[conto] Fora da linha 52

"Roteiro para visitas de estranhos", 2014

“Roteiro para visitas de estranhos”. Rodrigo Hipólito. Fotografia com intervenção. 2014.

 

Texto de Rodrigo Hipólito

Um estrondo repentino no começo da noite levou cabeças curiosas, amedrontadas e irritadas para fora das janelas de três bairros, naquele início de noite. Algo entre a explosão de um palheiro e a queda de um prédio. Imediatamente, houve um apagão e todas as ruas ficaram sem a iluminação dos postes. As casas ainda mantiveram as lâmpadas acesas, embora fracas. O que mais serve para igualar pessoas do que o inesperado?

Um acidente de carro, um disjuntor queimado, um muro ao chão, um motor em fumaça, o trem de pouso de um avião, um balão meteorológico amarrado com um laço verde e rosa e puxado por um cervo pintado com as cores da bandeira argentina? Não, nada disso ou daquilo. É possível acreditar no acontecimento da menor das menores probabilidades, mas isso não significa que basta ser provável para que se faça crível na cabeça dos que tem fé herdada.

Durante toda a noite, a energia elétrica vacilou. Queimaram tantos motores de geladeira que os técnicos chamados para esses pequenos reparos combinaram uma cerveja no final do dia seguinte. Infelizmente, não puderam gastar seu ganho recente tão rápido, pois uma cachoeira desceu dos céus por oito horas seguidas, logo após o horário nobre.

Sobre o som estranho de antes, nenhum sinal físico foi encontrado, enquanto as geladeiras voltavam a gelar e as lâmpadas inúteis enchiam as lixeiras. Procurar notícias de incidentes na rede de distribuição de eletricidade mostrou-se infrutífero para os mais curiosos. E o temporal da noite seguinte fez calarem os pensamentos sobre o assunto para se resolver os melhores modos de chegar ao trabalho sem comprar um bote ou construir uma jangada.

Na terceira noite, o calor e os mosquitos proliferaram o mar da insônia por uma parte tão vasta da cidade, que o evento mereceu destaque no jornal da manhã. A meteorologia, essa religião tão respeitada e temida, elucidou a variação de temperatura abrupta e a infestação de demônios mordentes com a descrição de uma mágica corrente de ar tropical que seguia como um parafuso em direções que as divindades celestes não podiam seguir por seus óculos digitais de alta definição.

A quarta noite abriu uma cratera de aproximadamente 50 metros de diâmetro num terreno onde, futuramente (e agora não mais), seria construído um pequeno mercado de bijuterias gourmet. Pessoas choraram pelo cancelamento dessa iniciativa empresarial de alto risco, mas não ficaram minimamente instigadas a encontrar a causa para uma erosão desse porte ocorrer durante um lapso de menos de oito horas. A exceção foram os residentes da pensão que ladeava o antigo terreno planar, pois, ao clarear do dia, já haviam entupido a rua com malas e disputas por táxi.

No quinto dia, até mesmo os meninos receosos de deixar seus cabelos crescerem ficaram arrepiados e tiveram seus primeiros pensamentos em anos. Aquela já havia se tornado a semana mais descompassada da vida de uma multidão. O mar de sapos barulhentos que cobriu cinco quadras em torno da cratera, a qual transbordava água amarela e malcheirosa, era mais que o suficiente pra gerar teorias sobrenaturais. Quando o serviço de controle de pragas recolheu o último coaxador e a poça gigante de liquido putrefato foi sugada pelo solo, já havia cruzes penduradas nas entradas dos edifícios e novenas pela metade nos terraços dos sobrados.

Alguns sujeitos mais facilmente impressionáveis esperavam pela sexta noite com expectativa de que alguma besta-fera rugisse nas esquinas pela madrugada. Sempre que se espera ardentemente uma novidade, ela se esquece de comparecer. Nada ocorreu na sexta noite. Essas foram as horas mais angustiantes. Nem mesmo o som de um pássaro desafinado veio aos ouvidos sensíveis por mais de dez horas. Sem vento, sem chuva, sem latidos, sem música. Apenas vez ou outra se ouvia a vibração de automóvel constrangido pelo vácuo daquela noite.

Na manhã do sétimo dia, as portas se abriram para a rua com maior cuidado, como se ninguém quisesse ferir o silêncio. As exceções não demoraram a surgir. Ser escandaloso é a segunda natureza humana. Batidas de janela, chiados de alto-falantes jovens, tambores infantis, bicicletas que caem, alarmes de carros estacionados duas ruas longe de casa, propaganda de lojas de eletrônica, ambulantes que vendem frutas, outros que vendem vassouras, vendem doces caseiros, pães caseiros, verduras direto da horta, bijuterias gourmet e mais especialidades bem específicas.

Tudo como sempre esteve, vazio e cheio de gente atarefada. O sol se pôs, ou foi engolido por espessas nuvens de palha de aço. E como a capacidade de ignorar alastra-se com velocidade indescritivelmente maior que a de se surpreender, o sono brotou fácil na cama de quase todos aqueles que, até pouco, haviam cogitado o Apocalipse Meteorológico.

Os cinco insones que desapareceram na sétima noite talvez fossem os únicos olhos abertos numa área bastante grande. Moravam de dez a trinta quadras uns dos outros. Numa noite calma, normalizada por alguns zumbidos e pios, ninguém mais teria ouvido os passinhos apressados, como batidinhas na madeira, subirem as escadas de incêndio dos prédios. As unhas como agulhas grossas e sujas que roçavam as maçanetas não incomodaram, tampouco o agudo variante que inundou a madrugada. Como se estivessem todos com máscaras de dormir, as luzes que passavam como faróis, próximas de algumas janelas, surtiam tanto efeito quanto os pássaros, amontoados uns sobre os outros nos telhados.

Talvez tudo tenha sido rápido demais. As luzes podem ter atravessado o céu apenas por alguns segundos. Talvez ninguém tenha mesmo ouvido os gritos inumanos dos cinco insones. O desespero só nos pega quando dura mais que um instante.

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