Referências completa: PEDRONI, Fabiana. Espectador Reconvocado: o habitar a obra em Hélio Oiticica. In: Anais do 3º Colóquio de Artes e Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Artes: Arte, Cultura, Distração, Antagonismos. Vitória: Proex, 2012. p. 70-84.
Resumo: Os escritos do artista Hélio Oiticica são aportes essenciais para a compreensão das mudanças ocorridas no meio artístico das décadas de 1960 e 70. Na mudança da arte contemplativa para a produção experimental, Oiticica apresenta conceitos como Probjeto, Transobjeto, Suprasensorial e Crelazer que culminam na união Arte/vida e evidenciam a abertura da obra à participação do espectador.
Palavras-chave: Escritos de artista – espectador reconvocado – Hélio Oiticica.
RECALLED SPECTATOR: THE HABITAR IN THE ARTWORK OF HÉLIO OITICICA
Abstract: The writings of the artist Hélio Oiticica are essential contribuitions to the understanding of the changes in the art world of the 1960s and ’70s. In the change of contemplative art to experimental art, Oiticica introduces concepts like Probjeto, Transobjeto, Suprasensorial and Crelazer that culminating in union Art / Life and highlighting the opening of the artwork the spectator participation.
Keywords: Writings of artist – spectator recalled – Hélio Oiticica.
O crescente esforço empregado na preservação, difusão e estudo da obra de Hélio Oiticica evidencia seu papel de destaque na construção teórica e prática da arte brasileira dos anos 1960-70 e também sua importância para a atualidade. Seus escritos versam sobre o fazer artístico de modo geral, enquanto pensam sua obra individual através das referências que o influenciaram direta e indiretamente. Há um espanto diante da quantidade de material escrito pelo artista e da variedade de modos de produção textual (COELHO, 2010, p.13) através da qual Oiticica constrói sua “escrita da invenção, do cotidiano, do experimental. Uma escrita, enfim, da diferença.”[1]
Sob o viés da História da Arte, as obras e escritos de Oiticica são relativamente recentes e por isso pedem ainda estudos mais aprofundados. O pequeno, mas já alcançado, distanciamento temporal permite já o aumento quantitativo, e principalmente qualitativo, de investigações sobre as propostas do artista, repassando produção prática e textual. No entanto, encontramos ainda poucos estudos que abordem os escritos como fontes primárias de pesquisa sem relações causais entre texto e obra plástica e que expandam as palavras de Oiticica para além de uma “explicação de obra”.[2]
Aqui os escritos são pensados enquanto instrumentos que permitem desdobrar a própria obra e abordar outras questões pertinentes ao contexto ao qual pertencem. Para Umberto Eco (1985) a palavra apresenta-se como meio de registro da reflexão estética do artista, bem como se mostra como poética aberta e que prevalece sobre o problema da obra enquanto coisa feita e concreta, assim deve ser entendida a participação da escrita no processo de Oiticica. Como “obra aberta”, os escritos não são amorfos, mostram-se como fontes vivas, em constante reformulação. Neste sentido, conferimos caráter documental aos escritos, pois criam uma história no presente e no presente se metamorfoseiam. Segundo Foucault (2008, p.07) “O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado, e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações”. Circunscritos em tempo e lugar específico, dão suporte a questionamentos dos limites da experiência estética, dos estatutos da obra, dos papéis exercidos pelo artista e pelo espectador. Agentes da história da arte e de seu tempo, as obras e escritos de Oiticica ultrapassam um dizer afirmativo do que “aconteceu”, de um passado inerte, na medida em que as reflexões são construídas no presente.
Assim também as obras de Oiticica podem ser pensadas enquanto documentos, pois carregam em si informações a serem pensadas, questionadas, principalmente sobre a abertura da obra à participação do espectador. O discurso da obra provém não apenas da materialidade, em especial na produção que já não se pauta na matéria acabada, mas na proposição do artista acrescentada à participação do sujeito e atualmente, com a revelação crescente de seus escritos, estes se tornam parte essencial para a construção de novas visões sobre a obra e sobre a produção de arte a ele contemporânea. [3]
O caráter documental é reforçado no seu uso enquanto aporte para este estudo, uma vez que o documento é uma escolha do pesquisador (LE GOFF, 2003) e sobre ele construímos reflexões e teorias.
