diz assim:
Se Iara estranhou Mariana marcar de encontrá-la no bairro pobre, fora dos limites oficiais de Ruínas, não disse nada. Sorriu quando a viu, desencostando-se de uma caçamba que vertia Hello Kitties. Tentou abraçá-la, mas Mariana desviou o corpo, os olhos perscrutando a rua por trás das lentes grossas.
— Desculpa, é que lá na minha cidade a gente se abraça quando se encontra. O povo de Ruínas é meio frio, né? — Iara levantou uma sobrancelha, o sorriso sarcástico contrastando com a simpatia do rosto. — Aliás, qual é a das Hello Kitties? Eu nunca vi tanta Hello Kitty na vida!
— É só uma coisa da cidade. De Ruínas, quero dizer. Nunca pensei muito sobre isso. Vamos?
(Se não fossem logo, Mariana desistiria.)
Iara assentiu com a cabeça e as duas caminharam em silêncio na direção do terreiro. Mariana nunca tinha ido ao templo, mas, como qualquer cidadão ruínense, sabia exatamente onde ele ficava. (Na verdade, essa era a primeira vez que ela se afastava tanto de Ruínas. Embora, na prática, o bairro pobre fosse colado à cidade, anos antes, em uma ação conjunta entre a Igreja e a Prefeitura, Ruínas se separou oficialmente dos bairros periféricos que a ladeavam. Em seu limiar patético de existência, Mariana nunca teve necessidade ou curiosidade de explorar o restante da região).
Ouviram os tambores muito antes de sequer estarem próximas. À medida que avançavam pelo bairro, as ruas pavimentadas davam lugar a ruelas de terra batida. Casas coloridas emolduravam o caminho e crianças felizes brincavam com versões nossas sujas de barro vermelho.
O terreiro era um barraco com teto de zinco. Mariana estancou na porta, as mãos geladas. Macumba! Blasfêmia!, a cidade ecoou em sua cabeça, mas Iara sorria com o corpo inteiro. Saudou os assentamentos como se fosse dali mesmo, deu boa noite e saiu arrastando Mariana para dentro com um puxão de ventania.
Magia negra! Sortilégio!
Mariana alarmou-se com o ambiente iluminado por velas, o altar de santos de gesso desbotados, as mulheres e homens vestidos de branco, os colares de contas coloridas, a fumaça espessa cheirando a alecrim e alfazema.
Inferno!
Mas Iara pediu a benção à mãe de santo. Repetiu o cafezinho no copo de barro e passou mais quando a garrafa terminou, e àquela altura ninguém mais poderia dizer que ela não era dali mesmo, com as roupas brancas, o sorriso largo, cantando os pontos, dançando, batendo palmas.
Pecado!
Iara em transe, girando, afogando o barracão com seu cheiro de dama-da-noite. E ali, vendo-a rodopiar, era como se nada mais importasse para Mariana, nem o casebre, nem a cidade, nem as noites insones, nem o simulacro de vida a que estivera presa até aquele momento.
Tudo tragado pelo redemoinho de Iara.
Isso é muito real. Lá na minha cidade de infância, esse bairro era do lado de um dos morros que cercavam a cidade e não havia estrada pra chegar nele. Se você quisesse chegar até esse bairro escondido, teria que enfrentar trechos de terra batida bem íngremes e torcer pra não chover.
Apesar de ser escondido, todo mundo na cidade sabia da existência do bairro. As crianças de lá vinham estudar na mesma escola que todas as demais crianças. Trabalhadores e trabalhadoras de lá atravessavam a barreira do morro de terra todos os dias. Todo mundo sabia que existiam terreiros na cidade. Mas, isso só poderia ser mencionado como algo misterioso e assustador.
De vez em quando, no começo das manhãs, no caminho pra escola, eu encontrava restos de rituais e oferendas. Nesses momentos, quase como um alarme, soava a voz que dizia “Macumba! Blasfêmia!”.
Sempre tinha os meninos que se faziam de corajosos por roubar a bebida e chutar as velas deixadas na esquina. Toda a semana aparecia alguma história de que “fulana tinha feito macumba pra não sei quem e não sei o que lá bateu pemba e não sei mais o que fez trabalho pra não sei quem o demônio cuidado com essas coisas menino!”.
As crianças corriam atrás de um idoso pelas calçadas e gritavam “Tranca rua! Tranca rua”. Se aparecia um tambor em qualquer festejo mais colorido de Dia de Reis, todo mundo se afastava e as portas das casas se trancavam.
