Texto de Fabiana Pedroni.
Quando um livro começa? Alguns dirão que na concepção do escritor (ideia), outros na primeira página do texto (conteúdo), talvez ainda na própria textura da encadernação (matéria) e mesmo na história que um livro, já empoeirado, carrega (memória). Não faltam relatos de bibliófilos sobre o primeiro encontro com um livro marcante.[1] Aquele momento de encostar os dedos sobre a textura áspera da página, a delicadeza e estilização do corte da folha, tudo que intensifica a vivência da leitura. Trata-se de uma experiência particular, em que cada um desenvolve seu próprio modo de ler. Na particularidade, todos convergem para uma ação em comum: folhear as páginas. Procura-se o índice, observa-se o conteúdo, leem-se frases aleatórias para sentir o ritmo da escrita/leitura, observam-se as imagens, caso as possua, o tamanho dos capítulos… Alguns chegam a dados mais específicos, como os espaçamentos, a forma dos caracteres tipográficos, o local da paginação.
Então começa a leitura. Página por página, do primeiro ao último capítulo, ou de modo aleatório (outros nem se importarão tanto com a leitura, bastando admirá-los em sua biblioteca particular).[2] Mas como seria essa experiência se o livro pesasse mais de 20 quilos? E se ele fosse muito pequeno, pouco maior que um dedal? Ou mesmo, se ele não possuísse elementos pré-textuais, como capa e sumário? As características materiais, aqui impossíveis de serem citadas em sua totalidade, influem diretamente no modo de leitura, e podem até indicar que determinado livro, na verdade, não é para ser lido.
As relações entre as características de um objeto e seu uso podem se tornar ainda mais complexas quando especificamos a que “tipo” de obra se está diante. Ter em mãos a primeira edição de “A metamorfose”, de Franz Kafka (1915), e poder folheá-la traz sensações bem diversas de encontrar nas páginas de “Onda”, de Suzy Lee (2008),[3] o encanto com o próprio funcionamento do livro. Se na obra de Kafka sentimos o peso do tempo sobre a edição, assim como sentiríamos se fosse um valioso manuscrito medieval, e o peso de seu significado como obra literária,[4] em “Onda”, o encanto percorre pela leveza com que Suzy Lee nos mostra que um livro possui folhas, miolo e margens, que por Lee são desmistificados como elementos distantes da leitura. Talvez essa desmistificação contida na Trilogia da Margem[5] seja reforçada pela ausência de palavras escritas nas páginas. Como pode um livro não possuir texto? Exceto pelo título na capa e nos dados biográficos e bibliográficos acrescidos pela editora Cosac Naify ao final da obra, não há nada que possa ser lido. A comunicação entra no âmbito da imagem e exige de nós outro relacionamento. Você pode até virar as páginas, mas certamente não pensará que seus elementos são ilustrativamente gratuitos. O próprio formato do livro, como uma onda no horizonte, já o torna um objeto bem diferente de um livro a ser lido.
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Capa do livro “Onda”, De Suzy Lee, com ilustração que mostra uma menina de vestido, desenhada em traços pretos simples, diante de ondas do bar, com pássaros voando baixo e o título do livro logo acima.
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Estranhamente, apesar de a editora mostrar-se aberta a produções tão diferenciadas, parece ter que atender a exigências não condizentes com a obra. Os dados internacionais de catalogação, que aqui nos recusamos a reproduzir em sua totalidade em nota anterior, evidenciam a incongruência entre a existência de um livro-obra e um sistema que o classifica genericamente..
.Por que dizer que as ilustrações são da autora? Nunca perguntamos se o texto escrito em “A metamorfose” era de Franz Kafka, nem dissemos que este livro é indicado apenas para adultos. Não estamos aqui tentando criar uma confusão desordeira sobre métodos de catalogação [acreditem, já vi muitas confusões tão ordenadas que até pareciam criar ordem].[6] Entendemos que burocracias existem, são rígidas e às vezes necessárias.[7] Mas até que ponto nós estamos tão habituados a pensar no livro como um elemento puramente textual, mesmo quando possui imagens?.

Fotografia do livro Onda, de Suzy Lee, aberto em uma ilustração que se estende, na horizontal, pelas páginas, com o céu azul de fundo, a parte de baixo da imagem em branco e menina agachada com os pés na água do mar, na página direita.
.Há muito tempo que o livro deixou ter ser visto por nós como um objeto que comunica de um modo único, rígido em sua forma escrita, verbal. Talvez os primeiros livros que chegam ao nosso conhecimento que ultrapassam essa barreira e unem texto e imagem de modo mais harmônico sejam do final do século XIX e início do XX,[8] como o “Fausto” (1828), de Goethe, “O Corvo” (1875), de Poe, Mallarme e Manet, “Saint Matorel” (1911), de Jacob e Picasso, “La Fin du Monde”(1919), de Cendrars e Léger;, dentre outros.[9]
Penso que a arte tem um papel importante na mudança de concepção do livro. Os livros de artistas, que no Brasil surgiram após a década de 1950,[10] exploram a relação do sujeito com as formas e evidenciam que a relação de leitura nem sempre se restringe ao olhar, nem se pauta apenas na palavra.[11] Destaca-se a distância entre um livro de literatura destinado a uma leitura mais convencional de um livro que requer um “manuseio expressivo” por parte do leitor, como os livros-poemas de Ferreira Gullar..
