FIO, Moacir. Pequenas hemorragias. São Paulo: Patuá, 2023.
Texto de Rodrigo Hipólito
Tenho a impressão de que a poesia da juventude passou por certas mudanças, de duas décadas pra cá, e que não é mais possível sentir aquela mesma atmosfera que sentíamos nos anos 1980-90. As músicas de protesto e as palavras sensíveis, herdadas dos anos 1960-70, pareciam fazer sentido de um jeito sério, ainda que ingênuo. A ingenuidade mudou. Não teria como ser diferente. O mundo encolheu como um angu encaroçado. Ser ingênuo, quando tudo parece estar sobre a mesa, explícito e explicado, é apenas ser patético. Troca-se a ironia pelo sarcasmo, o deboche pelo engodo e o desejo da libertinagem pelo fetiche de uma restrição emocional romântica. É a falsa liberdade de quem acredita que escolheu, de modo espontâneo, a limitação.
Em parte, isso é uma reclamação viciada, um ranço geracional. Por outro lado, faço um agradecimento às mudanças. Prefiro o sarcasmo à ironia e me agrada que a era das sutilezas tenha acabado. Por essas constatações, quando revisito o passado, ele não me agrada. A juventude com desejo de ser um monstro de Frankenstein da virada do milênio, colagem de Rimbaud, Courtney Love, Godard, Sartre, Kerouac, Pat Smith, Thiago Melo, Belchior, Clarice, Ana Cristina Cesar, Leonard Cohen e uma mescla de bandas punk anarquistas sem leitura que se enganavam por uma falsa defesa do esquecimento niilista; essa juventude ficou velha. Gosto disso.
Gostar não significa que é fácil olhar pra trás. O passado vivido soa muito alto como um fracasso interrompido. Nos anos 2000, nós éramos as sobras dessa interrupção. Poderíamos ser qualquer coisa que desejássemos, mas já partíamos da desistência.
“Pequenas hemorragias” (Patuá, 2023), de Moacir Fio, é uma leitura que me deixou esses e outros sabores amargos. Um retrogosto de melancolia com cerveja morna. Embora isso pareça péssimo, visitar o passado sem saudosismo e com o mínimo de honestidade, para quem não era milionário nos anos 1990 e 2000, é quase como mascar chiclete sem açúcar. Você insiste naquilo, cansa a boca, estraga os dentes, mas ajuda a encobrir a fome e é o mais perto que você vai ter de retornar à infância ou à adolescência em segurança. Como não masco chiclete nem gosto de bala, sobra a ficção.
Mas, esses primeiros parágrafos dizem respeito apenas a alguns dos contos que compõem “Pequenas hemorragias”. Certas narrativas prendem-se a cidades e épocas, outras não. “O último disco de Wendy O. Williams” e “Amigo morto” são contos que me causaram esse desconforto. Não que haja identificação. Essa é uma das incontáveis vias para acessar e fruir histórias inventadas. Não me identifico com essas personagens e, por vezes, as desprezo e desejo que elas faleçam. Quando isso acontece, a constatação de que elas foram construídas como criaturas interessantes, cujas vidas me agarram e me arrastam por frase sobre frase, é desconcertante.
Ao construir personagens que se entrelaçam com seus contextos históricos, micro e macro, Moacir consegue algo nada desprezível em narrativas curtas: emoções atmosféricas condensadas em situações concretas. O mundo ali descrito é o nosso. Nós pisamos nessa desgraceira todos os dias. Do apocalipse neoliberal pós-grunge à sociabilidade destroçada pela pandemia de COVID-19, as doze histórias de “Pequenas hemorragias” traçam atalhos entre contextos complexos de maneiras que apenas contos e causos são capazes.

Ferdynand Ruszczyc, Sobótki,1898, Museu Czestochowa. Pintura escura, com tons profundos de marrom, laranja, vermelho e preto. Ao centro e à direita, há silhuetas de pessoas dançando. em pinceladas marcadas de laranja e vermelho, com pontos amarelos que indicam chamas. Mais ao centro, há a fogueira que dá nome ao quadro, da qual sai fumaça escura. A paisagem não permite perceber muitos detalhes além dos corpos cobertos de capas iluminados pela luz da fogueira. Todo o resto é composto por pinceladas duras de tons escuros.
