[resenha] O Destino das Imagens, de Jacques Rancière

“Histoire(s) du cinéma”, Jean-Luc Godard, ‘266, 1988-1998.

RANCIÈRE, Jacques. O Destino das Imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

Texto de Rodrigo Hipólito

A ótica trazida por Rancière deixa nítido, de início, que existem várias atribuições sobre o que se diz “imagem”, ou, existiriam várias “imagens”.

Uma primeira distinção poderia ser observada entre a apresentação visível do Outro de uma imagem e a apresentação visual do Mesmo de uma imagem. Apesar de não usar esse termo, podemos traduzir sua ideia ao acrescentar mais uma camada ao eidos grego.

Com a arte ou a literatura (ou o cinema), teríamos, além de um eidos que se configura na representação visual (figural) de uma ideia possível de possuir uma representação visual, outro eidos (outra imagem) como representação de uma ideia não necessariamente visual, mas sempre imagética. Há a imagem dos corpos em movimento e a imagem da dança. Há a imagem de um quadro, com tudo que ele contém, e há a imagem do “gesto pintura”. Há a imagem descrita pelas palavras e há a imagem da remissão efetuada por palavras e imagens.

O autor traz, até esse ponto, três instâncias simultâneas das imagens: uma visual, outra remissiva e uma terceira que é a própria semelhança entre coisas. Tal ideia seria lucidamente expressa por Barthes, em “Câmara Clara”, através da dupla presença do punctum e do studium na imagem: “sua imediata alteridade” se mostraria aí.

Quando falamos em instâncias da imagem, falamos também de regimes de imagéité específicos, referentes a tais instâncias. De imediato, Rancière nos lembra do diálogo entre o visível e o dizível como regime no qual se processam muitas de nossas dúvidas desde o surgimento da fotografia. Mas, retorna ainda mais para localizar na literatura romanesca, e em seu diálogo de construção e apropriação com a pintura de gênero, a origem de uma “dupla poética da imagem”, que conta e ao mesmo tempo encobre uma história ou uma ideia (não com alguma espécie de esvaziamento ou de negação, mas com outra história e outra ideia).

A partir das ideias de Rancière [e cientes da determinação dada pelo autor: “[…] destino das imagens é o destino desse entrelaçamento lógico e paradoxal entre as operações da arte, os modos de circulação da imagem e o discurso crítico que remete à sua verdade escondida as operações de um e as formas de outro.” (p. 27)] e ao considerar os três regimes de imagéité dados (imagem nua, ostensiva e metafórica), podemos construir o seguinte esquema:

Eidos um Eidos dois Eidos três
Visual Remissivo Arquissemelhante
Nua Ostensivo Metafórico

Cada um dos três regimes de imagéité seria abarcado por uma camada de perfil (eidos) e a ambos responderia uma espécie de imagem: a imagem visual ou figural, com palavras, sons ou gestos; a imagem remissiva, gerada pela nossa relação com a imagem visual; e a imagem arquissemelhante, resultado das relações analógicas que construímos entre as imagens de coisas.

***

O autor começa o segundo capítulo com as “História(s) do Cinema”, de Godard, como referência para a compreensão da imagem em dois sentidos: (i) como potência formal que subverte a “ordem clássica dos arranjos de ações ficcionais”; (ii) como conector entre os elementos de um e outro arranjo, conector de “uma história comum” (p. 44).

Haveria uma medida como entre essas duas potências aparentemente opostas das imagens apresentas em “História(s) do Cinema”? Primeiramente devemos considerar o cerne da pergunta: “medida comum”. Se pensarmos em uma só medida e em uma só comunidade, dificilmente atingiríamos uma conclusão não arbitrária e distante de um posicionamento que vise à eliminação de outras “medidas comuns”. Pensar essas medidas comuns no plural seria permitir a entrada variada de muitas relações, como o comum entre “nós”, entre os signos e entre nós e os signos.

A montagem de Godard traria, como pressuposto, o arranjo da modernidade ou, como quer Rancière, do “regime estético” da arte. Pensar essa dubiedade das imagens somente é possível num regime que já experimenta a autonomia dos meios. Aquilo que observamos desde o Laocoonte de Lessing forma a espécie de “representação insubordinada” que a modernidade estipula como liberdade. Temos, nessa liberdade, a separação entre as esferas da experiência das formas e da experiência da racionalidade (p. 50); a separação da arte erudita da experiência estética do quotidiano; a separação entre ideia e representação sensível (p. 51). “Assim, a perda da medida comum entre os meios das artes não significa que daí em diante cada qual fique com seu compartimento, outorgando-se sua própria medida. Isso quer dizer sobretudo que toda a medida comum doravante é uma produção singular e que essa produção é possível somente à custa de afrontar, na sua radicalidade, o sem medida da mistura.” (p. 52).

