[resenha] Semiótica aplicada, de Lúcia Santaella

Texto de Rodrigo Hipólito

SANTAELLA, Lúcia. Semiótica Aplicada. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2005.

Há alguns meses, precisei preparar uma aula sobre semiótica para turmas do curso de design. Diferente de outras aulas e cursos que preparei, a compreensão do ideário deveria estar submetida aos usos e a exemplificação tomaria boa parte do esforço. Gosto de exemplificar, mas fiquei com receio de que tudo se tornasse enfadonho, simplista ou pior, enfadonho e simplista.

Da bibliografia recomendada, o livro “Semiótica Aplicada”, de Lúcia Santaella, foi um dos que mais me ajudou. A maior parte dos capítulos do livro está voltada para a exemplificação e aplicação dos conceitos para leitura e composição de signos em embalagens, publicidade, vídeos, algumas obras de arte e comportamentos. Os exemplos e capítulos estão divididos em três níveis de profundidade: elementar, intermediário e avançado.

Como as resenhas que publicamos aqui, no Nota, nem sempre são tradicionais, é bom lembrar que esse livro possui resenhas acadêmicas mais capazes de realizar uma síntese do livro em poucas páginas.[1] Para não repetir o trabalho que essas resenhas já realizaram, vou me preocupar mais em elencar os principais pontos e trechos que me foram úteis para tratar do assunto em sala de aula. Não. Isso seria muito. Vou ficar apenas com os pontos que foram úteis para introduzir o assunto.

O primeiro deles é a lembrança de que Santaella faz uma escolha pela obra de Pierce como a mais adequada para trabalhar com a aplicação no design, mas não deixa de ressaltar como a semiótica pierciana está alicerçada na fenomenologia. Em uma frase que pode soar um pouco estúpida e irritar quem estuda a história da fenomenologia, ela trabalha com os modos como apreendemos e digerimos quaisquer fenômenos. Eu sei, isso não parece dizer muita coisa. Mas, considere que a fenomenologia surge como método e, por isso, influencia muito do pensamento do século XX e XXI. Considerar como os fenômenos são apreendidos é, primeiramente, pensar como as coisas surgem para a consciência. O foco está no método, antes de estipular qualquer hipótese.[2]

A partir da fenomenologia, podemos pensar três ciências normativas: estética, ética e lógica (que estudam ideais, valores e normas). A estética se pergunta sobre os ideias que guiam nossa percepção e sentimentos. A ética se pergunta sobre os ideais que orientam nossa conduta. A lógica se pergunta sobre os ideais e normas que conduzem nosso pensamento.

Pierce percebe que a lógica depende da compreensão dos signos para que possa expressar ideias corretas. De certo modo, a semiótica nasce dessa percepção. Afinal, como é possível transmitir um significado de uma mente para outra através de signos? Para responder a essa pergunta, a semiótica de Pierce divide-se em três ramos:

– A gramática especulativa;

– A lógica crítica;

– A metodêutica ou retórica especulativa.

A gramática especulativa é o estudo de todos os tipos de signos e formas de pensamento que eles possibilitam. A lógica crítica toma como base as diversas espécies de signos e estudo os tipos de inferências, raciocínios ou argumentos que se estruturam através de signos. Esses tipos de argumentos são a abdução, a indução e a dedução. Por fim, tomando como base a validade e força que são próprios de cada tipo de argumento, a metodêutica tem por função analisar os métodos a que cada tipo de raciocínio dá origem. Portanto, a metodêutica estuda os princípios do método científico, o modo como a pesquisa científica deve ser conduzida e como deve ser comunicada. Por isso, a metodêutica e a retórica especulativa compõem juntas o terceiro ramo da semiótica (SANTAELLA, 2005, p. 3-4).

Quer dizer, a gramática especulativa é a ciência geral dos signos. Ela toma a liderança quando precisamos pensar formas de aplicação e leitura de signos aplicados. Seus conceitos nos permitem “descrever, analisar e avaliar todo e qualquer processo existente de signos verbais, não-verbais e naturais: fala, escrita, gestos, sons, comunicação dos animais, imagens fixas e em movimento, audiovisuais, hipermídia, etc.” (p. 4).