Estes documentos evidenciam o abandono da categoria de sujeito-criador da obra para a transformação do artista em sujeito propositor que tende à dissolução no coletivo. Esta nova postura exige um espectador-participador, co-autor, que dá significado à obra – esta que abandona o espaço de representação contemplativo para construir-se na ideia propositiva e completar-se na vivência. Tais questões são fundamentais para firmar a abertura da obra à participação do espectador, que é convocado a significar os trabalhos de Oiticica, e que no processo de habitar a obra é reconvocado a significar a si mesmo e a constituir a própria obra. O termo reconvocado assume aqui um papel diverso da ênfase na convocação do espectador à formulação objetual da obra a partir da proposição, pois a reconvocação dá-se na relação entre arte e vida, em que a experiência expande-se para a vivência do sujeito numa condição fenomenológica (intuição/reflexão), além de mostrar-se na posição do espectador enquanto elemento constituidor da obra. Desse modo, o espectador é convocado a construir a obra e reconvocado a habitá-la numa uma relação de sujeito fenomenal na construção de si e do corpo da obra.
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Os caminhos do experimental na arte realizada no Brasil passam inevitavelmente pelo momento neoconcreto. Os diversos enfoques dados às questões do período são recorrentes no âmbito da teoria da arte mais recente desenvolvida em nossas academias. Palavras como espectador, relacional, participador/co-autor surgem como repetições numa leitura viciada. Porém, a temática aprofunda-se a cada tratamento o que permite uma caracterização mais aproximada dos fundamentos das práticas, conceitos e relações abertas nos anos 1960 e herdadas pela produção atual de arte. A busca pela conjunção das ideias e conceitos propostos por Hélio Oiticica e dos trabalhos do referido período compreende o processo de transição do objeto contemplado para o objeto construído estruturalmente no espaço e aberto à ação do espectador.
Apesar de não assinar o Manifesto Neoconcreto, Hélio Oiticica vinculou-se ao grupo já em sua gênese, participando da segunda exposição do Grupo Frente em 1955. Junto dos neoconcretos, manifestava-se contra uma exacerbação racionalista, defendia o resgate da subjetividade e a recuperação das possibilidades criadoras do artista, não mais limitado a um acento técnico-científico e ao dogmatismo geométrico. Assim, defendia as possibilidades expressiva e experimental de suas obras, a exemplo dos Bilaterais e Relevos espaciais, compartilhando discussões com a produção de artistas como Lygia Clark (com os Bichos e Trepantes) e Lygia Pape (e seus Livros). Como aponta Oiticica (1986, p.86-87), em seu “Esquema geral da Nova Objetividade”, a crise do quadro e a abordagem e dissolução puramente estruturais nas obras culminaram na Teoria do não-objeto de Ferreira Gullar, publicada em 1959, praticamente em conjunto com o Manifesto Neoconcreto. O conceito de não-objeto surge como base para a compreensão das especificidades da produção neoconcreta e atua como um acesso à lacuna que se abre à participação do espectador. Segundo Gullar (2007, p.90) “[…] O não-objeto não é um antiobjeto mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico[…]”. O não-objeto é transparente por não necessitar de um intermediário, de um nome que designe função, como assim exige o objeto. O não-objeto não é uma representação, mas uma apresentação, um aparecimento primeiro de uma forma; ele é uno por não necessitar de uma nomeação para ganhar significação pelo sujeito.
Em muitos de seus textos sobre a emergência do novo e em específico sobre seus Bólides, Oiticica aponta para o conceito do não-objeto:
[…] essas obras se definiriam melhor como etapas na grande emergência de novas estruturas para além daquelas de representação: o q Gullar chamou de não-objeto (os BICHOS de LYGIA CLARK seriam o grande passo estrutural e o exemplo clássico de não-objeto […]. (OITICICA, nº 0101\77, p.01, PHO, (Grifos do autor).