.Na arte Neoconcreta os poetas
[…] não se limitaram às composições ‘verbivocovisuais’ do grupo paulista, mas enveredaram por outros caminhos, que valorizavam mais o livro do que a página como o veículo do poema. Em função disso nasceu o livro-poema, criado por mim [Ferreira Gullar], em 1959, que teve influência decisiva no desdobramento de todo o movimento, ao introduzir a participação do espectador (no caso, o leitor) na obra de arte, um traço particular da arte Neoconcreta.
Este é um ponto que tem escapado à apreciação da crítica, pelo fato mesmo de que o livro-poema teve escassa divulgação e raramente foi mostrado ao público. Mas, se para pensar, nada mais lógico do que aquela participação tenha nascido do livro, que é, por si, manuseá- los. Do livro-poema, passei aos poemas espaciais – poemas-objeto construídos em madeira – que obrigavam o espectador a manusear para descobrir a palavra oculta sob o cubo ou sob placas. Como consequência, inventei o Poema Enterrado, que consistia numa sala construída no subsolo, a que se tinha acesso por uma escada; dentro da sala-poema havia cubos ocultos uns dentro de outros, com apenas uma palavra que o manuseio dos cubos revelava. Esse poema foi construído na casa de Hélio Oiticica, que se tomou de entusiasmo por ele, vendo-o como um passo adiante nas experiências neoconcretas: passava-se da participação manual à participação corporal, já que, o ‘leitor’ era induzido a penetrar no poema. Dele veio o estímulo que levou Lygia e Hélio a experiências futuras como os ‘objetos relacionais’ e os labirintos do projeto ‘cães de caça’.[12]
A importância dessas produções não atinge apenas o Neoconcretismo, nem se restringe ao universo da arte propriamente dito, mas são importantes influências e alteradores de visão para a produção literária como um todo. Tornou possível hoje fazermos literatura pelas mãos, pelos cheiros e por um olhar reformulado.[13] Mesmo que haja uma grande distância entre o escritor Franz Kafka e a artista visual Suzy Lee, ambos podem hoje coexistirem em minha estante como objetos de leitura.
[1] Dentre muitos, cf. MINDLIN, José. Uma vida entre livros: reencontros com o tempo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008; FADIMAN, Anne. Ex-libris: confissões de uma leitora comum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
[2] ECO, Umberto. A memória vegetal: e outros escritos sobre bibliofilia. Rio de Janeiro: Record, 2010.
[3] LEE, Suzy. Onda. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
[4] O que diria então Umberto Eco se encontrasse na próxima esquina um exemplar da primeira edição da Bíblia impressa por Nuremberg e estranhamente perdida?
[5] LEE, Suzy. Trilogia da Margem. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
[6] Eis que poderíamos classificar esse texto como “Notas de rodapé acompanhadas de crônica crítica” ou “Ensaio para adultos meio infantis” ou ainda “Ensaio de recortes embaralhados”.
[7] Sobre burocracias extremadas e as consequências dos documentos confusos para a vida das pessoas vivas em relação às pessoas não-vivas, mas com possibilidade de dúvidas comprobatórias sobre sua morte documental e assinada por autoridade competente, ver GOGOL, Nicolai Vassilievitch. Almas mortas. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
[8] Quando comecei a escrever sobre o assunto não imaginei que surgiriam tantas notas. Acredito que um assunto tão “delicado” e ainda tabu exige muitas pausas e pensamentos sobre cada afirmação categórica. Por mais que tente me defender utilizando a sentença “que chegam ao nosso conhecimento”, dando margem a existência de outros livros, perdidos, rasgados, queimados, pisados, etc., ainda podemos dizer que a localização desses livros a partir do final do século XIX é falsa. Ora, não nos esqueçamos de tantas obras anteriores, como os manuscritos medievais. A iluminura medieval possuía um papel dentro do manuscrito muito diferente do que hoje pensaríamos como uma simples ilustração do texto. E ainda existiam livros tão pequenos que nas folhas (fólios) não cabiam textos inteiros, mas abreviações de palavras importantes, signos e pequenas imagens. Carregados como pingentes, já me pergunto como podemos catalogá-lo como um livro, mas assim, curiosamente, o fazemos.
[9] A lista pode se tornar bem extensa. “Poésies” (1932), de Mallarmé e Matisse; “À Toute Épreuve” (1958), de Eluard e Miró; “Escrito en el Aire” (1964), de Alberti e León Ferrari; “Último Round” (1969), de Cortazar e Virginia Silva… “[…] só para citar alguns exemplos que se definem quase sempre com base em afinidades no processo estrutural da criação, em intercâmbios fecundadores, que fazem da expressão gráfica o equivalente plástico da palavra”. Tendências do livro de artista no Brasil. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, Bovespa, 1985. [catálogo].
[10] Isso quando desconsideramos peças que não conquistaram a simpatia da historiografia da arte brasileira, amontoados de caixas, cartas guardadas em gavetas velhas, colagens de jornal, faixas de protesto enroladas no canto de ateliês ou situações textuais mais aberrantes, como “Serafim Ponte-Grande”, de O. de Andrade.
[11] Pense na invenção do vídeo cassete como a abertura da possibilidade de assimilar um livro visual particular, pronto para ser acelerado, rebobinado e mesmo apagado sem querer.
[12] GULLAR, Ferreira. Da Construção à Desconstrução.
[13] Nem preciso dizer sobre a minha enorme curiosidade para ler o “Aromapoetry” de Eduardo Kac!
eu
acho
que
entenderam
como
enganamos
as
propagandas
persistentes,
não
é
?