Além disso, a gramática especulativa nos permite falar sobre tudo o que está implicado nas linguagens e signos, com suas significação, objetivação e interpretação. Isso explica a popularidade da semiótica pierciana nos cursos ligados às artes. Para Pierce, o signo é de uma natureza triádica e pode ser pensado:

– em si mesmo, nas suas propriedades internas, ou seja, no seu poder para significar;

– em sua referência àquilo que ele indica, se refere ou representa; e

– nos tipos de efeitos que está apto a produzir nos seus receptores, isto é, nos tipos de interpretação que ele tem o potencial de despertar nos seus usuários. (p. 5)

Perceba que a gramática especulativa, e a semiótica como um todo, apresenta conceitos amplos, abstratos e gerais. Não se trata de uma chave-mestra para compreender quaisquer tipos de mensagens em todas as suas camadas. Ainda que essa seja a impressão que, muitas vezes, seja retida pela popularização da semiótica pierciana, as exigências e alertas para a gramática especulativa estão muito distantes do que se costuma encontrar em fios de Twitter ou vídeos de YouTube. Para

(…) analisar semioticamente filmes, essa análise precisa entrar em diálogo com teorias especificas do cinema. Para analisar pinturas, é necessário haver um conhecimento sobre teorias e história da arte. Para fazer semiótica da música, é preciso conhecer música, e assim por diante. Não se pode fazer análise peças publicitárias sem algum conhecimento de sintaxe visual, design, etc. (p. 6).

Ou seja, a gramática especulativa nos dá alguns recursos para compreendermos o funcionamento contextual dos signos. Dizer que qualquer coisa funciona como signo não significa dizer que qualquer coisa funciona da mesma maneira em qualquer contexto. Ao desconsiderar as teorias específicas de cada área para se realizar uma leitura semiótica, ou mesma a compreensão dessa leitura, quando apresentada, perde-se contato com algumas ideias centrais sobre signos.

o signo é qualquer coisa de qualquer espécie (uma palavra, um livro, uma biblioteca, um grito, uma pintura, um museu, uma pessoa, uma mancha de tinta, um vídeo, etc.) que representa uma outra coisa, chamada de objeto do signo, e que produz um efeito interpretativo em uma mente real ou potencial, efeito este que é chamado de interpretante do signo. (p. 8).

Signo, objeto e interpretante apontam para as teorias da significação, da objetivação e da interpretação:

– Da relação do objeto consigo mesmo, isto é, da natureza do seu fundamento, ou daquilo que lhe dá capacidade para funcionar como tal, que, como será detalhado mais para frente, pode ser sua qualidade, sua existência concreta ou se caráter de lei, advém uma teoria das potencialidades e limites da significação.

– Da relação do fundamento com o objeto, ou seja, com aquilo que determina o signo e que é, ao mesmo tempo, aquilo que o signo representa e ao qual se aplica, e que pode ser tomado em sentido genérico como o contexto do signo, extrai-se uma teoria da objetivação, que estuda todos os problemas relativos à denotação, à realidade e referência, ao documento e ficção, à mentira e decepção.

– Da relação do fundamento com o interpretante, deriva-se uma teoria da interpretação, com as implicações quanto aos seus efeitos sobre o intérprete, individual ou coletivo. (p. 10).

Para ser um signo, um fenômeno precisa cumprir as condições de qualidade, existência e lei. Apresentar-se como qualidade permite a identificação da coisa a partir do modo como ela se mostra (o azul claro, por exemplo, é conhecido como azul celeste ou azul bebê, por conta de sua qualidade). Quando funciona como signo, uma qualidade é chamada de quali-signo.

A condição de existir é a de relacionar-se com outros existentes. “O existente funciona assim como signo de cada uma e potencialmente de todas as referências a que se aplica, pois ele age como uma parte daquilo para o que aponta. Essa propriedade de existir, que dá ao que existe o poder de funcionar como signo, é chamada de sin-signo, onde “sin” quer dizer singular.” (p. 13).

Já quando alguma coisa possui propriedade de lei, dizemos que se trata de um legi-signo. Para possuir essa propriedade, basta pertencer a um sistema organizado. “No caso das palavras, por exemplo, elas são leis porque pertencem a um sistema, sem o qual não passariam de tartamudeios. […] Se um fundamento é um quali-signo, na sua relação com o objeto, o signo será um ícone; se for um existente, na sua relação com o objeto, ele será um índice; se for uma lei, será um símbolo” (p. 14).

Uma e três cadeiras. Joseth Kosuth. Café Kosuth, Fabiana Pedroni.

Café Kosuth. Fabiana Pedroni, 2021. Intervenção digital em fotografia da obra Uma e três cadeiras, de Joseph Kosuth. Na esquerda da imagem uma fotografia de cadeira de madeira pendurada na parede, com uma colagem de foto de xícara de café. Ao centro uma cadeira de madeira com uma colagem de ilustração de xícara de café. Na direita superior uma placa com texto que define uma cadeira, abaixo, um balão com o seguinte texto: “Cafezinho da Vó: m.q. hora de prosear. Adjetivo para algo carinhoso. Usado também em performance”.