Assim como Gullar através do conceito de não-objeto, Oiticica questiona a eliminação da representação mimética[4] e as categorias tradicionais de arte apontando para a existência de “objetos”, não enquanto uma nova categoria, mas resultado da criação de novas ordens estruturais, ou seja, as ordens ambientais.
O conceito de objeto, a sua formulação, é antes de mais nada [uma reformulação] intelectual: digo mais, de origem filosófica, nascida de um pensamento teórico que se originou desde cedo da arte moderna, e é na sutileza do seu campo que deve ser resolvido. Ele é puramente teórico. (…) uma verdadeira dissecação teórica do próprio conceito de ‘obra de arte’, do seu porquê, do seu ‘estar’, do seu modo, etc.(OITICICA, nº 0130/68, p.01, PHO).[5]
A partir da concepção de objeto enquanto nova estrutura, Oiticica, com seus Bólides (1963), propõe o conceito de transobjeto na “incorporação” de um objeto a uma ideia estética. A cor-pigmento apresentada é envolvida por um objeto pronto de antemão, por exemplo, uma cuba de vidro, o qual é transformado pelo artista em objeto-arte na sua incorporação de uma ideia estética. Ele não situa este objeto fora do cotidiano, mas o incorpora a uma ideia estética, torna-o parte da gênese da obra sem perder sua estrutura anterior, ou seja, ele utiliza o objeto e o transforma na adequação à experiência.
A existência anterior do objeto não se liga à obra por um ato do acaso. Para Oiticica (1986, p.64) a identificação da estrutura com a obra dá-se a priori: “identifica a sua vontade estrutural apriorística com a estrutura ‘aberta’ do objeto já existente, aberta porque já predisposta a que o espírito a capte”. Sobre a estrutura aberta, Oiticica faz uso do termo probjeto, criado por Rogério Duarte.[6] O probjeto é um objeto “sem formulação”, o que em muito se aproxima da ideia de não-objeto, por manter-se aberto à ação do espectador e então receber sua carga de significado, de acordo com a experiência de cada sujeito.[7] O probjeto indica que a obra ultrapassa o objeto ao incluir o espaço externo e a participação do espectador. Este é convidado a experienciar a cor em sua estrutura pigmentar, a atuar como co-autor e dar significação à obra. Assim como o objeto, o espectador é pensado como parte da gênese da obra. Há uma ideia apriorística também para este espectador.
Quando se sai do projeto bólides enquanto componentes da etapa estrutural que culmina nas capas de Parangolé e nos projetos ambientais, como Tropicália e Éden,[8] encontra-se o exercício experimental caracterizado nos conceitos de Suprasensorial e Crelazer, que em muito ultrapassam a questão puramente sensorial e de experiência estética.[9] “A proposição do Crelazer absorve as ideias do Suprassensorial e do Probjeto[10], incorporando-as numa concepção de vida-arte: atividade não-repressiva em que arte e mesmo antiarte nada significam (…) importa ‘viver o Crelazer” (FAVARETTO, 1992, p.185).
Com o primeiro destes conceitos, o Suprasensorial, Oiticica visa à abertura da percepção do indivíduo como meio de revelação do potencial criativo interior. Para tanto propõe a criação de ambientes e situações que possam estimular todos os sentidos do participante. No entanto, tal estímulo não deveria ser incisivo e sim marcado como uma atividade de lazer/prazer, isto é, de desinteresse e espontaneidade capazes de liberar o poder criador. Encontra-se no quinhão de lazer/prazer o conceito de crelazer.
Oiticica propõe o inverso do ‘trabalho’ (de arte): lazer. É uma proposta de ‘desatuação’, de transferência do comportamento frente à arte para o tempo do intransitivo, estratégia para tentar insulá-la do espetáculo e do consumo: mudar do ‘trabalho de arte’ para o ‘lazer inventivo na arte’. (BRAGA, 2007, p.113).