Eu ainda cheguei a ver alguns desses festejos circularem pelas casas de uma das periferias em que a gente morou. Mas, eu era bem pequeno. Quando eu comecei a frequentar a escola e andar sozinho pela cidade, isso já tinha se acabado… ao menos o chamado perímetro urbano da cidade.
Não deveria ser surpreendente que, até hoje, em qualquer canto desse país, em cidade grande ou pequena, os ritos das religiões pretas sejam associados ao Mal, ao demônio cristão e a intenção de prejudicar alguém. Isso é ainda mais ridículo quando você nota como as igrejas evangélicas de subúrbios são formadas por pessoas pretas e seu modo de expressão ritualístico é repleto de elementos de religiões de matriz africana.
Essa mudança que eu percebi, lá na minha infância, tem relação direta com a ascensão de um tipo específico de discurso religioso. Eu sei que, pra muita gente, é complicado tocar nesse tipo de discussão. Então, vou deixar isso com quem pesquisa o assunto. No artigo “‘Batalha espiritual’: intolerância neopentecostal e reconfigurações identitárias nas religiões de matriz africana”, de Janderson Bax Carneiro, ele diz o seguinte:
Os estudiosos costumam dividir a história do pentecostalismo em três momentos significativos e, de modo geral, a terceira fase do movimento é caracterizada pela confluência, a partir da década de 1970, de uma série de características que estabelecem um corte significativo em relação às tendências doutrinárias e rituais anteriores. Dentre elas, podemos destacar: o abandono ou sensível redução do ascetismo; a nítida valorização do pragmatismo, expresso na busca por resolução de problemas práticos; a incorporação de modelos de gestão empresarial à direção dos templos; a ênfase na teologia da prosperidade; o uso massivo de recursos midiáticos na propaganda e ações proselitistas; e, de modo bastante enfático, a adoção de uma teologia marcada pela noção de “batalha espiritual (…). Tendo como expressão mais paradigmática a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), esse movimento desencadeou uma inflexão tão significativa no âmbito do pentecostalismo que este mereceu o acréscimo do prefixo latino “neo”.
(…)
Desse modo, a exegese neopentecostal do mundo e o mecanismo proselitista a ela correspondente consistem, basicamente, na seguinte operação: essas igrejas postulam que as mazelas humanas decorrem das intermitentes ações demoníacas sobre os homens e mulheres de carne e osso. Por outro lado, buscam demonstrar as origens de tais ações e estas estão, inexoravelmente, nos contatos travados com as religiões afro-brasileiras, ou nos feitiços nelas encomendados. Em seguida, oferecem a solução. Isto é, para além da revelação das origens da aflição, as igrejas propõem uma solução imediata, propiciada por uma capacidade outorgada pelo próprio Deus aos seus agentes para que estes neutralizem o mal. Sob esse prisma, a infelicidade conjugal, o insucesso profissional, a pobreza e todos os infortúnios decorrem de uma matriz espiritual, ou seja, de uma aproximação experimentada pelo sofredor com as forças malignas. E estas estão, antes de tudo, alocadas entre os seres sagrados do panteão afro-religioso, especialmente entre os exus […] vale destacar que a centralidade da “batalha espiritual” é materializada em inúmeras estratégias de combate e, dentre elas, parece ser digna de nota a patente valorização da prática do exorcismo.
(…)
Nesses rituais, os demônios não são evocados a partir de uma identidade genérica. Isto é, não são revelados como sendo o bíblico Satanás e sua corte de anjos decaídos. Aqui, os agentes das trevas assumem abertamente os nomes dos seres sagrados cultuados nas religiões de matriz africana, especialmente dos exus, secularmente identificados como sendo expressões do Diabo Judaico-Cristão e seus agentes. Exu Caveira, Maria Padilha e Zé Pelintra estão entre os muitos entes espirituais inquiridos nos templos neopentecostais, onde são responsabilizados por todos os infortúnios apresentados pelas pessoas submetidas ao exorcismo, questionados sobre como tiveram acesso às vidas de suas vítimas, humilhados e expulsos delas. Cabe salientar que, sob hipótese alguma, os pastores pretendem esvaziar o estatuto de realidade conferido à existência desses seres. Ao contrário, a veracidade do poder de ação das potências espirituais é realçada e constitui um conduto importante no reforço da pertinência do combate travado com elas. Mas se, mesmo para alguns praticantes da umbanda, os exus podem estar associados ao Diabo e seus subordinados, o que os neopentecostais visam, então, desvendar? Pois bem, a leitura neopentecostal das entidades pretende afirmar que elas não eram passíveis da negociação com os seus devotos, tal como estes, de modo um tanto “inocente”, acreditavam quando frequentavam os terreiros de umbanda e candomblé.
