Não é uma localização espacial, eu sinto a Cidade e nela me expando.
A Cidade se define em seu contraponto, a não-cidade. Os limites naturais (condições de terreno, vegetação, clima) e os “limites de privação” (grandes áreas restritas[1]) apresentam o que podemos conceber como Cidade, construção humana. Os traços do corpo urbano delimitam-se pelo contraste com o mar, rios, céu, terra, monumentos naturais, parques urbanos e mesmo o corpo daquele que faz da Cidade um hábito, i.é, através dos limites podemos perceber tanto o traço morfológico do corpo urbano quanto seu traço experiencial.
A própria escrita do termo Cidade discrimina o diferencial na vivência. Nota-se que, frequentemente nos textos que se seguem, não a nomeamos apenas como “cidade” ou “espaço urbano”, mas de “Cidade”, aquela que anexa em sua constituição um verdadeiro caráter toponímico. Seria um orgânico-objeto, e utilizamos esta terminologia, de um “adjetivo substantivado”, para revelar a psicofisiologia do ambiente urbano.
Os limites da Cidade são apontados como integrantes simbióticos do corpo urbano. A distinção é uma necessidade ontológica. A não-cidade participa da Cidade e o modo de participação daquilo que encontra-se fora, além, ou separado, no espaço urbano, é a influência, direta ou indireta, no “sujeito fenomenal” que habita esse espaço. Como coisa inserida na corporeidade da Cidade, o indivíduo mantém realizado seu corpo próprio, e nesse sentido a sua urbanidade é extensiva a propriedade desse corpo primeiro.
O corpo próprio de que falamos é apontado por Merleau-Ponty como a forma de imersão no mundo, o modo fundamental de sermos e estarmos no mundo. Ou seja, este corpo não corresponde aquele das ciências positivas, não é um aglomerado de ossos, músculos e reações bioquímicas, mas o corpo como o vivenciamos e passamos, por meio dele, a vivenciar a Cidade. Compartilhamos com esta da mesma carne. Neste compartir, revela-se uma relação de expansão dos limites da percepção e atuação para além de nossa anatomia. Assim, a Cidade, o mundo, torna-se expansão de meu corpo. Por exemplo, quando dirigimos um carro, fazemos de seu volume uma extensão do corpo próprio, sentimos sua dimensão e até formulamos frases que indiquem essa união: “vai dar pra passar”. Ou quando um aluno entra num ônibus com uma mochila grande às costas e pensa: “eu não caberei ali com essa mochila”. É o hábito que nos indica este poder de dilatarmos e anexar novos elementos ao nosso corpo.
Desse modo, o corpo torna-se essencial para a interrelação que constrói a realidade momentânea, o mundo percebido do homem. “todo ser exterior só nos é acessível por meio de nosso corpo e é revestido de atributos humanos que fazem dele também uma mescla de espírito e corpo” [2].
A questão de lidar com um “mundo percebido” através da objetividade (tornar algo em objeto) é um dos pontos marcantes da fenomenologia de Merleau-Ponty, i.é, como entendo que existe um eu e os objetos, tudo que possa ser objetivado? A percepção torna-se então o veio principal da discussão e o conceito de corpo próprio toma lugar de destaque, como acesso externo e ainda assim participativo (diretamente vinculado) ao mundo.
Pensar a atitude experiencial, com a objetividade de um espectador/participador, é uma das problemáticas mais reconhecidas nos trabalhos do artista Hélio Oiticica, a partir do momento Neoconcreto. As referências a Merleau-Ponty, encontradas em Oiticica [3], instigam à pergunta pelo “sujeito fenomenal”, através de uma arte focada no comportamento e dos conceitos de Suprassensorial e Crelazer. “A proposição do Crelazer absorve as ideias do Suprassensorial e do Probjeto [4], incorporando-as numa concepção de vida-arte: atividade não-repressiva em que arte e mesmo antiarte nada significam (…) importa ‘viver o Crelazer”[5]. Com o primeiro destes conceitos, o Suprasensorial, Oiticica visa a abertura da percepção do indivíduo como meio de revelação do potencial criativo interior. Para tanto propõe a criação de ambientes e situações que possam estimular todos os sentidos do participante. No entanto, tal estímulo não deveria ser incisivo e sim marcado como uma atividade de lazer/prazer, isto é, de desinteresse e espontaneidade capazes de liberar o poder criador. Encontra-se no quinhão de lazer/prazer o conceito de crelazer. [6]
Em Experiência Whitechapel (1969), p.ex., vê-se a proposição vivencial como obra, na qual o contato direto com o conteúdo objetivo define uma abertura para a apreensão e criação por conta do agente da experiência. O convite para descobrir corpo próprio. É preciso do corpo por inteiro, sem sapatos, para sentir, perceber através de um passeio penetrável que dá sentido à obra.

