
Fundo em duas cores, amarelo na parte de cima e cian na parte de baixo. No encontro das duas cores, textura de pinceladas de tinta. Ao centro da imagem, uma forma abstrata que parece misturar uma figura humana vestida com uniforme industrial azul e vermelho e uma máquina com carcaça vermelha quebrada. Ao lado esquerdo dessa abstração, uma mancha vermelha que lembra sangue derramado. O vulto humano aparece em pinceladas bem marcadas. Já a carcaça da máquina, é mais naturalista, com sombra marcando um possível piso.
Texto de Rodrigo Hipólito
Escrever histórias ambientadas nos lugares onde moramos modifica nossa relação com a narrativa de maneiras imprevisíveis. Eu sei que esse é um comentário muito comum, ao menos quando aparece como dica de escrita.
A sugestão para que escrevamos histórias que se passem em ambientes que conhecemos faz sentido e funciona muito bem para escapar de gafes. Além disso, nós costumamos consumir muita ficção ambientada fora dos nossos contextos culturais. Isso vale para histórias que, supostamente, acontecem em mundos fantasiosos, mas que, no fim das contas, são apenas as mesmas paisagens europeias e estadunidenses, acrescidas de monstros artificiais.
Se sairmos das ficções fantásticas e nos voltarmos para a literatura mimética, esse comentário continua válido.[1] Não é preciso ultrapassar a linha do Equador para perceber que há uma reprodução confortável de paisagens estereotipadas em nossos dramas naturalistas. Podemos permanecer no Brasil. A forma da paisagem urbana, que inclui seus modos de vida, pouco escapa do pêndulo Rio/São Paulo. Seu contraponto rural não costuma ir muito longe da dupla sertão/fazenda. Com relação à crítica do segundo caso, há uma infinidade de ressalvas que você pode elencar sem muito esforço.
Para além da dica de escrita, ambientar suas histórias em paisagens que você habita ou habitou, faz surgir brechas que a distância não permite perceber. Primeiro, é preciso romper o constrangimento. Pode ser difícil de compreender os motivos pelos quais usar espaços locais, nomes locais e termos corriqueiros costuma deixar uma impressão, para quem escreve, de que tudo é “bobo” ou “engraçado”.
Se sua personagem soa mais complexa e séria porque se chama Fitzgerald e não Geraldinho, você tem um problema que precisa encarar. A percepção de que ambientes e termos estrangeiros são mais sérios, profundos ou complexos do que os espaços em que vivemos e os termos que usamos no cotidiano é fruto de um longo processo de inferiorização e ridicularização da América Latina.
Essa percepção deturpada de que “nós” somos ridículos e “eles” são sérios é parte da manutenção da hierarquia de narrativas. Essa hierarquia permite que europeus e estadunidenses possam falar sobre o que quiserem, enquanto nós somos restritos a certos temas e formatos.
Voltemos para as narrativas fantásticas.
Narrativas fantásticas sempre tiveram mais dificuldade de romper essa barreira colonialista. Parece muito simples aceitar a seriedade de mitos e lendas europeus e estadunidenses em histórias de qualidade. Perceba a diferença entre o uso de elementos folclóricos em histórias de horror daqui e de lá. No caso brasileiro, tais elementos apenas ganharam espaço como narrativas infantis e infantilizadas.
Algo distinto, porém, não muito distante, ocorre com narrativas de ficção científica. Ainda que as histórias sejam ambientadas em outros planetas ou em futuros longínquos, o destino cultural ali expresso é o desdobramento dos modos de vida estadunidense e europeu. Essa limitação é tão estúpida, que leva ficcionistas a jamais conseguirem imaginar sociedades que escapem dos preceitos éticos, morais, religiosos, sexuais, econômicos e estéticos dos atuais padrões dominantes.
Caso foquemos em personagens, os dilemas e quadros emocionais podem fugir tanto do que encontramos do outro lado de nossas portas, que o consumo exclusivo de ficção estrangeira, talvez, dificulte nossa percepção adequada das pessoas que nos cercam. O exemplo mais recente diz respeito à separação entre gerações. Muito do que se estabeleceu como características de millenials, gerações X, Y e Z, pouco ou nada diz respeito às experiências de vida dos mais variados cenários socioeconômicos latino-americanos.[2]
E como escapar disso?
Não faço ideia. Ou melhor, tenho algumas ideias. Mas, as soluções são extensas demais, e eu duvido que alguém tenha começado a ler esse texto com a intenção de cair em links de cursos de ciências políticas e econômicas.
