[resenha] Novela da Descrença

Uma criatura Dócil 01

DOSTOIÉVSKY, Fiódor Mikhailovitch [1821-1881]. Uma Criatura Dócil. Título original: Krótkaia. Tradução Fátima Biachi. Ilustrações Lasar Segall. São Paulo: Cosac Naify, 2013, 128pp.

Uma novela da descrença. Duvidar e novamente duvidar de que os próprios atos podem ser encaixados num dominó vitorioso. As impressões tumultuadas da narração em primeira pessoa mantém um vivo desejo de reordenação das ideias do marido desesperado. Cada desculpa raspada das calçadas não se mantém por mais que duas páginas. Contradizer-se num minuto, para aceitar o erro no minuto seguinte.

A fantasia de mergulhar na mente soluçante de um sujeito arrependido de tudo que se tornou, no momento mesmo em que se esforça para agarrar a lógica desse arrependimento, faz nascer um realismo dos mais difíceis de construir e manter. Expressar a mente desestruturada pela raiva e pelo arrependimento exige a escrita de frases que apagam as precedentes. Ao final da narrativa, nada deve restar, além de um indefectível “E agora? Como devo me lembrar?”

Imagine um Bentinho a se consumir em sua dúvida, não por anos, nem em salas fechadas, e sem qualquer tempo de meditação seminarista, mas sim entre a travessia de uma curta faixa de pedestres. Um homem qualquer, que já corrompeu a vida pela autocomiseração, que não nega a própria estupidez, porém, a torna motivo de orgulho através de uma benevolência instrumentalizada. Não se pode crer num homem assim moldado. Não devem ser consideradas as palavras do homem incapaz de enfrentar a vergonha e perde-se em sua desgraça na tentativa de justificar os enganos.

Se há uma mente suficientemente vazia para jamais ter experimentado tal protagonismo, é certo que sua manifestação não será reconhecida. Ao acertar qualquer quina com o dedão do pé do ego forçado a defender legitimidades, esbravejamos sempre um “por que?” sem ânsia de resposta. Quando um instante desses se prolonga, tendemos a ornar as ações do próximo com fantasmas exuberantes e barulhentos. No mais das vezes, o que se pensou ser um grito de ódio, não passava de um espirro, no que se viu o deboche, somente houve um soluço e o que se pintou como a efervescência apaixonada de uma vida, nada mais era que um “bom dia” agradecido. Então, não nos conformamos com o final. Queremos sempre a culpa. Sempre um culpado. Mas, não há nada, nada além do que não tem volta.

“Uma Mulher Delicada”, Robert Bresson (1969)

“Uma criatura Dócil”

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