O artista busca no sujeito a construção da obra pela flexibilização das fronteiras arte/vida, na vivência da proposição longe do cotidiano massificante, na busca do lazer e da construção estrutural dos ambientes. É o experimentar o experimental na vida cotidiana e reconstruir-se após esta vivência. Os significados da obra unir-se-iam ao corpo do próprio espectador e ao mundo.
É na relação entre o sujeito/espectador e o objeto que encontramos sob a perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty uma análise diferenciada das obras de Oiticica. Não basta apenas ver um objeto, mas vivenciá-lo em todo o âmbito da experiência. No programa de Oiticica encontramos em Núcleos (1960) a passagem da cor para o espaço, em Bólides (1963) a cor que se expande em sensorialidade e incorpora a ideia de probjeto, que exige contato físico (e subjetivo) direto com o objeto, para em Parangolé (1964) a cor tornar-se uma vivência em si. O espectador vivencia a obra por meio de sua materialidade correlacionada com sua própria carga vivencial, em que sua percepção modifica a conduta individual para com o objeto. Nessa perspectiva de vivência construtiva e objetiva, tem-se no espectador o agente que deslancha conexões ou vivências a partir das proposições do artista.
É, pois, fundamental à teoria do ‘Parangolé’ […] a inclusão dos ‘atos’ humanos nessa totalidade, como móvel principal de tudo. A dança seria a primeira relação ##### aí: é ela a chave para desvendar os significados dessa relação homem-ambiente; é ao mesmo tempo uma manifestação subjetiva e uma manifestação ambiental – a ‘obra’ é aqui o movimento gerado do ‘ato’ de dançar, como que apreendendo o ambiente, ‘na carne’ por assim dizer num sentido subjetivo profundo. (OITICICA, nº 0192/66 – 6/9, p.05, PHO) [11]
Através da quebra da dicotomia sujeito/objeto o sujeito é colocado como “lugar” da obra e nessa condição ocorre uma reformulação de sua posição com relação ao mundo. O indivíduo na experiência com os projetos ambientais de Oiticica abre-se para a livre criação como conhecimento intuitivo do mundo. Este indivíduo com corpo e participador de uma realidade construtiva faz uso do “espaço relacional” para conhecer e vivenciar a proposta do artista, e não apenas muda a forma e conteúdo da proposição que passa a constituir-se como obra, mas também é afetado pela construção da mesma, uma vez que a percepção de um objeto sensível e de uma construção depende não apenas dos sentidos, do corpo, mas de uma vivência ativa e ativada.[12]
Pelo descondicionamento do suprasensorial e a abertura do poder criativo do crelazer o sujeito fenomenal aparece como aquele que trava relações como o mundo sob uma visão anterior e além da reflexão. Trata-se aqui do primeiro conhecimento, da primeira percepção, do mundo através do corpo. Com a vivência da proposição o sujeito não mantém mais sua distinção, sua distância do objeto. O sujeito não mais “objetiva” o objeto, mas experimenta sua “objetidade”. No lugar onde encontrávamos obra e espectador, passamos a encontrar obra no espectador. Quando Oiticica nos fala em “assimilação das estruturas primárias do mundo objetivo” o artista nos diz da possibilidade de mergulho na “objetidade”, na “carne do mundo”.[13] Percebe-se então que o sujeito recebe duas chamadas ao experienciar as propostas de Oiticica. O espectador atende ao pedido do propositor para realizar a proposição e também ao pedido da proposição para entregar-se ao descondicionamento e, mergulhado na “objetidade” do mundo, travar relação com as coisas em seu estado primordial, essencial. Ao aceitar o convite para pisar a terra o espectador participa da condição Arte/vida e fora do condicionamento normativo da reflexão, no estado de crelazer, pode conhecer o mundo intuitivamente.