No meu caso, ler literatura e cinema latino-americanos já foi um bom começo. Caso a sua percepção sobre o que é interessante na literatura e no cinema tenha sido construída apenas com exemplos estrangeiros, é provável que você precise fazer algum esforço para deixar de achar ruim o que apenas foge desses padrões.
Quando você é capaz de perceber a qualidade dessas narrativas, a sua escrita pode ganhar consistência. Isso significa que as suas descrições de cenários serão menos baseadas na quantidade de elementos que você consegue detalhar e mais centradas na densidade de significados contidos em uma ou outra coisa.
Além disso, as expressões, memórias, dilemas e perspectivas de ação do seu Geraldinho permitirão mais identificação e compreensão de quem lê do que o drama normando, frio e calculista do seu Fitzgerald.
Tenho tentado trabalhar dessa maneira com minhas narrativas mais recentes. Isso envolve não apenas escapar daquela valorização do estrangeiro como mais sério e complexo, como dedicar-se à observação e coleta de dados locais. Em palavras menos enjoadas: fale dos seus vizinhos.
A minha vizinhança tem gerado os cenários com os quais mais tenho gostado de trabalhar. O bairro de Jardim da Penha, em Vitória, onde moro, aparece em algumas das minhas narrativas mais recentes, já lançadas ou por lançar. Também explorei cidades próximas e bairros com características muito diferentes das de Jardim da Penha. Voltei minha atenção para a metade da vida que passei em cidades do interior, e isso também funciona muito bem. Em ambos os casos, procurei recolher elementos densos de significado, pelos quais passei ou com os quais vivi.
Nessa conta, eu incluo as pessoas como elementos narrativos. As personagens que escrevo, hoje, são quase todas inspiradas em pessoas que conheci, conheço ou que compõem a paisagem em que vivo. As explicações sobre como a observação dessas pessoas é inevitável e que, por isso, é mais interessante fazer esse tipo de mergulho para compor personagens, vou deixar para outro momento.
Por enquanto, esse texto já demonstra um pouco do que considerei para a escrita da noveleta “A morte do vizinho da serra elétrica”, que lancei no último mês. Encerro com parte da sinopse que fala sobre as cinco personagens ali desenvolvidas (além do vizinho barulhento).
Dina aceitou morar em um apartamento tomado por mofo e cupins, depois de ficar meses presa por um crime que muita gente comete em segredo. Cezinho acumula toda a sorte de tralhas que encontra pela rua, mas isso não encobre o medo da solidão que ele mesmo construiu. Margareth quer aproveitar a liberdade que conquistou somente após a viuvez, ainda que o corpo se recuse a lhe dar mais tempo. Mara se considera uma especialista em fugir da violência urbana e, talvez, isso a desvie de seus próprios ímpetos violentos. Ricardo está disposto a apanhar para provar que não é apenas um homem molenga, contanto que isso lhe renda oito horas de sono. Nenhuma dessas pessoas imaginava quais eram os problemas do vizinho da serra elétrica.
Essas personagens são inspiradas em pessoas pelas quais eu passei, ou que ainda estão por aqui. Conheci os apartamentos e o prédio onde se passa a história. Escuto os barulhos que as personagens escutam. Não tenho dúvidas de que outras pessoas também escutam sons parecidos, moram em apartamentos parecidos e enfrentam problemas parecidos. Só espero que nenhum desses problemas seja igual ao Vizinho da serra elétrica.
[1] A separação entre literatura fantástica e literatura mimética, ou naturalista, guarda muitos níveis de preconceitos. Você pode passar boa parte da sua vida lendo sobre esse assunto e o debate não se encerrará. Por isso, é mais simples indicar esse fio do Moacir, no qual ele argumenta em favor do realismo próprio da literatura fantástica.
[2] Muitas dessas caracterizações podem se enquadrar no seu caso. Isso ocorre, notadamente, quando restringimos os exemplos à vida urbana em grandes centros, como as capitais dos estados e suas regiões metropolitanas. Se você considerar, por exemplo, a presença e o uso da internet, no Brasil, é fácil perceber como esse elemento fundamental para a caracterização das chamadas gerações X, Y e Z não bate com a maior parte da nossa população não-urbana. Se quisermos falar em escala mundial, podemos voltar quase uma década e notar como a ideia de “nativos digitais” é estupidamente excludente.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.