No subcapítulo “A frase-imagem e a grande parataxe”, Rancière pensa a ideia de sequências significativas encadeadas de modo descoordenado como o que daria a medida da “arte estética” (arte no “Regime Estético”). Seu pensamento foca na passagem entre o século XIX e o XX, mas sua concepção de medida da arte no entrosamento entre o dizer e o ver estende-se, inevitavelmente, em todas as direções históricas. “A frase não é o dizível, a imagem não é o visível. Por frase-imagem entendo a união de duas funções a serem definidas esteticamente, isto é, pela maneira como elas desfazem a relação representativa do texto com a imagem. No esquema, representativo a parte que cabia ao texto era o encadeamento das ações e a parte da imagem a de suplemento de presença que lhe conferiria carne e consistência. A frase-imagem subverte essa lógica. A função-frase ainda é a de encadeamento. Mas, a partir daí, a frase encadeia somente enquanto ela é aquilo que dá carne. […] A imagem tornou-se a potência ativa e desruptiva do salto, da transformação de regime entre duas ordens sensoriais.” (p. 56).

Já em “Montagem dialética e Montagem simbólica”, Rancière apresenta as ideias de como as duas maneiras pelas quais compreende que o heterogêneo constituiria a medida como em sua frase-imagem. No primeiro caso observaríamos o choque como modo de fazer aparecer a ordem de uma medida. “A potência da frase-imagem que junta os heterogêneos, então, é aquela da distância e do choque que revelam o segredo de um mundo, isto é, o outro mundo, no qual a lei se impõe por trás das aparências anódinas ou gloriosas.” (p. 67). Nessa lógica, a montagem simbólica reuniria heterogêneos por uma continuidade analógica ocasional. Os heterogêneos não desaparecem, mas se reúnem numa metáfora comum. “Se a maneira dialética visa, pelo choque dos diferentes, ao segredo de uma ordem heterogênea, a maneira simbolista reúne os elementos sob a forma de mistério.” (p. 67).

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Nos três últimos ensaios do livro, o tiro é mais rápido. “A pintura no texto” é, aparentemente, o capítulo mais “histórico” do livro. O autor aborda alguns problemas da concepção formalista da “arte estética” que busca desligar do eixo texto/representação do eixo pintura/abstração. Embora a revisão feita por Rancière atravesse temas que já não parecem ser prementes na arte, alguns pontos dessa revisão merecem ser ressaltados. Rancière elucida, de maneira bastante confortável para o leitor, problemas da concepção greenberguiana de autonomia das artes, como a ideia de definição da arte pelo meio, que desconsidera que o meio também se define pelo fim. (p. 80); ao trazer em sequência o tratamento dado pelos irmãos Goncourt a pintura de Chardin (p. 90) e o texto crítico de Albert Aurier sobre a “Visão depois do Sermão” (Gauguim), Rancière apresenta duas maneiras de enxergar, construir e projetar a pintura de uma época. No primeiro caso, uma espécie de “materismo” serve de ótica para compreender qualquer pintura pela aparência daquela que mais se destaque no cenário contemporâneo de quem vê. No segundo caso é um “ideísmo” que traz para a pintura a função de conter ideias imateriais, liberando a ficção da responsabilidade de réplica de aparências. “Ideísmo e materismo contribuem igualmente para formar uma pintura sem figuração, mas uma pintura que oscila entre a pura atualização das metáforas da matéria e a tradução, em linhas e em cores, da pura força da “necessidade interior”.” (p. 96).

Em “A superfície do design” Rancière cria uma relação direta entre a construção de tipos como síntese reminiscente, presente na poesia de Mallarmé, os arabescos funcionais do neogótico, a simbolização publicitária e a autonomia da arte na modernidade. Enxergar esses movimentos como propostas de design evidencia que toda a tentativa de síntese como construtora de um sinal poderoso está fadada não ao universalismo que talvez almeje, mas sim a despertar “perturbadores diabólicos”. Assim seria o caso da autonomia pictórica e bidimensional da arte, que despertara a heteronomia comunicativa e abstrata da Pop Art.

No capítulo final, “Se o irrepresentável existe”, Rancière aponta para algumas incongruências entre as ideias correntes de representação, apresentação, significação e produção artística. Embora esteja alicerçado num pressuposto “não dito” de que em algum momento o “representante” esteve fora do contexto daquele “para quem” se representa, a separação lúcida entre representar e assemelhar é sempre útil. Ao fim, é certo que o autor não se interessou em “demonstrar” a validade ou invalidade do conceito de irrepresentável. Ambos os caminhos desembocariam no fato de que os óculos constroem as aparências.

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