Se entendemos os conceitos de suprasensorial e crelazer, empregados em obras como os Ninhos e Cosmococa,[14] como uma abertura para a livre criação do sujeito, empregando nas obras objetos transparentes (não-objetos) para o olhar fenomenológico, então podemos dizer que: o sujeito aceita o convite para a atividade que faz nascer a obra e é reconvocado, pela própria proposição realizada, a modificar sua posição individual aceitando o descondicionamento como modo de construção coletiva.[15]
Contudo, para que este diálogo e construção ocorram, faz-se necessário a ação inicial do espectador de aceitar esta construção. A obra encontra-se aberta ao espectador, mas este enquanto sujeito pode ou não vir a atualizar a proposição e torná-la obra.[16] É essencial a entrada do sujeito no labirinto, a experimentação para a compreensão (JACQUES, 2007, p.79). A obra de Oiticica ao fundar-se sobre a vivência encontra no espectador uma dependência, e assim compartilha com o propositor uma expectativa sobre a ação desse sujeito. Este não pode tornar-se espectador/co-autor se não vivenciar plenamente a obra. Contudo, este sujeito alcança as expectativas de Oiticica? Em carta trocada com Lygia Clark, Oiticica fala sobre a opinião de Guy Brett sobre Bryian (dono da galeria Whitechapel onde estava expondo), que o define como “espectador distante”:
[…] a galeria era enorme e eu não acredito mais na ‘obra figurada’, por isso incorporei tudo num planejamento ambiental, inclusive coisas que seriam construídas lá. […] Creio que a crise é lá e cá também. Guy o considera um ‘espectador distante’, aliás parece que muito pouca gente não o seja a não ser quem se entrega às experiências puramente.
Oiticica reconhece a limitação quantitativa desse espectador esperado, mas muitas questões ainda sobrevivem. Mesmo considerando sua pequena existência, este sujeito recebe a proposição em sua totalidade? Será que o movimento do corpo que cria o Parangolé é percebido pelo sujeito como um movimento de criação artística ou apenas se estaciona no lazer? A complexidade do discurso do artista espera um espectador que muitas vezes foge ao alcance do sujeito-participador e principalmente daquele sujeito que recusa o convite de participação e apenas observa a “dança”. A experiência estética pode ser desfrutada por qualquer sujeito em momentos distintos na medida em que permeia campos não exclusivos à arte.[17] A obra de Oiticica, o convocar e reconvocar do espectador, ultrapassa a experiência estética para uma vivência experimental, sem se limitar a uma experiência estética, ao olhar. “Não basta olhar a obra, ver sua imagem, sua fachada: Oiticica nos convida sistematicamente a entrar nela, a experimentá-la”. (JACQUES, 2007, p.82).
O artista afirmava na busca do crelazer, do suprassensorial, dos movimentos do Parangolé um desejo de desentelectalização na conjunção Arte/vida,[18] mesmo que Oiticica criasse novos conceitos intelectuais sobre a obra. Percebe-se uma diferenciação entre as produções de Oiticica anteriores ao seu encontro com a dança (núcleos, penetráveis e bólides) e as posteriores, em especial os parangolés. Antes, nos núcleos, por exemplo, o espectador para compreender a obra como algo mais que placas coloridas penduradas, precisaria saber da cor que foi lançada do quadro ao espaço, de sua própria situação enquanto sujeito que rodeia a obra, bem como compreender a importância da cor na obra, indo além de uma experiência puramente estética. Após este processo de desintelectuação, poderíamos achar que Oiticica esperava um sujeito que não necessariamente compreendesse e pensasse sobre tudo o que estava envolvido ao entorno da obra. No entanto, a obra só se constrói pela significação do espectador. Como lidar com questões tão distintas na mesma obra? Parecem dois universos completamente distintos: um em que o espectador aceita participar da formulação da obra, mas não a vivencia de fato, apenas a reduz à uma dança-lazer com caráter estetizante (justamente o oposto que Oiticica diz esperar e encontrar no participador)[19] e outro universo habitado por um sujeito que vivencia a proposição e a transforma em obra significada, compreende os conceitos envolvidos e a importância dessa produção em sua percepção de mundo. De todo modo, independente do modo como se dá esta experiência do espectador, este precisa, a priori, aceitar o convite de Oiticica. A obra de Oiticica encontra-se aberta, pois ela ainda não está pronta até que o espectador a ative, mas o espectador de Oiticica será apenas aquele que se abre à obra, que aceite habitá-la.
