[resenha] A Jornada do Escritor ou O Esqueleto de Vogler

VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Expressões como “jornada do herói” e “arco da personagem” se tornaram largamente conhecidas de fãs de cinema e principalmente de leitores de ficção fantástica, jogadores de RPG e maníacos por Star Wars. “A Jornada do Escritor”, de Christopher Vogler, é um dos grandes responsáveis por essa familiaridade. As propostas defendidas pelo autor, nesse livro, foram e ainda são largamente utilizadas, mas também profundamente questionadas e superadas.

O livro se origina de um “manual” que haveria influenciado fortemente os roteiristas de Hollywood a partir do final da década de 1980. Boa parte dos prefácios e da introdução é gasta em desculpar o livro por ter adquirido esse peso de “manual” para a cultura pop. Independente desse peso e dessa necessidade de desculpar-se, o trabalho de Vogler é, de fato, relevante para por em foco a construção de histórias que possuem a intenção de atingir o grande público (e mesmo para aquelas que, sem essa intenção, o atingiram).

“A Jornada do Escritor” lista uma série de etapas de uma história que possa ser “ocidentalmente universal”. Essas etapas são baseadas no trabalho mais conhecido de Joseph Campbell, “O Herói de Mil Faces”. O livro referência do mitólogo traz um vasto apanhado dos mitos e arquétipos ocidentais, em inevitável diálogo com os pensamentos de Jung.

Vogler empenha-se em transpor as passagens do mito primordial da “jornada do herói” para um esquema simples, que resulte em roteiros possíveis, uma base sobre a qual erguer histórias. Após muito enxugar, Vogler chega a seguinte sequência maleável:

“01 Os heróis são apresentados no MUNDO COMUM, onde

02 recebem um CHAMADO À AVENTURA.

03 Primeiro, ficam relutantes ou RECUSAM O CHAMADO, mas

04 num encontro com o MENTOR são encorajados a fazer a

05 TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR e entrar no Mundo Especial, onde

06 encontram TESTES, ALIADOS E INIMIGOS.

07 Na APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA, cruzam o Segundo Limiar,

08 onde enfrentam a PROVAÇÃO.

09 Ganham sua RECOMPENSA e

10 são perseguidos no CAMINHO DE VOLTA ao Mundo Comum.

11 Cruzam então o Terceiro Limiar, experimentam uma RESSUREIÇÃO e são transformados pela experiência.

12 Chega então o momento do RETORNO COM O ELIXIR, a benção ou o tesouro que beneficia o Mundo Comum.” (p. 46)

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Vogler faz questão de apoiar seu raciocínio em muitos exemplos retirados do cinema. Seu preferido, “Guerra nas Estrelas”, conta com a admissão dos criadores sobre a influência da “jornada do herói”.

Em cada uma das 12 etapas, sintetizadas por Vogler, encontramos as ações dos arquétipos como “funções” narrativas. Os personagens, que dão corpo a história, poderiam também ser enquadrados em algumas formas primordiais.

1 – O Herói: como figura que desenvolve uma jornada de mudança e realiza sacrifícios. Esse arquétipo seria capaz de aderir a quaisquer outros;

2 – O Mentor: mestre e incentivador, esse arquétipo poderia ser também um herói em sua trajetória, embora não seja a sua trajetória que constrói o arco maior da narrativa; ele também pode ter partes relativas aos demais arquétipos, contanto que execute a função primordial de guia experiente;

3 – Guardião do Limiar: é o arquétipo que se interpõe entre o Mundo Comum e o Mundo Especial, não é o principal obstáculo, mas deve ser transposto, vencido, enganado ou tornado aliado;

4 – Arauto: é a voz que anuncia a mudança, não precisa ser um personagem identificável;

5 – Camaleão: arquétipo da dúvida, da mudança e marca do desenrolar da história;

6 – Sombra: representação oposta ao herói, mesmo que faça parte dele ou não seja propriamente seu inimigo;

7 – Pícaro: movimento e contraponto da seriedade do sacrifício do herói, figura que pode tomar o lugar do herói (sem esquecer que o herói pode ser simultaneamente pícaro) ao se sacrificar.

A relevância desses arquétipos para a narrativa se resumiria nas duas perguntas ressaltadas por Vogler: “1. Qual a função psicológica, ou que parte da personalidade ele representa? 2. Qual sua função dramática na história?” (p. 51)

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A segunda parte do livro de Vogler é uma repetição estendida das descrições das 12 etapas da jornada do herói. Ainda que mantenha variados exemplos de roteiros conhecidos do cinema de Hollywood, toda essa descrição das 12 etapas pouco acrescenta ao que já foi dito. Durante a insistência nas funções de cada momento da narrativa, Vogler deixa em evidência que talvez os esquemas apresentados sirvam bem apenas para a narrativa cinematográfica voltada para a conquista do grande público. E dadas as medidas e qualidades esperadas para o desenvolvimento desses momentos da jornada do herói, Vogler parece não se importar muito com as necessidades e condições do texto literário.

A relevância das 12 etapas pode ser resumida nas mudanças psicológicas sofridas pela personagem no correr do seu “arco”:

Esquema

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Em seu epílogo, “A Jornada do Escritor” deixa uma série de advertências para que esse mapa de um roteiro não seja seguido à risca. Apesar de ser repetitivo e fazer afirmações baseado unicamente na autoridade de outros pesquisadores e no sucesso quantitativo de empreitadas cinematográficas hollywoodianas, Vogler mostra-se consciente quanto ao limite de seu livro. Guardadas as devidas proporções, distâncias conceituais e objetivos, “A Jornada do Escritor”, assim como o trabalho de Campbell, apresenta marcos para o reconhecimento de certas relações e padrões. Não há, nesse livro, qualquer pretensão de totalidade. As análises que o autor deixa como anexos mostram nitidamente que as escolhas de um roteiro não podem ser as escolhas de outro roteiro qualquer. A época, o tema e todo o processo de produção exigem especificidade. A conclusão a que chegamos é de que: antes de contar uma história, é bom ter uma história pra contar, mas de vez em quando não.

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