[crônica] Esparcar de baixo pra cima

Crianças de coração, de Betty Acquah, pintura, 2016.

Crianças de coração, de Betty Acquah, pintura, 2016. Duas figuras de crianças, com vestidos, uma de costas para nós, à direita, outra de frente, à esquerda. A da direita parece caminhar com vontade, com braços meio abertos em movimento. A da esquerda tem as duas pernas firmes no chão, com os joelhos meio dobrados e as mãos juntas na frente do corpo. Toda a pintura é feita com pontilhismo de pinceladas grossas, em tons de vermelho, branco, rosa, roxo e marrom.

Texto de Fabiana Pedroni

O pé esquerdo não sabe que o direito caminha pra frente. Um corpo que esparca por pura incompetência. Quando criança, a mãe lhe dizia:

— É dois pra lá e dois pra cá. Não é difícil! Tá pior que boneco de posto isso aí.

Não era pra ser difícil. O pé esquerdo se tornou sensível. O desencontro do corpo o faz querer cavar um buraco e não se movimentar nunca mais. Ele até tenta fazer isso. O máximo que consegue é deixar pegadas esquisitas, confundidas com bicho perdido. É afundar o dedão mais fundo; o pé direito já está no próximo passo.

O pé esquerdo consegue caminhar. Ele pode e sabe, mas não entende de ritmo. Tenta várias vezes explicar a situação. Suas sinapses não levam a informação de forma correta. Desconfia de que elas são interceptadas pela geleca que a menina comeu quando criança. Troço fluorescente. Dissolveu parte do estômago em amarelo piscante.

Toda vez que ela tinha gases, o corpo piscava. Era um caos! Disseram que, com o tempo, as substâncias seriam eliminadas. Mas, onde já se viu ter vagalumes dentro do corpo? Na roça, o pé tinha até chutado uns desses insetos sem querer.

Com certeza o cérebro a avisou, a língua gritando:

— Não coma!

Mas a mão era mais teimosa que tudo e a garganta vivia brigada com a língua. Se passasse algo pela língua, a garganta não travava de jeito maneira. Por isso, o pé esquerdo acreditava que, muito mais pode ter sido comido sem ele perceber. Lá na ponta do corpo, no outro extremo, com vista baixa, era difícil identificar o que estava acontecendo na cabeça.

Preciso, nessa altura do texto, me corrigir. O pé esquerdo não é sensível. O direito que é insensível. Privilegiado de sorte, aquele que começa os passos, não pensa em nada do que acontece acima do calcanhar. Só recebe o comando e o segue. Um amontoado de ossinhos articula o movimento, sem explicação do que vem pela frente, sem cheiro, sem dúvida, sem nada vivo. Só um fluxo contínuo de obediência.

Acredite, explico tudo isso enquanto o corpo da moça continua a esparcar, a se abrir lentamente em um grau que o quadril sedentário talvez não aguente por muito tempo. O pé direito insiste em finalizar o passo pra frente, enquanto o esquerdo tenta compreender aquele maldito pisca-pisca amarelo, logo acima do dedão. Se os olhos da moça não estivessem tão ocupados procurando onde se apoiar para segurar o corpo, teriam visto que a unha se tornou translúcida e irradia amarelo piscante gosmento, um grande alerta de que está tudo para desabar.

Sem onde se apoiar, as mãos não alcançam o chão. As costas entram em conflito com o peito e o corpo não pende nem para frente, nem para trás. Afunda, extremamente ereto, com todo o peso concentrado no quadril, que se racha pouco a pouco.

— Um corpo crocante — pensou o pé esquerdo.

Se ele tivesse boca, gritaria para o joelho direito dobrar-se; diria para as costas cederem, porque cair de bunda é sempre mais seguro; aconselharia o cérebro a ser mais orquestrador e as mãos a terem prudência.

A verdade é que, se o pé esquerdo tivesse boca, ele só estaria rindo. Não há mais nada o que fazer. A situação é ridícula. Os ossos do quadril se desencaixam. Cada peça de um quebra-cabeça que cai no chão é um grito de dor da menina. Sofre sem nem entender o porquê. Com os ossos se quebrando e se soltando dentro da pele flácida de um corpo jovem malcuidado, o pé esquerdo lembra-se dos trovões do dia em que a menina comeu a geleca grudada na parede.

Foca sobre o dedão piscante. Pensa sobre esses falsos vagalumes o faz uma última pergunta que acompanha o último croque do corpo crocante, antes de desabar ao chão:

— Por que eu não me lembro de nenhum outro pensamento antes do dia da geleca gosmenta?

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