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As leituras feitas por Oiticica dava-se num movimento de ler-pensar-escrever, para citar Schopenhauer,[20] digerindo as ideias e as transformando em produção. Em seus escritos Oiticica não só fala sobre a produção de arte como um todo, como também faz análises posteriores de sua própria produção. No texto Anotações para desenvolver (Nº 0192/66 – 6/9, PHO), Oiticica retoma sua produção com um olhar crítico, partindo de sua participação no neoconcretismo, em diálogo com o conceito de Não-objeto. Nessa retomada podemos perceber que as ideias de projeções de Oiticica são originadas de fricções e desdobramentos de sua própria produção e daqueles que participam de sua formação. Do jovem artista envolto pelo concretismo carioca e depois com a produção neoconcreta,[21] passando pelos diálogos com a experiência de Lygia Clark (explícitos nas cartas trocadas) até a retomada do contato com os irmãos Campos em Nova Iorque, na década de 1970, Oiticica agrega e mescla conceitos e ideias que mantém um diálogo de contribuições e legitimações.
Após o contato com uma variada gama da produção textual de Oiticica, manuscritos ou datilografados, entre correspondências para amigos, textos para publicação, anotações de diários, é possível perceber que apenas uma pequena parte das propostas deste artista foi efetivada. Atualmente é possível encarar os arquivos de Hélio Oiticica como um óculo mais adequado para encarar um período de intensas disputas e transformações na arte e na sociedade brasileira como um todo, que foram os anos 1960-70. Ainda assim, o olhar aguçado do artista talvez deixasse escapar certa idealização de um espectador que pudesse vivenciar suas propostas ao ponto de torná-las reais. Este espectador esperado é uma figura de boa vontade, que se presta ao convite de vivenciar a obra e que numa compreensão total possa ser capaz de reconhecer a “estrutura cor” numa capa de plástico para ser vestida. O pedido de participação já havia sido feito para o espectador nos fins da década de 1950,[22] mas o espectador de Oiticica não deve apenas ativar uma obra, mas elevar-se para um estado de consciência que o transforme também num indivíduo capaz de criar. Talvez este espectador deva ser o passista do Morro da Mangueira,[23] ou os poetas que entendiam sua escrita,[24] o especialista em arte capaz de tirar os sapatos para pisar a terra[25] ou mesmo o próprio Oiticica. Como jovem de boa família com ânsia de maginalizar-se e assim ver-se livre de todo o condicionamento, após receber influências de Mondrian, Maliévich, Gullar, Clark, Merleau-Ponty, Rimbauld, Heidegger, Marcuse e Hendrix, talvez apenas Oiticica pudesse ser seu espectador ideal. Em meio a estas características, Oiticica busca a integração de arte/vida e a própria tomada da participação do espectador como proposição. Tanto nos trabalhos plásticos como nos escritos o artista propõe uma série de considerações sobre as relações tensas entre a arte, seu estatuto e seus espaços de atuação. Dentre estas considerações podemos pensar na redefinição dos papéis do artista, espectador e da própria obra como um ponto que altera toda a concepção da proposta artística e nos conduz dentro do labirinto ao encontro do sujeito fenomenal, este sim, então reconvocado sob o nome de espectador.
Referências
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COELHO, Frederico. Livro ou livro-me: os escrito babilônicos de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2010.
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FIGUEIREDO, Luciano. Lygia Clark – Hélio Oiticica: Cartas, 1964-1974. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
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JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. 3. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.
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MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas – 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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OITICICA, Hélio; FIGUEIREDO, Luciano (Org.). Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro, Rocco, 1986.
