[resenha] A história do Diabo, de Vilém Flusser

FLUSSER, Vilém. A história do diabo. Revisão técnica de Gustavo Bernardo. 3ª edição. São Paulo: Annablume, 2008.

Texto de Rodrigo Hipólito

Outro dia, passei por uma postagem sobre os motivos para se ler “Grande sertão: veredas”. A pessoa não chegou a encorajar a leitura do clássico. Talvez, as explicações pudessem até afastar quem acredita que aquela seja uma leitura de não tão difícil compreensão, pois muito de sua narrativa e personagens se cristalizaram em seriados, novelas, filmes outros livros. As mudanças do idioma, nesse caso, não me parecem uma grande questão, pois Guimarães Rosa.

Enquanto lia comentários de inúmeras pessoas que largaram a leitura pela metade, como se pedissem perdão por um pecado, ou de quem sequer considerava se aventurar, eu pensavam em sinopses erradas. Sinopses são fundamentais para quem está para decidir se começa ou não uma leitura. Pouco interessa se o livro é um clássico ou um lançamento recente. Ninguém nasce com um conjunto de percepções sobre os clássicos para prescindir de algumas indicações básicas.

Quando as sinopses estão erradas, isso pode tanto afastar quanto confundir quem se interessaria pela leitura. No caso de “Grande sertão: veredas”, a maioria das sinopses ignora a obra e fala apenas da importância história do livro, como se isso fosse o suficiente para começar a leitura. É como se dissessem que esse livro deve interessar apenas para especialistas e pessoas iniciadas. Isso me parece um erro grave, pois ainda falamos de literatura e estamos longe de sair do buraco que é a percepção dos clássicos somo chatos e distantes da nossa época.

Irritado com a extensão dos estragos que esses pequenos erros podem causar, olhei para a prateleira e parei na lombada de outro livro que sofre com a sinopse errada: “A história do diabo”, de Vilém Flusser. Nesse caso, muitas sinopses parecem ter sido escritas por pessoas que não leram o livro, pois dizem quase o contrário do que o autor escreveu.

“A história do diabo”, de Vilém Flusser, não é um conjunto de textos que satirizam escritos cristãos; tampouco se trata de uma narrativa histórica sobre as representações do diabo através dos séculos. “A história do diabo” é um ensaio sobre os males do progresso e do desenvolvimento como únicos caminhos possíveis para a sociedade europeia e, com ressalvas, para a nossa.

Por coincidência, ou não, “Grande sertão: veredas” e o contato de Flusser com Guimarães Rosa foram uma dose do combustível que o filósofo checo-brasileiro consumiu em seu interesse pelo diabólico. “A história do diabo” diz muito da concepção de pós-história de Flusser, que atravessa toda a sua filosofia e, talvez, já estivesse semeada na sua migração para o Brasil. Ele se lembrava de que, ao sair da Alemanha, trazia na bolsa apenas dois livros, “Fausto”, de Goethe, e um livro de orações judaicas da mãe. O segundo se perdeu e o primeiro frutificou em sua influência, mais por Mefistófeles do que por Fausto.[1] Junte essa memória como o contexto desastroso ao qual o progresso, o nacionalismo e o industrialismo levaram a Europa das primeiras décadas do século XX, é não é difícil compreender o peso da crítica que Flusser faz aos caminhos que essa sociedade percorreu. Ainda nesse sentido, percebe-se como é razoável considerar que os princípios que regiam o Velho Mundo, o que inclui a História, estavam enterrados. Depois do holocausto, nada mais restaria além do absurdo.

“É absurdo querer falar, é absurdo querer escrever, é absurdo querer agir, é absurdo querer salvar-se, é duplamente absurdo querer falar, é absurdo querer escrever, é absurdo. Enfim: é absurdo querer, a não ser talvez querer a morte.” (FLUSSER, 2008, p. 189)

“A história do diabo” foi escrito no final dos anos 1950. Como na maioria das obras de Flusser, o próprio autor o traduziu do alemão para o português. Esses esforços de tradução, não raro, faziam com que os textos em português fossem mais fluidos e apresentações soluções mais eloquentes, tanto com relação ao ritmo da escrita quanto à compreensão dos conceitos empregados. Ainda dentro do que se espera da escrita de Flusser, há poucas referências explícitas, embora seja possível, em vários momentos, perceber os diálogos que o autor propõe.

Fotografia do livro A história do Diabo, de Vilém Flusser.

Fotografia do livro “A história do Diabo”, de Vilém Flusser sobre mesa de madeira. O sobre nome do autor aparece em letras grandes e pretas na parte superior da capa, sobreposto pelo primeiro nome e o título do livro em letras vermelhas, sobre ilustração de silhuetas humanas fora de foco.

O ensaio de Flusser está dividido em sete capítulos, mais uma introdução de um pós-escrito. O primeiro capítulo, “A infância do Diabo”, apresenta as regras do jogo argumentativo e metafórico com o diabo cristão e como sua conceituação será utilizada para pensar a história do desenvolvimento de nossa sociedade. Seguem-se seis capítulos que detalham momentos, conjunturas, paradigmas e processos históricos através dos pecados capitais, ou quase isso: “A Luxúria”, “A Ira”, “A Gula”, “A Inveja e a Avareza”, “A Preguiça e a Tristeza do Coração”.