Oiticica, Hélio. Tropicália (1967). Fonte: <http://www.itaucultural.org.br>

Oiticica, Hélio. Éden (1969) Fonte: <http://www.itaucultural.org.br>
É o homem que se descobre pela experiência, pelo participar, pelo recriar-se através das proposições do artista. Se há um objeto, este é aberto em sua essência para a participação deste espectador repensado e só assim “funciona”. Este entendimento já era vigente no período das produções citadas, como mostram as palavras certeiras de Lygia Clark:
Aliás, penso que agora estou propondo o mesmo tipo de problema que antes ainda era através do objeto: o vazio pleno, a forma e o seu próprio espaço, a organicidade… (…) Você vê, a participação é cada vez maior. Não existe mais o objeto para expressar qualquer conceito mas sim para o espectador atingir cada vez mais profundamente o seu próprio eu. [7]
Na constituição desse eu, sujeito fenomenológico frente ao mundo, há o princípio de reversibilidade, de tocar e ser tocado, de ouvir e ser ouvido, existe uma reflexão [8]. Sujeito e obra interagem e constroem a ambos. Reconhece-se que há um outro, cujo corpo é semelhante, que faz parte da carne do mundo.
Merleau-Ponty apresenta a ideia geral de corpo vidente em relação de simultaneidade e entrelaçamento com a coisa vista. De nosso corpo, de alguma maneira, atingimos a coisa externa enquanto retiramos ela de nós mesmos. Pensar, ou lembrar, que tenho meus sentidos, no entanto: meu tato, não posso afirmar que minha pele seja meu tato, minha visão, não posso afirmar que meus olhos sejam minha visão, etc. Meu corpo não é meus sentidos, mas ambos copertencem-se aporísticamente.
Onde há alguma coisa é onde os movimentos se cruzam, daí a dialética ser tão apropriada para lidar com o fato de que percebemos coisas, da existência e da não existência das coisas, pois a dialética não estabelece ponto de partida além da relação, a dialética não aparece, ou, aparece enquanto fez aparecer.
Quando se toma o aberto como questão, voltamo-nos para o que seja Mundo, Verdade e o Ser em sua cumplicidade. (ideia de percorrer um caminho, e a paisagem é um mundo, a verdade, um ser).
Quando tocamos algo, sentimos nosso próprio toque, quando vemos algo, sentimos nossa própria visão. Nosso corpo adquire sua corporeidade na execução dos sentidos. Assim como meus olhos não são minha visão e meus tímpanos não são minha audição, também meu corpo e o corpo da coisa vista não são a carne do mundo. Mas, há algo entre os corpos que possibilita seu contato e seu mutuo apossar-se (no qual distinguem-se inclusive). Entre meus dedos e a superfície da mesa que toco existe um tocar que dá corporeidade a ambos. Nessa possibilidade de estabelecimento da corporeidade encontramos a carne do mundo. Perceber/pensar, i.e, existir, é corporizar e significar… retornamos assim à linguagem. É através da linguagem que podemos expressar, ou cogitar, a respeito das experiências possíveis no ambiente e do ambiente como copertencente a nossa constituição psicofisiológica primeira, i.é, nosso corpo próprio. Busca-se então, através dos limites da Cidade, reconhecê-la como um hábito e experimentá-la como um corpo.