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___. Anotações sobre o Parangolé. Nº 0070/64, PHO
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___. Experimentar o experimental. Nº 0380/72, PHO.
___. Instâncias do Problema do Objeto. Nº 0130/68, PHO
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___. Sêco 27 / guache sôbre cartão. Nº 0439/68, PHO.
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SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2011
[1] Este estudo de Frederico Coelho abrange os textos referentes ao projeto de livro que Oiticica construiria em sua estadia em Nova Iorque (1971-1978), textos que foram escritos, mas que não chegaram à edição final.
[2] Nesta pesquisa encontramos duas principais exceções: o estudo de Paula Braga (2007) que busca nos escritos de Oiticica não apenas um embasamento para a obra, mas também a abertura do artista a filosofia de Nietzsche; Cf. BRAGA, Paula P. A trama da terra que treme: multiplicidade em Hélio Oiticica. 2007. 209 f. Tese (Doutorado em filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo. 2007. Assim como a obra de Frederico Coelho citada anteriormente; Cf. COELHO, Frederico. Livro ou livro-me: os escrito babilônicos de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2010.
[3] O discurso aqui se refere ao conteúdo imaterial da obra, a uma união dos pensamentos do artista, de sua proposição, da execução pelo espectador e do resultado final. Elementos que constituem a obra e elaboram um discurso que se insere e se legitima na história da arte a partir das investigações. O discurso de uma produção não é elaborado apenas por uma categoria de investigadores, mas pode abarca historiadores e teóricos da arte, filósofos e mesmo os críticos e a imaginária que se cria sobre o artista.
[4] No entendimento destas conexões Gullar (2007, p.91) pode afirmar: “Sobre ela o pintor não representará mais o objeto; (…) Com a eliminação do objeto representado, a tela – como presença material – torna-se o novo objeto da pintura”.
[5] Todas as citações obtidas através do Programa Hélio Oiticica serão referenciadas pelo nome do autor, nº de tombo e a sigla PHO. Os textos encontram-se disponíveis em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/home/index.cfm>
[6] OITICICA, Hélio. O OBJETO – Instâncias do Problema do Objeto. Nº 0130/68, p.03, PHO
[7] Cf. FIGUEIREDO, 1996, p.52.
[8] OITICICA, Hélio. O objeto na Arte Brasileira nos anos 60. Nº 0101\77, PHO.
[9] Cf. OITICICA, Hélio. Aparecimento do Supra-sensorial na arte brasileira. Dezembro de 1967. In: FIGUEIREDO, Luciano (org). Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p.103-105.
[10] “Creio que já superei o ‘dar algo’ para participar; estou além da ‘obra aberta’ (…) prefiro o conceito de Rogério Duarte, de probjeto, no qual o objeto não existe como alvo participativo, mas o ‘processo’, a ‘possibilidade’ infinita no processo, a ‘proposição’ individual em cada possibilidade”. (AYALA, 1970, p. 163). Nesse trecho, em evidente equívoco de edição, o termo “probjeto” aparece grafado como “projeto”.
[11] Os símbolos #### substituem uma palavra não legível do documento manuscrito.
[12] Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas – 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
[13] A ideia de carne transparece a porosidade das fronteiras entre o corpo sujeito e o corpo objeto. Para Merleau-Ponty em O visível e o invisível (2007) o corpo como carne do mundo não é matéria, mas por uma dada consciência perceptiva sentimos que nosso corpo e o corpo dos objetos fazem parte de uma mesma carne. Entre meus dedos e a superfície da mesa que toco existe um tocar que dá corporeidade a ambos. Nessa possibilidade de estabelecimento da corporeidade encontramos a carne do mundo. Perceber/pensar, isto é, existir, é corporizar e significar. O corpo cria movimentos e ao mover-se cria sentidos, desequilibra, inverte. São noções pontuadas pela fenomenologia e que aparecem nas definições de Oiticica, principalmente quanto à função da dança e do corpo no significar a obra. C.f OITICICA, Hélio. A dança na minha experiência. In: OITICICA, Hélio; FIGUEIREDO, Luciano (Org.). Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro, Rocco, 1986, p.72-76.
