
Imagem de capa. Recorte da capa da edição brasileira do livro Rei Rato, de China Miéville (Tarja editorial, 2011). Lê-se o título do livro, em letras cursivas brancas, com silhuetas de um pássaro, uma aranha e um rato, que escalam as letras. Ao fundo, ilustração da paisagem de Londres, com a torre do Big Ben à direita, tudo em tons avermelhados.
Miéville, China. Rei Rato. Trad. Alexandre Mandarino, Tarja Editorial, 2011.
Texto de Rodrigo Hipólito
Saul Garamond é detido e acusado de matar o próprio pai, que se jogou da janela do apartamento, enquanto o filho dormia. Antes que possa assimilar esses acontecimentos, Saul é retirado da prisão pela absurda figura do Rei Rato.
Assim começa o primeiro romance de China Miéville. Já comentei, na resenha de Estação Perdido e nos dois episódios do Não Pod Tocar sobre esse livro (NPTS03E05 e NPTS03E06) o quanto gosto da escrita do China e como essas leituras foram importantes para que eu voltasse a escrever ficção.
China Miéville é mais conhecido pelos seus textos políticos e como um dos principais nomes do new weird. Rei Rato é um livro anterior ao surgimento do termo new weird, embora já contenha alguns dos elementos que serão fundamentais para a compreensão e o sucesso do gênero.
Rei Rato foi lançado em 1998 e teve apenas uma edição em português, com tradução de Alexandre Mandarino, lançada pela Tarja Editorial, em 2011. Pelas indicações ao Bram Stoker e International Horror Guide de 1999, fica nítido que o livro foi compreendido como uma narrativa de horror/terror.
Apesar de tais indicações, não se trata de uma história que cause medo. O horror que encontramos em Rei Rato está mais ligado ao desagradável, à violência, ao nojo e, principalmente, à estranheza de toda a situação.
A história se passa na cidade de Londres que, em sua normalidade, não chega a ser agradável. A cidade é monótona e velha. A vida na Londres dos anos 1990 é consumida pelas rotinas desgastadas das décadas anteriores. Aquela parece ser uma cidade sem brilho cultural e sem qualquer destino atraente para a sua juventude.
Se pegássemos outros exemplos de narrativas que fazem uso de recursos similares aos de Rei Rato, poderíamos imaginar que escapar dessa realidade para um mundo fantástico significaria o encontro com um cenário repleto de possibilidades maravilhosas. Poderíamos ter a expectativa de que as personagens atravessassem um portal para uma realidade que conferisse brilho à vida desbotada daquela cidade.
Essa é uma ideia bem conhecida e trabalhada: as personagens atravessam um portal e descobrem uma realidade mágica, conhecem pessoas estranhas que revelam mistérios a serem desvendados, compreendem que os elementos fantásticos sempre estiveram ali, encontram divindades, guerreiros, sociedades paralelas e por aí vai.
Em alguma medida, tudo isso está presente em Rei Rato. As diferenças devem gritar logo nos primeiros capítulos.
Você não encontrará a nobreza, a bondade, a justiça e a purificação como objetivos a serem conquistados naquele mundo absurdo, revelado pelo Rei Rato. Nenhum brilho perdido será resgatado para salvar Londres da escuridão. China não nos vende essa ilusão.
Saul aprenderá a apreciar a imundície, a respeitar a escuridão, a agir com violência, a se alimentar da podridão, a ignorar o orgulho, a se aproveitar das falhas dos mais fortes e abraçar as vantagens destrutivas de ser desprezado. Nenhum rato quer ser herói.
As metáforas mais evidentes estão nas perguntas sobre quem são os ratos da nossa sociedade? Quais pessoas são tratadas como uma infestação? Quem precisa adaptar-se à podridão e viver no meio dos dejetos que vêm de cima? Quem mescla-se com as paredes e os muros da cidade?
Pode-se pensar também na releitura da lenda o Flautista de Hamelin. Contratado como um caçador de ratos, ele hipnotizou os roedores e os obrigou a afogarem-se num rio. Como a cidade de Hamelin não o pagou, o flautista tocou sua flauta para atrair todas as crianças da cidade de trancá-las em uma caverna.
As discussões menos evidentes são aquelas voltadas para o reposicionamento a respeito desse cenário. Saul passa por uma mudança brusca. Esse giro acontece em poucas páginas e não há motivos para estendê-lo. Compreender que os valores tidos como superiores não são naturais, como quaisquer valores não são, é apenas um choque.
Quem nunca passou por isso, pode imaginar que seria necessária toda uma jornada para assimilar sua condição de “ser à margem”. Na prática, basta você engolir os valores que antes você considerava inferiores uma vez para, sem muita surpresa, aceitar que você pode alimentar-se deles, reproduzi-los e desejá-los.
A jornada de Saul será outra e envolverá aprender a viver entre mundos. Em Rei Rato, a pureza é o problema. Saul é impuro, mestiço, limpo demais para uns, sujo demais para outros, monstruoso demais para uns, humano demais para outros. Saul quer pertencer, mas esse pertencimento sempre lhe é negado.
Os sentimentos resultantes dessa negação, no entanto, não devem ser superados ou enterrados. Esses sentimentos podem alimentar a revolta contra a pureza. Afinal, há mundos que precisam ser destruídos.

Recorte da capa da edição brasileira do livro Rei Rato, de China Miéville (Tarja editorial, 2011). Ilustração de uma silhueta humana magra, agachada às margens de um rio, com reflexos de luzes. A silhueta está de frente para o rio e de costas para quem observa. Ela se vira, com os olhos brilhantes no mesmo tom avermelhado dos reflexos sobre a superfície do rio.
O estilo de escrita de China mudará nos livros seguintes, mas não abandonará alguns elementos que já estão presentes em Rei Rato. A profusão de termos específicos, a expressividade das falas das personagens e os fios da trama afrouxados para impedir que nossa leitura se perca em uma confiança infantil estão ali.
Em específico, o ritmo do texto emula o drum and bass. Para quem não faz ideia de que estilo musical é esse, o texto pode até parecer “mal escrito”. As palavras saltam e se batem. Os sotaques, as gírias e as variações de fluidez e chacoalhão podem te deixar com a impressão de ter bebido demais.
O drum and bass teve um considerável peso no cultura urbana da Londres dos anos 1990 e só chegou ao Brasil, sem muita repercussão, no começo dos anos 2000. Diferente do que foi para os jovens londrinos, aqui, o estilo não agregou o precário e o vanguardista. Aquela década de 1990 já estava perdida e aqueles anos 2000 eram esperançosos demais.
Ao comentar o ritmo do texto e a quantidade de gírias empregadas por China, devemos ressaltar o trabalho complexo da tradução de Alexandre Mandarino. Muitos dos termos usados não possuem tradução razoável para o português. Apesar de as batidas do texto serem de mais fácil assimilação no original, a capacidade do texto de embriagar continua forte na tradução.
Rei Rato pode não ser o romance indicado para iniciar a aventura pela obra de China (e nem seria fácil encontrá-lo). Após conhecer seus livros posteriores, sinto que pude aproveitar melhor o horror de cair entre dois mundos repulsivos.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.