Você pode perguntar se esse é, integralmente, um livro de horror. Não saberia lhe responder. Há fatos fantásticos, crueldade e sentimentos abismais. Se isso é suficiente para classificar, genericamente, uma obra, talvez seja um livro de horror. Porém, ao pensarmos nas convenções formais que possibilitam o reconhecimento de gêneros literários e sua classificação comercial, a coisa fica mais complicada. É possível perceber o afundamento de personagens em seu ambiente político-cultural, como faz Mariana Enríquez; lugares como invólucros desconfortáveis, aspectos sinestésicos que evidenciam o ponto de vista das personagens e certa ironia que nos deixa em dúvida lembram Silvina Ocampo; uma presença diáfana, porém pesada, de anseios políticos, abraçada com a melancolia dura da narração de poucas descrições podem remeter a Roberto Bolaño. Será que, ao apontar possíveis referências do autor, dificultamos a classificação da obra?
Não creio que seja relevante a sugestão de um gênero literário como algo que direcione a leitura. Isso não significa que essa classificação não auxilie o público a encontrar livros que se enquadrem em seus gostos. Se “Pequenas hemorragias” vai ou não lhe agradar, depende menos do reconhecimento desse volume como literatura de horror e mais do impacto que o tom das narrativas, as referências internas e as construções frasais terão sobre você, sem contar o seu humor no momento da leitura.
Falo em horror, pois há violência, angústia, medo e revolta. Há histórias que irritam e despertam emoções traiçoeiras. Isso pode acontecer com a leitura de qualquer tipo de obra e, em todas elas, há doses de horror. Particularmente, tenho um problema com cenas de violência retratadas de modo esteticamente belo. Acho que o horror sofre com isso. É comum autores perderem a mão. Moacir não perde. Isso fica nítido na “Canção de Ari”. Nas cenas de impacto gráfico e crueldade, ele não escolhe palavras bonitas, não tenta fazer metáforas, as frases são secas. Não há o que comemorar diante da falência humana.
Outro aspecto que me agrada são as idas e vindas de personagens sem destino, sem charme, e o modo como elas são jogadas no mundo e, talvez, não voltam, como “o argentino”. A ausência de fechamento e a interrupção sem compromisso com um clímax ou com o despontar de um terceiro ato podem desagradar um público mais acostumado com essas estruturas como se fossem parâmetros de qualidade. Se você se enquadra nesse caso, “Pequenas hemorragias” seria uma ajuda para superar tal limitação.
Além dos textos em que essas regras não ditas do entretenimento são quebradas, encontramos “Despojos”, um típico conto pulp, porém atualizado e deslocado para o mundo ao qual pertencemos; “Antes havia pássaros”, que possui similaridades de ritmo, mas naquele clima de “filme de férias de verão de criança” com pitadas de ecohorror.
A história que dá título ao livro é uma viagem própria. “Pequenas hemorragias” aproveita-se de uma ideia recorrente na literatura fantástica: a cidade alternativa embaixo da cidade factual. Sem gastar muitas palavras com exemplos, prefiro apontar aquele que me veio à mente durante a leitura, embora seja pouco provável que se trate uma influência para Moacir: “O rei rato”, de China Miéville, concebe uma Londres embaixo de Londres. Os esgotos, a população negligenciada pela superfície solar da cidade que cresce para o alto, a vida insatisfatória e claustrofóbica em apartamentos mofados, a expectativa de descobrir uma realidade rebelde, mas nada convidativa, tudo pulsa como música suja, ruidosa.
Algo comum a maioria dessas doze histórias é uma escolha, consciente ou não, de acelerar os trechos finais. Não se trata de perder qualidade textual. É como se o autor se esforçasse para conter uma força obnóxia por quase todo o conto e, nos último parágrafos, desistisse de fugir. Fica a impressão de que tudo acaba sem chão, com desaparecimento, abandono ou pior, a obrigação de continuar a viver apesar da vida que se esvaia em gotas.
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