Embora isso pareça nos distanciar do que comumente é apresentado logo no início das aulas de semiótica, talvez seja uma boa escolha de Santaella. Afinal, em poucas páginas, a autora traça as linhas da tríada mais conhecida da semiótica pierciana. Sem traçar essas linhas e compreender seus fundamentos, correríamos o risco de receber essa tríade de tipos de signos como capsulas sólidas, prontas para serem disparadas. Ao compreendermos as condições de qualidade, existência e propriedade de lei, as outras trincas fazem sentido.

Vem dessa distinção tripartite a divisão dos objetos imediatos em três tipos: descritivos, designativos e copulantes. No caso do quali-signo icônico, seu objeto imediato tem sempre um caráter descritivo, pois estes determinam seus objetivos dinâmicos, declarando seus caracteres. No caso do sin-signo indicial, seu objetivo imediato é um designativo, pois dirige a retina mental do intérprete para o objeto dinâmico em questão. No caso do legi-signo simbólico, seu objeto imediato tem a natureza de um copulante, pois meramente expressa as relações lógicas destes objetos com seu objeto dinâmico. (p. 16).

Dito isso, fica simples nomearmos os famosos três tipos de signo: ícone, índice e símbolo. Em seguida, devemos compreendê-los pelo seu funcionamento.

Um ícone aponta para um objeto por similaridade. De acordo com o nível de similaridade, um ícone por ser uma imagem, um diagrama ou uma metáfora. Além disso, um ícone sempre pode ser encontrado em um índice. Mas, o funcionamento do índice é distinto do ícone. O índice aponta para um objeto através de uma ligação existencial. Uma fotografia de uma montanha existe como fotografia e a montanha existe como montanha. A fumaça existe como fumaça e o fogo existe como fogo.

O funcionamento dos símbolos é mais complexo e um dos motivos é que todo o símbolo contem quali-signos e sin-signos. Um símbolo aponta para o objeto por força de lei, ou seja, por um sistema de convenções. É apenas desse modo que uma bandeira pode ser o símbolo de um país, por exemplo.

A teoria da interpretação, na semiótica de Pierce, estabelece três tipos de interpretantes. O interpretante imediato é aquele que está contido no signo, como um potencial interpretativo. O interpretante dinâmico refere-se ao efeito que o signo efetivamente causa em um intérprete, e está dividido em emocional, energético e lógico. Note-se que um símbolo só se efetiva com um interpretante dinâmico lógico. Ainda, dentro do interpretante dinâmico lógico, há o lógico último, que se refere à mudança dos hábitos necessários para que haja uma relação lógica entre o intérprete e o símbolo. Se não houvesse mudanças, símbolos sempre significariam a mesma coisa com o passar do tempo.

O terceiro nível de interpretantes é chamado de interpretante final. O interpretante final é um ideal. Ele é “o resultado interpretativo a que todo o intérprete estaria destinado a chegar se os interpretantes dinâmicos do signo fossem levados até o seu limite último. Como isso não é jamais possível, o interpretante final é um limite pensável, mas nunca inteiramente atingível.” (p. 26). O interpretante final pode ser um rema (para ícones), um discente (para índices) ou um argumento (para símbolos).

Como disse, no começo desta resenha, em conformidade com a teoria de matrizes de linguagem e pensamento (sonora, visual e verbal), Santaella apresenta capítulos com três tipos de análises semióticas: elementar, intermediário e avançado. O que tentei sintetizar, acima, está contido apenas nos dois primeiros capítulos do livro. Para quem gosta de exemplos, os demais capítulos são bem mais divertidos. Ao entregar esses exemplos de aplicação de interpretação, ela tenta fugir do discurso funcionalista. Para isso, aproveita esses exemplos de análise comparada de embalagens e estudos de caso da publicidade para ressaltar os diversos pontos que ficaram de fora das simplificações dos primeiros capítulos. Mas, o objetivo do livro não é a apresentação da história da semiótica ou da teorização que Santaella realiza em outras de suas obras.

Nesse ponto, se estivéssemos em uma sala de aula, começariam as recomendações de livros para quem quisesse se aprofundar no assunto. Muitos olhares estariam dispersos. Pararíamos para o café e metade das cabeças voltaria na próxima semana, ou no próximo texto.

[1] MELO, T. R. R. de . SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada. 2. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2018. Cadernos de Linguagem e Sociedade[S. l.], v. 23, n. 1, p. 160–163, 2022. Acesso em: 29 maio. 2023.

[2] LIMA, ABM., org. Ensaios sobre fenomenologia: Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty [online]. Ilhéus, BA: Editus, 2014. Acesso em: 29 de mai. de 2023.

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