Desse modo, os neopentecostais engajados no combate às religiões de matriz africana são verdadeiros especialistas na promoção de um deslocamento interessado de símbolos oriundos das casas de axé, mobilizando tais símbolos segundo os interesses persecutórios da “batalha” que proclamam.
Esses signos, quando deslocados do seu contexto original, são evocados na afirmação de que a estética ritual que veiculam responde às práticas demoníacas que a igreja pretende denunciar. E isso ocorre, principalmente, a partir da captação de elementos já considerados controversos no senso comum, isto é, passíveis de suspeita na sociedade envolvente, como a prática do sacrifício de animais, por exemplo. (CARNEIRO, 2021, pp. 80-97)
Quer dizer, esse tipo de racismo e outros preconceitos são usados como armas para manipular as próprias populações que têm suas raízes queimadas, suas terras invadidas e seus corpos escravizados (o exemplo da alienação dos aproveitadores da fé cristã é o só mais óbvio).
E pra encerrar, eu retorno ao começo. Eu comecei a fazer esse episódio por conta de uma lembrança. Eu me lembrei da estranha sensação de acreditar no Brasil como o país da tolerância, onde seria possível ter qualquer religião, expressar qualquer sexualidade, fazer qualquer tipo de arte, exibir qualquer roupa.
Durante alguns poucos anos de vida, eu aprendi que o Brasil era o melhor país do mundo. Afinal, era fácil encontrar exemplos de outros países, nos quais parecia ser apenas permitida uma religião, uma cor, uma música, um amor.
Fazia tanto tempo que eu não me lembrava dessa ideia de Brasil, que ficou um gosto muito amargo. Quanto mais do mundo eu podia observar, menos sentido isso fazia. O fim da minha infância veio com a compreensão de que não apenas aquela ideia de convivência harmoniosa era uma mentira, mas de que o lugar onde eu nasci tem orgulho do que há de pior. Não basta ser desigual, é necessário louvar a desigualdade; não basta ser violento, é necessário louvar a violência como um grande espetáculo; não basta produzir a miséria, é necessário torturar e matar os miseráveis em rede aberta;
Curiosamente, essas memórias vieram em um momento de alegria. Essas memórias vieram durante a maior demonstração de humanidade que nós temos. Essas memórias vieram quando uma ponta de esperança abriu os caminhos…
[segue um trecho de “Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu”. Samba enredo da Grande Rio, campeã do carnaval carioca de 2022. Arlindinho, Gustavo Clarão, Jr. Fragga, Cláudio Mattos, Thiago Meiners e Igor Leal.]
Encerramento
Taí! Encerrando mais um Não Pod Chorar. Gostou? Não Gostou? Fala com a gente. Você pode entrar em contato com a gente através do nosso e-mail, que é naopodtocar@gmail.com, ou dos nossos perfis pessoais e oficiais, que estão todos linkados na descrição completa deste episódio, na postagem original, em notamanuscrita.com.
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Por hoje é isso, se nada der muito, mas muito, muito errado, semana que vem, a gente tá de volta. Valeu! Falou!
Comentados e referências
– [podcast] Não Pod Chorar 19: como escapar do nacionalismo mestiço;
– [podcast] Pindorama T03E04: Ruínas, de Luísa Montenegro;
– [revista] Escambanáutica ano 1, número 4;
– [filme] Medida provisória (2020);
– [artigo] IZECKSOHN, Vitor. Deportação ou integração. Os dilemas negros de Lincoln. Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 55-74;
– [artigo] CARNEIRO, Janderson Bax. As configurações das identidades em tempos de intolerâncias e fundamentalismos. In: GABATZ, Celso; ANGELIN, Rosângela (Org.). As configurações das identidades em tempos de intolerâncias e Fundamentalismos. 1. ed. Foz do Iguaçu: CLAEC e-Books, 2021, pp. 80-97;
– [tese] SOUZA, Mônica Lima e. Entre margens: o retorno à África de libertos no Brasil 1830-1870. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Orientação da Profª Dra. Hebe Maria Mattos. Rio de Janeiro: UFF, 2008.
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