Caderno de Anotações, pp. 118-119, 07.02.2012.
A própria ideia de Cidade corrompe a possibilidade de uma permanência como habitante (ao menos a idéia de Cidade que podemos captar de uma observação direta dos procedimentos de experienciação rotineira do ambiente urbano-metrópole). Talvez uma recolocação dos limites de hábito da Cidade nos fizesse enxergá-la de modo mais lúcido, por uma objetivação da atividade. O hábito que não se norteia pela experiência, mas pela familiaridade, traz, quase necessariamente, a indiferença. A cidade tornou-se local de passagem. Pouco solidifica um destino de quem trafega pelos traçados.
O fato de estarmos aqui nos concede um destino. Entre o aqui e nosso destino, passamos por coisas, ou somos levados por elas ou, ainda, as evitamos para lá chegarmos. Mas, na medida em que o dia avança[1], esse lá se esvazia por não chegar. O lá passa da posição de lugar para a condição indecisa entre esperar e efetuar uma atividade (a espera soa sempre como um clamor do tempo pelos objetos e o espaço, quando estes nada respondem). Saímos de casa e nos direcionamos para o trabalho, quando, felizes ou tristes, esperamos que o trabalho acabe para que possamos voltar para casa ou sair ao lazer. Em casa, descansamos, no aguardo da corrida para o trabalho (e dizemos a nós mesmos que devemos descansar, pois o dia na cidade pede energia). Quando no lazer, inicialmente encontramos o convívio direto, e mesmo com a inegável constituição temporal do prazer, é o que mais se aproxima de um lugar vivenciado. Ainda assim, é raro um lugar-lazer surgir desamarrado de uma utilidade. Poucos espaços são destinados diretamente ao convívio, e normalmente este convívio deve ser velado por uma atividade que mantenha o distanciamento do outro (esse raciocínio deve mesmo soar inocente. Ocorre, porém, que a grande gama dos espaços de lazer, a exceção, curiosamente, daqueles voltados para o lucro e onde se realizam atividades dispersantes, que modificam o comportamento na mútua dependência do consumo e da convivência, a maioria dos espaços de lazer, provocam uma transcendência que nos aliena do nosso lugar em relação ao espaço habitável e também a nossa habitação primeira, nosso fundamento, o ser. Isso, no entanto, seria aqui um desvio da temática). O fato é que trafegamos pela cidade e é nessa passagem pelo traçado que lhe habitamos o corpo. Incluem-se então, no corpo urbano, juntamente com o caminho das vias principais, também a espera e a atividade, que constituem nosso hábito citadino.
Em cada uma dessas formas de habitar, reciprocamente necessárias, nos vemos na situação de respeitar os limites de trajeto e permanência. As vias dão sempre a volta. Entre nosso ponto de saída e nosso ponto de chegada existem vários impedimentos os quais as vias evitam. Alguns desses impedimentos nos atingem de modo agressivo, e os notamos com impacto, como os sinais de trânsito, os demais veículos, a espera em um ponto de ônibus, um acidente, a parada em um terminal rodoviário, um engarrafamento, pois são impedimentos em um nível perceptivo tão próximo e em escala tão reduzida, que seu aparecimento é o próprio choque. Outros obstáculos não nos atingem de modo tão ríspido, pois fazem parte de uma constituição basal da Cidade, sua escala é próxima do tamanho da Cidade e não tendemos a encará-los como impedimentos agressivos. Nessa espécie de obstáculos os mais evidentes são os monumentos naturais e os grandes parques urbanos, ou grandes florestas urbanas.
A ilha de Vitória é realizada corporeamente a volta de uma grande massa verde intransponível. Na medida do necessário as margens da ilha foram tomadas por aterros planificadores. Quem passa pela ilha de Vitória (e essa é a via principal para cortar-se a região metropolitana) dá a volta, circunda essa grande massa de montanhas verdes, parques, reservas, monumentos naturais, etc. Como podemos notar tal “curva prolongada”? Não a notamos diretamente. Na verdade, passa-se pela cidade de Vitória e esse passar, na grande maioria das vezes, é a Cidade em seu corpo. Não notamos o impedimento de traçar uma linha reta entre aqui e lá, pois essa consciência corromperia a visão de base através da qual concebemos essa Cidade.
Os grandes monumentos naturais e as grandes florestas urbanas fazem parte, de modo apriorístico, da cidade através da qual passamos. Essa impressão que temos dos monumentos naturais no corpo citadino é uma impressão amigável, respeitosa, que não compartilha com o caos urbano o choque de seu aparecimento. Respeitamos os monumentos naturais como integrantes inseparáveis da Cidade a qual queremos, mesmo que sejamos obrigados a caminhar sempre as suas margens e poucas vezes os conheçamos de outro modo que não de fora.
O modo como os monumentos naturais fazem parte da Cidade é como um de seus limites. Como todos os limites corporais, não encaramos esses impedimentos objetivamente como parte do corpo da nossa Cidade, e assim de nosso hábito, embora estejam em nossa vivência e nos dêem (exijam) a morfologia de nosso habitat. E como no corpo próprio, o mundo é o meu limite determinado, revela meu corpo e assim faz parte dele, pois quando realizo vivencialmente o perfil de meu corpo, esse me aparece através das percepções, do objeto (fundo) que sublinha o perceber e me leva a sentir a própria percepção, também com o corpo urbano.
[1] A utilização do termo avança indica uma relação mais profunda, que seja, a relação temporal. Nós atuamos na cidade em espera ou passagem, de modo que o dia passe por nós. Mas neste caso o dia avança, como uma atitude de ação. O tempo surge como a própria atividade e no caso do dia, poderíamos dizer que a atitude do dia é avançar.