[14] Sobre a Cosmococa e sua origem, Cf. OITICICA, Hélio. COSMOCOCA by NEVILLE D’ALMEIDA. Nº 0297/73, PHO.
[15] Cf. OITICICA, Hélio. Aparecimento do Supra-sensorial na arte brasileira. Dezembro de 1967. In: FIGUEIREDO, Luciano (org). Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p.103-105.
[16] Sobre a questão da atualização das obras e da existência de um caráter de virtualidade nas obras de Oiticica, cf. FAVORETO, Fabiana; HIPÓLITO, Rodrigo; MARQUES, Michele. A virtualidade nas proposições vivenciais. Revista-Valise, Porto Alegre, UFRGS, v. 2, n. 3, ano 2, julho de 2012. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/RevistaValise/article/view/26332>
[17] Cf. DANTO, Arthur Coleman. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
[18] “Antes de mais nada é preciso esclarecer que o meu interesse pela dança, pelo ritmo, no meu caso particular pelo samba, me veio de uma necessidade vital de desintelectuação, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão, já que me sentia ameaçado na minha expressão de uma excessiva intelectualização […] houve uma convergência dessa experiência com a forma que tomou a minha arte no Parangolé e tudo o que a isto se relaciona (já que o Parangolé influenciou e mudou o rumo de Núcleos, Penetráveis e Bólides).” (OITICICA, 1986, p.72)
[19] Cf. OITICICA, Perguntas e respostas para Mario Barata. Nº 0320/67, PHO.
[20] Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2011.
[21] Uma das grandes influências para Oiticica nesse período foi o contato com Ferreira Gullar, não apenas pela apreensão do conceito de não-objeto, mas também por neste haver a referência à fenomenologia de Merleau-Ponty: “[…] um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto. Uma pura experiência.” (in: Experiência Neoconcreta: momento limite da arte, 2007, p.90).
[22] Possivelmente em seus Bilaterais e Relevos Espaciais (1959-60) na passagem da estrutura-cor para o espaço real e posteriormente nos Núcleos e Penetráveis em que o deslocamento do espectador esperado por Oiticica deveria mudar a relação perceptiva deste com o ambiente. Cf. OITICICA, 1986, p.52-53.
[23] Sobre a experiência de Oiticica no Morro da Mangueira e seu contato com o samba e a dança, cf. OITICICA, Hélio. Anotações sobre o Parangolé. Nº 0070/64, PHO e A dança na minha experiência. Nº 0120/65, PHO.
[24] Waly Salomão e Oiticica compartilhavam o compromisso criativo com seus textos e poemas. Trocavam cartas (Cf. OITICICA, Hélio. Carta a Waly [atribuído]. Nº 0318/73 – 8/24, PHO), informações e indicavam leituras. Na década de 1990, Salomão escreveu textos (análises poéticas) sobre a produção de Oiticica e que depois foram agrupados no livro “Qual é o Parangolé” (1996).
[25] O espectador era convidado a tirar os sapatos e pisar na areia para entrar no labirinto sensorial Tropicália (1966-1967). A ação de sentir o espaço real, pisar nas pedras, deixar-se envolver pelo ambiente só poderia ser vivenciada por aqueles que se entregassem à proposição, como os espectadores que retiraram os sapatos. A vivência do espaço relacional, da relação arte-vida e a totalidade da proposição só seriam apreendidas por aqueles que retirassem os sapatos e percebessem as intenções reais, produtivas e complexas do artista, como Guy Brett o fez. Ainda como sujeitos que aceitam tirar os sapatos, o imergir-se na produção de Oiticica deu origem ao sítio Nota Manuscrita (www.notamanuscrita.wordpress.com), veículo de discussão e modo de disponibilização dos diversos conteúdos desdobrados das discussões a respeito das obras de Oiticica e do estudo da fenomenologia de Merleau-Ponty.
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