[crítica] Instinto de Pele e Carne Hereditária

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Cabe-nos rejeitar os preconceitos seculares, que situam o corpo no mundo e o vidente no corpo ou, inversamente, o mundo e o corpo do vidente como dentro de uma caixa. Onde colocar o limite do corpo e do mundo, já que o mundo é carne?[1]

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Quando ouço que a Cultura é a Pele do Mundo, duas ideias pipocam de imediato em minha cabeça. A primeira diz que deve haver um “instinto de pele” que exala de todas as coisas a nossa volta. A segunda reflete que, com essa exalação toda, as coisas sentidas/pensadas são mesmo a “carne do mundo”. Com essas ideias, debruço-me sobre as peças reunidas para a décima primeira edição do Vitória em Arte. São trabalhos feitos com a direção (o comando) da percepção e apresentam uma profusão de suportes e aparências, pela qual podemos encontrar variadas formas de brincar com o toque e com o olhar. Sem a obrigação de estabelecer rígidas fronteiras críticas sobre essas brincadeiras, esboçarei abaixo alguns aspectos da mostra ou, como prefiro, alguns “elementos”.

Rick Rodrigues. Sem título. Objetos-dobraduras

Rick Rodrigues. Sem título. Objetos-dobraduras

A Materialidade: esse talvez deva ser o primeiro elemento a ser evidenciado, tanto por nos facilitar a fala sobre o que vemos quanto por misturar todos os sentidos do corpo. Nas peças e intervenções entregues ao público, a técnica dá lugar à indicação da intimidade entre o sujeito que faz e o sujeito que é feito, a matéria que se move com o mundo e a matéria transformada por esse movimento. O que você vê e toca não é um ser sem vínculos, mas vestígios dos gestos íntimos de criadores;

O Respiro: como segundo elemento, atentemos para o fato de que a grande maioria dos trabalhos que compõe Vitória em Arte, e isso não de hoje, dão suas primeiras golfadas de ar. Nesse passeio inaugural, nós obervamos as reações dessas criaturas, umas às outras. Pela primeira vez elas se dão conta de que existem situações nas quais devem dividir seu modo de mostrar o que são. O ar que o visitante e o passante respiram sai dos pulmões de seres recém-nascidos;

A Terra: quando falamos da materialidade ressaltada pelas propostas expostas, não afirmamos uma solidez pontual, mas sim a incorporação palpável de sensibilidades. Os títulos e descrições dos seres abrigados por essa mostra apontam mundos pessoais que se enamoram e que se grudam ao corpo do habitante. De “Mineral” a “Rendas”, do “Que não se vê” a “Broto”, de “A fala que me falta fertiliza o fôlego” ao “Estudo Trecandís” ou qualquer outra relação instável que seja afirmada, a Terra se faz e se espalha no Mundo;

Ana De Sena. Mineral

Ana De Sena. Mineral

A Mão: já na proposta inicial dessa mostra, a interação com a poesia do mundo através do gesto sobre a superfície se mostrou um delimitador potente. Costurar, pisar, abraçar, caminhar, pintar, amassar, riscar, montar, desmontar, recortar, fixar, demonstrar. Os verbos que acodem às necessidades e aos anseios desses criadores lhes concedem permissões para manusear a realidade, ou seja, afirmarem “estou aqui”;

A Presença: como o oposto de simulações rarefeitas, as peças que observam os visitantes e passantes arrastam pedaços de seus criadores. Sem obedecer à injusta regra contemporânea de abandono da representação, esses trabalhos usam da singeleza de presentificar uma ótica momentânea de seu proponente para erigir elos, passagens e reflexos;

O Estar Junto: o que essa presença carreia é uma convivência respeitosa, a qual não almeja eliminar por completo a distância entre antagonistas e entre solitários. Através da capa de discrepância evidenciada em análises estritamente morfológicas ou estruturais, podemos perceber os processos individuais dos trabalhos. Isso, por certo, é fundamental para estabelecer diálogos. Se “estou junto” é porque há algo além de mim na mesma paisagem em que me encontro;

A Troca Entre Gerações: o elemento de convivência nos lembra de um dos principais ganhos dessa edição do Vitória em Arte. É importante sempre reafirmar que vivenciamos uma quantidade imensurável de temporalidades. Se há épocas específicas para diferentes maneiras de sentir, talvez seja como há temporada de pipas, que explode durante as férias escolares, mas não impede que o vento beije o papel de seda durante o restante do ano;

O Espírito-Carne: a sobrevivência para além de um só tempo, em um “conjunto de épocas”, surge em negrito quando interpomos entre nosso olhar e os objetos o filtro da incerteza. Caso o observador queira almas apartadas de corpos, ou corpos mumificados em vitrines, as salas expositivas estarão vazias. Caso ele queira visitar uma cidade em expansão, dentro e fora das paredes, encontrará alguns espíritos encarnados e alguns invólucros inflados pelos ares da expressão;

O Dar Vida: esse sopro de vida movimenta e dá voz aos objetos dispostos pela cidade interna e pela cidade externa. Diante dessa metáfora da exposição como cidade imaginária, qualquer arco que almeje abarcar tematicamente todos os seus habitantes estará fadado à frustração ou ao engano. Ainda assim, se posicionamos nas duas pontas de um arco os processos de criação dos homenageados (Rosana Paste e Antônio Rosa), os quais serviram de bússola para os proponentes, vislumbraremos o “sopro de vida sobre a matéria que guarda a memória” como uma luz que reacende em cada um dos trabalhos;

A Madeira Hereditária: dar vida, ou configurar um jeito de ser de algo amorfo, é escrever uma memória fundamental. Há uma curiosa irmandade entre as palavras madeira e matéria. Num passado supostamente distante, os gregos continham no termo hilé (ύλη) tanto o sentido de madeira quanto de matéria sem forma. Hilé era a madeira guardada nos depósitos dos carpinteiros. Antes de ser processada pelo artífice para aderir a um perfil (eidos, είδος) reconhecível, a madeira-matéria não possuía forma de ser. Após o processo de informação, essa madeira respeitaria uma memória e, até se dissolver nas areias do tempo, responderia às mãos que um dia lhe disseram “Assim isto pisará a Terra deste Mundo”.

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[1] MERLEAU-PONTY. O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 134.

Texto publicado no catálogo do 11º Vitória em Arte (Sesc Glória/Casa Porto das Artes Plásticas/ Sindiappes)

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