[1] É importante dizer de “grandes” áreas restritas, pois em espaços habitados por um número considerável de indivíduos, é necessária dada extensão monumental para que haja impacto no meio urbano. A necessidade de contornar exige esforço. Para se contornar em grandes áreas como aeroportos, fábricas, depósitos, siderúrgicas, etc., são necessárias alterações de trajeto. Mesmo que o indivíduo não saiba o que há por trás dos muros e nem mesmo note a grande curva que seu veículo executa, sua passagem pela cidade respeitará essas grandes áreas restritas.
[2] MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas – 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.18.
[3] O trajeto que levou da arte contemplativa à experiência neoconcreta é repleto de experimentações. Nesse sentido Oiticica nos deixou muitos registros de como se deu essa transformação. Os escritos do artista percorrem praticamente toda a sua trajetória: tanto conceituam sua produção plástica, como enriquecem as discussões acerca da experienciação do objeto artístico e da renovação da linguagem em arte. O trabalho de Oiticica aponta para a mudança nas convenções da definição de arte, de artista e de espectador. Para além de uma presença contemplativa convencionalmente compreendida para o lugar do espectador, o “Programa” de Oiticica solicita um espectador em tanto que participador ativo na construção da obra. Ou seja, o objeto artístico proposto pelo artista seria concretizado no momento-ato, na experimentação vivenciada pelo participador.
Considerando que seus textos portam um valor inestimável para a historiografia da arte no Brasil e são imprescindíveis, em tanto que fonte primária, para os objetivos desta pesquisa. O acesso a este material encontra-se facilitado tanto em publicações organizadas por autores reconhecidos, como Luciano Figueiredo (Aspiro ao grande labirinto e Cartas,1964-1974), quanto pela disponibilização de material digitalizado pelo Projeto Hélio Oiticica e pela Associação cultural “o mundo de Lygia Clark”.
[4] “Creio que já superei o ‘dar algo’ para participar; estou além da ‘obra aberta’ (…) prefiro o conceito de Rogério Duarte, de probjeto, no qual o objeto não existe como alvo participativo, mas o ‘processo’, a ‘possibilidade’ infinita no processo, a ‘proposição’ individual em cada possibilidade” (AYALA, W. A Criação Plástica em Questão. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 163).
[5] FAVARETTO, Celso; OITICICA, Hélio. A invenção de Helio Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1992.
[6] “A proposta das Cosmococas incide diretamente sobre a questão desta virtualização do espaço. A arquitetura é feita de imagens, de projeções puras cuja oscilação é aquela calculada pelo movimento que se passa entre as imagens e não nas imagens. O participador é o usuário de um dispositivo projetivo que ao mesmo tempo em que mostra imagens fixas, movimenta percepção daqueles que se encontram imersos nesta arquitetura.” (MACIEL, Katia. O espaço é em Certa Medida Filme. In: Fios soltos: a arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 173). Katia Maciel fala da virtualização do espaço, no entanto, as cosmococas podem ser compreendidas num sentido mais amplo de virtualidade, no qual o espaço cumpre um caráter formal e a existência da instalação depende da presença do espectador/vivenciador. Nota-se que as cosmococas apresentam uma vasta gama de sentidos de virtualidade, extrapolando a proposta estabelecida neste artigo.
[7] CLARK, Lygia; OITICICA, Hélio. Lygia Clark – Hélio Oiticica: Cartas, 1964-1974. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p.85-86.
[8] Coloca-se assim uma expansão do sentido de relação sinestésica. Se toco minha mão direita com a esquerda, sinto que fazem parte de um mesmo corpo por uma dada consciência perceptiva. Essa consciência perceptiva poderia ser desdobrada para a percepção de quando toco a mão de outra pessoa (ou uma pedra), tendo em vista a consciência de uma “carne” do mundo, na qual estou inserido e me insiro. “Com a reversibilidade do visível e do tangível abre-se, pois, se ainda não o incorporal, ao menos um ser intercorporal, um domínio presuntivo do visível e do tangível, que se estende além das coisas que toco e vejo atualmente.” (MELEAU-PONTY, Maurice. O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 138-139).