“É evidente que a Igreja, em sua propaganda anti-diabólica, recorre a nomenclaturas um tanto tendenciosas ao denominar estes pecados. Chama-os de soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira, e tristeza ou preguiça. No fundo são, no entanto, iníquos esses termos arcaicos, e facilmente substituíveis por termos neutros e modernos. É o que proponho. Soberba é a consciência de si mesmo. Avareza é a economia. Luxúria é o instinto (ou afirmação da vida). Gula é a melhora do standard de vida. Inveja é a luta pela justiça social e a liberdade política. Ira é a recusa em aceitar as limitações impostas à vontade humana; portanto, é a dignidade. Tristeza ou preguiça é o estágio alcançado pela meditação calma da filosofia” (FLUSSER, 2008, 25).

Em alguma medida, para compreender o raciocínio que Flusser desenvolve no correr do ensaio, é necessário fazer o esforço de inverter algumas de nossas percepções mais arraigadas sobre esses pecados. Mais do que isso, devemos fugir de valores absolutos e imutáveis. Quando acompanhamos a luta histórica entre o diabo e as instituições controladoras/programadoras (Igreja, Estado, Escola, Indústria, etc.), somos confrontados com estratégias as mais variadas e de ambos os lados. Não é como se pudéssemos escolher um lado e permanecermos confortáveis com a defesa de conceitos, pois eles podem mudar de campo sem aviso.

De início, com a separação entre Céu e Terra, “2.3.4: A desordem é própria da vida. A ordem é inimiga da vida, é a própria morte. Ordenar vida significa matá-la” (FLUSSER, 2008, p. 41). Nesse momento, Flusser fala sobre como o interior dos átomos guardam tanto o princípio ordenador diabólico quanto a desordem que compõe a vida. Acessar o “puro ser” do átomo pela ciência exata seria entregar as chaves para o demônio dominar esse espaço/tempo que ainda guarda a divindade.

Muito do que diz respeito a “condição especial” da Terra se dá no tempo. Se considerarmos que toda a existência do nosso planeta e da realidade humana é menos que um estalar de dedos cósmico, percebemos por que parece que estamos sozinhos. Nessa escala cósmica, sequer seria possível perceber a ascensão e a queda da Terra. Nosso planeta apareceu e desapareceu e isso nada representou para o universo. Somente com um olhar muito egocêntrico é que podemos nos colocar em uma posição central para o aparecimento da vida, tanto como a conhecemos quanto como nas formas que não podemos imaginar que possa ser. O “como a conhecemos” é a manutenção da condição de egocêntrico desesperado do humano. Não nos esqueçamos de que nossa concepção popular e clássica de tempo já deixa de ser válida nos domínios do que não consideramos vida.

Essa questão do tempo se mostra quase nítida quando notamos que o tempo, para o átomo, não segue as mesmas regras que o “nosso tempo” (o tempo percebido pela vida). Flusser separa o mundo inorgânico do mundo sensível, quando pensa esses pontos (FLUSSER, 2008, p. 46-47). O átomo e o cosmos são inorgânicos e divergem do “mundo sensível”, que é o mundo da vida. Essa separação é fundamental para pensarmos o mundo carnal, do qual fazemos parte.

Flusser começa a falar da “luxúria” pela ordem da vida. Desse ponto (p. 57), podemos retirar a matéria morte como algo diferente da matéria inorgânica. Como pensar o processo e o destino contidos na morte em uma realidade que não se dá pela mesma diferença entre sensível e inorgânico, que é aquela que rede o “nosso mundo da vida”?

“Segue, com insistência, o problema dessas normas. Qual é o rumo ‘outro’ da evolução, qual é o rumo que o diabo pretende? Esta pergunta desvenda brutalmente a relatividade dos valores dentro do reino da ilusão que é o mundo sensível. […] A relatividade dos valores é existencialmente limitada pela nossa condição humana. Todos os valores referem-se, existencialmente, ao homem. O homem como ponto de referência normativo é um dos mais belos produtos da ética relativista criada pelo diabo.” (FLUSSER, 2008, p. 65).

Para nós, não é a pergunta central, pois, apesar de não ser vedado assumir honestamente outro ponto de vista, que não o humano, devemos questionar, durante nossa história, a hegemonia evolutiva do homem como ápice desse mundo da vida (e de outros). No caso, o que consideramos como humanidade fica restrito as construções europeias de mundos.

Quando Flusser nos fala em “inibição” como sinônimo de “Deus” (p. 69), nos lembra de outros padrões e pensamentos humanos que determinam nossa visão, nossa descrição e nossa compreensão dos mundos sensíveis: ética, moralidade e estética.

Como conclusão, podemos compreender que essa disputa entre Deus e o Diabo, ou entre as instituições controladoras/programadoras e a afirmação ativa da vida e das liberdades sociais e políticas, sintetiza o redemoinho de acontecimentos que percebemos como história. O que parece nos tirar desse giro repetitivo são as condições de Tristeza e Preguiça como estados orientados pelo ato de filosofar. Mas, Flusser não chega a considerar, nesse ensaio, nem a superação da disputa história nem a do estado de Tristeza/Preguiça, o que faria com que o ato de filosofar nos atirasse, novamente, para a Luxúria (FLUSSER, 2008, p. 2011).

[1] VAN LOYEN, Clemens. “A positividade da negação: o exílio de Flusser no Brasil”. Flusser Studies 17.

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